05 Fevereiro 2024
"A guerra é inútil e não oferece nenhuma satisfação nem ao agressor nem mesmo ao agredido que resiste. Em outras palavras: a guerra não convém porque nela não há ganho. Basta olhar para os conflitos das últimas décadas para perceber isso" escreve Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 31-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O risco é que a guerra se torne um mecanismo independente da vontade humana. Nestes tempos a guerra não traz a vitória porque os atores são híbridos e fugidios. O conflito arrasta mesmo aquele que é vítima e está do lado justo tornando-o semelhantes ao carrasco.
“Devemos preparar-nos para a guerra”: o discurso começa a avançar na Europa, a começar pelos países Bálticos. Agora, também na Alemanha e na Grã-Bretanha fala-se de uma guerra iminente. O inimigo? Sempre o mesmo: a Rússia.
Desde o início da guerra, uma das razões para ajudar a Ucrânia tem sido o alarmismo: depois de Kiev, Moscou visa o resto da Europa. As autoridades ucranianas e os seus apoiantes repetiram isso.
O impasse atual nos combates obriga a um salto de qualidade: insiste-se no fato de que o risco se tornou uma probabilidade. Assistimos a uma ambígua escalada verbal: anunciar a agressão russa à Europa, apostando no mecanismo da profecia que se autorrealiza.
Obviamente não há como contrariar esses argumentos no plano da lógica: quem está dentro da cabeça dos líderes russos para saber se isso é verdade ou não? A única maneira seria negociar, mas é exatamente o que se quer evitar a todo custo.
Notícias de encontros secretos entre russos e estadunidenses alarmam os apoiadores da guerra total que se inflamam nas profecias mais funestas. A outra tática é tentar convencer a opinião pública que os russos não querem negociar, isso também indemonstrável.
Da parte de Moscou, implementa-se uma estratégia semelhante: se fala que se quer negociar, mas um segundo depois isso é desmentido... e assim por diante. A história narra que aqueles que decidem pela guerra como única opção sempre se comportam assim com o objetivo de fazê-la explodir, ou ficam tão cegos pelas paixões (nacionalistas) que a fazem explodir sem nem mesmo querer.
Em última análise é a mesma coisa: antes da guerra há a não-paz, o fim da paz nos discursos e nas palavras, na psicologia coletiva, nas expectativas da maioria.
O autor húngaro Sandor Marai escreveu em 1938: “A guerra ainda era uma perspectiva indistinta... mas os abutres das catástrofes humanas, os aproveitadores da economia bélica já se mantinham pronto na espera de banquetear sobre as carcaças das vítimas do grande funeral. Ainda não havia guerra e já não havia mais paz".
É isso que estamos vivendo na Europa: acreditamos que podemos prescindir da paz, que não seja mais um objetivo lícito e quem a deseja é considerado um ingênuo ou um traidor.
É o mesmo espírito que levou às duas guerras mundiais. Conhecemos a objeção: o que mais se podia fazer contra a agressão nazista? A guerra era inevitável, a única alternativa teria sido a rendição como foi feito no desmembramento da Tchecoslováquia.
Daí a crítica ao apaziguamento de Munique e assim por diante. Temos certeza de que podemos comparar situações tão diferentes só porque estamos convencidos de que a guerra é inevitável em certas passagens da história? Não há talvez um preconceito na origem dessa ideia: pensar que a guerra seja a triste, mas inevitável, companheira do homem?
Para apoiá-la é necessário passar por algumas etapas obrigatórias, primeiro a construção do inimigo. A Rússia é hoje tal inimigo, mas até ontem não era. O regime de Vladimir Putin não mudou nos últimos três anos.
Importantes líderes europeus e ocidentais frequentavam-no e todos nós fazíamos negócios com a Rússia.
É certo que havia quem se queixasse dessa situação (os georgianos, por exemplo), mas a Rússia era considerada um dos “nossos”, só que um pouco diferente.
Agora está sendo reescrita a história da pós-queda do muro de uma forma completamente diferente: o que era esperança de paz e convivência (a casa comum europeia) é agora interpretada como uma grande mentira da qual se salva apenas Gorbachev, o único russo ainda “bom” para o Ocidente.
Todos podem entender que se trata de uma leitura reformulada, alterada e, afinal, bastante hipócrita.
Resta o fato objetivo de que o discurso da e sobre a paz se tornou muito mais difícil porque se afirmou um cenário alternativo, sombrio e dirigido ao confronto.
A própria política é concebida como um conflito entre interesses competitivos e inevitável contraposição. Como reafirmar a vantagem comum e o interesse do compromisso e da convivência nesse contexto psicológico e político? Dado que ninguém quer se render, qual é hoje o discurso mais convincente sobre a paz?
A primeira coisa a dizer é que a guerra é inútil e não oferece nenhuma satisfação nem ao agressor nem mesmo ao agredido que resiste. Em outras palavras: a guerra não convém porque nela não há ganho. Basta olhar para os conflitos das últimas décadas para perceber isso.
Nem mesmo Moscou está realmente tirando vantagem do que está fazendo nas suas fronteiras: nunca reconquistará todos os territórios da URSS; não recuperará a influência que teve; nunca mais será reconhecida como porta-voz da outra metade do mundo (como foi por um tempo).
Desde que o Ocidente se convenceu de que tinha vencido a terceira guerra mundial sem combater (e de poder impor os seus próprios modelos a todos), Moscou está tentando (de forma nosálgica e vitimista) retomar aquele antigo papel.
Não terá sucesso, mas nem mesmo o Ocidente pode iludir-se de permanecer unilateralmente o único formatar o mundo. O nosso planeta agora já mudou de forma incontestavelmente, é plural e multilateral, aliás, quase anárquico.
A história não volta para ninguém. Afinal, a guerra na Ucrânia é um conflito de retaguarda para ambos os lados: um gostaria de recuperar a posição anterior e o outro se ilude pensando que conseguirá manter a sua própria.
Na realidade ambos afundam, perdem espaço, prestígio e honra numa guerra absurda e mortal que os deixará mais pobres do que antes e sem vencedor. Portanto, é uma guerra pior do que inútil.
O mesmo se pode dizer do conflito israelense-palestino: já podemos imaginar que ninguém vencerá ou destruirá completamente o outro, nem o apagará do mapa, como tanto o Hamas como a extrema-direita supremacista israelense gostariam de fazer (com a diferença substancial que o Hamas visa o genocídio enquanto a extrema direita israelense ficaria satisfeita com uma limpeza étnica).
Todas as guerras do Oriente Médio demonstraram isso amplamente: só um acordo poderá colocar a situação em equilíbrio.
Alguns até argumentam que a guerra é uma forma de ordem, mas a história demonstra abundantemente o contrário.
O que resta depois de uma guerra (sempre inútil) é destruição, natureza arrasada, retrocesso econômico e ressentimentos que preparam a próxima.
Uma segunda coisa a dizer para construir a nova linguagem da paz é que a guerra não é um instrumento da política (feita por outros meios).
Pode parecer que sim, mas essencialmente trata-se de um instrumento completamente diferente e independente, que tende a tornar-se autônomo em relação à vontade daqueles que a fazem (quer a tenham decidido ou estejam sujeitos a ela).
A guerra é um mecanismo desvinculado do humano, que segue sua própria lógica. A prova é que uma vez iniciada é muito difícil pará-la, mesmo para quem a começou: muitos outros elementos entram em jogo e tornam seu término quase impossível. No começo sempre há uma decisão política, mas para terminá-la são necessárias muitas condições que correm o risco de torná-la permanente.
No passado o fim da guerra estava na vitória de uma das partes. Ainda se pensa assim, mas se trata de uma velha maneira de pensar: a vitória hoje tornou-se ilusória e fugidia e em qualquer conflito, existem demasiados atores híbridos que não podem ser derrotados porque nunca se declarariam derrotados (como o Hamas e os terroristas em geral).
Finalmente, também se pode dizer que a guerra não vale a pena porque deforma e deturpa aqueles que a travam: mesmo quem é vítima tende a se parecer com o carrasco. A guerra reduz todos aos mesmos comportamentos de assassinato e massacre.
Na guerra, todos nos tornamos iguais: os lados se confundem e mesmo quem está do lado justo (por exemplo, porque foi agredido) assume uma igual conduta de desprezo da vida e massacre.
Então não convém em nada, porque se acaba ficando igual ao agressor quando todo o restante se confunde, até as razões e os equívocos, num banho de sangue sem resultados. Então é melhor não fazer a guerra de jeito nenhum.
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Um banho de sangue sem resultados. Na Europa deslizamos para a guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU