07 Fevereiro 2024
"O erro profundo de 1968 e dos movimentos de contestação que se seguiram foi jogar fora o bebê junto com a água do banho, ou seja, não separar a figura do pai senhor como protótipo ideológico do patriarcado (do qual o machismo é o desdobramento sexual), do princípio simbólico do pai do qual a vida individual e coletiva precisa para ser realmente generativa", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 29-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O debate político e cultural que se desenvolveu após o brutal assassinato de Giulia Cecchettin e que se renova dramaticamente a cada feminicídio, trouxe ao centro o grande tema do patriarcado. Comentei inúmeras vezes a fórmula de Lacan segundo a qual o nosso tempo seria caracterizado pela “evaporação do pai”. Essa fórmula foi, não por acaso, proposta após a grande contestação juvenil de 1968. Toda uma concepção do mundo estava se dissolvendo: a autoridade patronal do pai – criticada pelos jovens manifestantes - não constituía mais o fundamento indiscutível da sociedade ocidental.
Não se tratava, portanto, de uma questão de descrever apenas a progressiva desorientação dos pais no exercício da sua função educativa em relação a filhos cada vez mais rebeldes, mas de indicar a crise irreversível de toda uma concepção do mundo que girava em torno do símbolo do pai como ápice de uma representação hierárquica da vida individual e coletiva da qual o próprio Deus constituía, em última análise, o cume indiscutível.
Com a imagem da evaporação do pai se decreta o fim daquele mundo. Essa é a causa profunda da extrema dificuldade que no nosso tempo envolve todos aqueles que se veem engajados em práticas educativas: como garantir o respeito em relação à sua autoridade simbólica se a sua base parece ter evaporado? Mas se a ideologia do patriarcado definitivamente evaporou sob os golpes de 1968, do feminismo, do movimento de 1977 e, sobretudo (como Lacan, Pasolini e a Escola de Frankfurt, entre os primeiros, haviam alertado), do discurso do capitalista e da sociedade de consumo, no entanto, não se pode descartar que tenha deixado uma brasa ainda acesa. O machismo é um exemplo evidente disso.
Contudo, já não é mais a consequência necessária da primazia despótica do pai, como ao contrário acontecia antes mesmo de 1968. Trata-se mais de um machismo residual, pós-patriarcal, que assume formas erráticas e não hegemônicas, uma espécie de terrível incrustação maléfica difícil de dissolver completamente. Mas, de forma mais geral, o tema do arrasto residual do patriarcado envolve em primeiro lugar a próprio figura do pai. Não há dúvida de que também existe no Ocidente democrático uma tendência declinista-nostálgica para recuperar o valor da tradição patriarcal, portanto, uma ideia de família dita natural organizada na diferença ontológica entre os sexos e na autoridade paterna, uma concepção verticalista do poder do Estado.
Trata-se de um declinismo nostálgico que tem um alcance amplo e envolve a própria ideia de sociedade. É o verdadeiro fundamento cultural de todo soberanismo: restaurar os valores indiscutíveis da tradição, disciplinar o caos das diferenças e das contaminações reiterando um princípio de identidade rígido e conservador que rejeita a integração do diferente, afirmar uma concepção hierárquica da sociedade cujo vértice está ocupado pela restauração da autoridade perdida.
No entanto, esse declinismo nostálgico responde a uma questão urgente: uma vez evaporado o pai do patriarcado e a sua função de bússola de valores, que coordenadas simbólicas serão capazes de orientar as nossas vidas? Como organizar o caos de um mundo sem Deus? Existe realmente uma alternativa cultural e política à tentativa, destinada fatalmente ao fracasso, de restauração nostálgica e declinista da velha e exangue ordem patriarcal? O erro profundo de 1968 e dos movimentos de contestação que se seguiram foi jogar fora o bebê junto com a água do banho, ou seja, não separar a figura do pai senhor como protótipo ideológico do patriarcado (do qual o machismo é o desdobramento sexual), do princípio simbólico do pai do qual a vida individual e coletiva precisa para ser realmente generativa.
Mas, como se deve entender, na época da evaporação do pai (que é a nossa época), esse princípio? Não é mais um princípio ligado ao sangue, à linhagem, ao gênero, à tradição. Hoje é preciso separar esse princípio de toda sua representação genealógica dele. A grande popularidade de que desfruta o Presidente da República Sergio Mattarella, por exemplo, é uma expressão do princípio paterno que não atua a golpes de bastão, mas no sentido de garantir uma circulação plural da palavra.
O que resta do pai no tempo da sua evaporação é o ato de testemunho de que não existe vida ou grupo autossuficiente. Mais precisamente, o novo princípio de autoridade não decorre mais da obediência e da disciplina, mas de todas aquelas contingências nas quais a palavra se torna um fato, justamente um testemunho. Mas do quê?
Da existência de uma Lei não escrita que une a vida diferente dos homens e que exige o luto do pensamento único, o luto de toda vontade de poder que pretende, como acontece com moradores da Babel descritos na Torá, se constituir como "um só povo" que fala uma "só língua". Uma Lei que coincide com aquela de um pai que não domina mais a vida dos filhos ou dos súbditos, mas que se oferece como uma ponte que une, uma força que sabe gerar comunidade.