15 Fevereiro 2024
“A rebeldia nas sociedades sempre partiu das juventudes dos setores populares. Contudo, o sistema encontrou uma forma de deslumbrá-las que vai do consumismo ao chamariz do ingresso nas universidades. Nelas adquirem os códigos culturais necessários para ascender na escala social, sem questionar o capitalismo”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por Desinformémonos, 12-02-2024. A tradução é do Cepat.
Muitos de nós fazemos a seguinte pergunta: se a maioria vive cada vez pior, por que não são registrados levantes, insurreições e movimentos anticapitalistas em massa?
Os setores populares têm cada vez menos acesso à terra, sofrem violências do Estado e do crime organizado, a saúde que o sistema lhes oferece é péssima e a escassez de água aumenta de modo exponencial. Um em cada quatro habitantes do planeta sofre com a falta de água. No entanto, continuam acreditando no Estado-nação e uma grande parte ainda confia que os partidos políticos podem resolver os seus problemas.
Acredito que o comunicado 14 do EZLN, “A (outra) Regra do Terceiro Excluído” oferece uma explicação clara e verdadeira:
“A maioria da população não vê ou não acredita ser possível a catástrofe. O capital conseguiu incutir o imediatismo e o negacionismo no código cultural básico dos de baixo. Para além de algumas comunidades originárias, povos em resistência e alguns grupos e coletivos, não é possível construir uma alternativa que ultrapasse o mínimo local”.
Em uma entrevista a Rafael Poch, o historiador francês Emmanuel Todd explicou os motivos pelos quais o conformismo se instalou na sociedade, em reflexão a propósito das eleições de 2017. Destaca dois aspectos ligados à população. Entre 1992 e 2015, a população francesa envelheceu e a idade média nesse período aumentou entre 5 e 6 anos. Argumenta que “os velhos são prisioneiros” do sistema financeiro, especificamente do euro, porque uma mudança profunda afetaria suas pensões (La Vanguardia, 7 de maio de 2017).
Em segundo lugar, aborda a estratificação educacional. Na França, em 1992, a proporção de pessoas com ensino superior era de 12% e agora é de 25%. Conclui: “As pessoas com ensino superior produziram uma oligarquia de massas. Não de elites, mas de massas, pessoas que vivem em sua bolha e que acreditam que são superiores.” Segundo os dados, “o segmento superior oligárquico da sociedade dobrou de tamanho no período”.
Uma população envelhecida e dependente do Estado e do capital e uma grande massa oligárquica são as bases do conformismo, destaca o historiador.
Duas questões a serem consideradas. A linguagem soa brutal. Utilizar o conceito de “oligarquia de massas” para definir esse enorme número de pessoas que podem passar a vida inteira nos estudos acadêmicos, entendidos como uma escada social e material, parece um tanto exagerado. Além disso, os dados se limitam à França, embora eu acredite que as sociedades latino-americanas tendem cada vez mais a essa realidade: metade da população fisgada no sistema vive razoavelmente bem e a outra metade vive de forma cada vez mais precária. Meio a meio, como dizia Immanuel Wallerstein, é a dominação perfeita.
No entanto, muitos países latino-americanos estão muito próximos dos números europeus. Na Argentina, 24% têm diploma universitário, na Colômbia e no Brasil, 22%, no México, 21%, e no Chile, 31% [1]. Números ainda inferiores aos dos países da OCDE, que têm 41% da sua população diplomada, embora tudo indique que vão convergindo.
Em uma das perguntas, o jornalista Poch lembra que o atual presidente Macron, em um comício durante a campanha, citou um intelectual confrontado pelos estudantes de sua universidade, em 1968, que questionavam a sua autoridade, dizendo-lhes: “Minha autoridade vem do fato de ter lido mais livros do que vocês”. E acrescentou que “há talentos e não talentos, é preciso construir a autoridade dos que sabem”. Segundo o presidente, não se trata de proteger os mais fracos, “mas de dar liberdade”. Exatamente a mesma coisa que Milei e a ultradireita dizem.
Penso que o conformismo, assim como o negacionismo da catástrofe e o imediatismo destacados pelo Capitão Marcos, têm várias raízes. Uma delas é o consumismo, outra é a longa influência dos Estados entre os setores populares, bem como a ameaça permanente de violência e, claro, a violência real.
Eu gostaria de me concentrar na estratificação educacional. No meu país, considerado um dos menos desiguais do continente, os dados são alarmantes. Entre os 20% da população com a renda maior, seis em cada dez têm ensino superior. Entre os 20% com a renda menor, são apenas 3%. Vinte vezes mais!
É evidente que nem todos os universitários se sentem parte de uma camada superior. Conheço um punhado que são verdadeiros companheiros e companheiras. O tema é outro. Boa parte dessa “oligarquia de massas”, denunciada por Todd, são hoje funcionários do progressismo, porta-vozes de suas políticas e defensores midiáticos delas. Apresentam argumentos racionais, aparentemente coerentes, mas eles e elas rejeitam qualquer análise sobre a sua própria performance privilegiada e se dedicam a colocar sob a lupa os e as de baixo.
A rebeldia nas sociedades sempre partiu das juventudes dos setores populares. Contudo, o sistema encontrou uma forma de deslumbrá-las que vai do consumismo ao chamariz do ingresso nas universidades. Nelas adquirem os códigos culturais necessários para ascender na escala social, sem questionar o capitalismo. Em não poucos casos, tornam-se “progressistas”, o que lhes permite defender o sistema a partir do politicamente correto.
[1] Segundo estes dados, a França teria, em 2020, 41% de graduados universitários, ainda que Todd trabalhe com a proporção de 25%, em 2015.
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As raízes do conformismo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU