16 Janeiro 2024
A carta é de José I. González Faus, jesuíta espanhol, publicada por Religión Digital, direcionada ao Papa Francisco, 14-01-2024.
Irmão Francisco: já lhe escrevi outras cartas que você não leu, usando o tom epistolar como gênero literário. Desta vez quiçá seja mais provável que o leia, pois me disseram que fará parte de um dossiê em seu apoio e defesa.
Bastaria eu dizer “obrigado” mil vezes. Mas como esta carta aparecerá num mundo e numa Igreja tão complexos como os de hoje, atrevo-me a acrescentar uma breve reflexão. Posso iniciá-la apelando ao seu passado, ao seu presente e ao futuro. Com uma linguagem mais espiritual, falando de fé, caridade e esperança. Vamos lá.
1. Do seu passado quero apenas invocar uma frase que seu biógrafo A. Ivereigh cita, quando você retornou a Buenos Aires após seu “exílio” em Córdoba. Parece que um padre veio falar com você, sofrendo de algum problema grave. E o fim da conversa foi este: “amigo, já passei minha noite escura. Acho que é a sua vez de passar a sua”.
Sua noite escura: você saberá, mas suspeito que foi aquela noite que o preparou para esses dias brilhantes. E eu gostaria que todos nós, os progressistas baratos, entendêssemos que o dia só é forjado a partir da noite, e que a noite pode se tornar “mais gentil que o amanhecer”.
2. Sobre o seu presente foi dito que você é mais apreciado por quem está fora da Igreja do que por quem está dentro. Isto pode ser verdade no nível individual. Mas não compartilho isso no nível social: porque ninguém o odeia mais e está travando uma guerra mais suja contra você do que aquele sistema capitalista, que você descreveu como um sistema que mata.
Que ele tenha conseguido recrutar e administrar alguns eclesiásticos (até mesmo cardeais) também não é tão estranho. Para crucificar Jesus, o Império Romano já obteve a ajuda de dignitários judeus (Anás, Caifás e outros) para condenar, em nome do judaísmo, o maior e mais judeu de toda a história de Israel. Nada de estranho, então, se você, que quer retornar ao evangelho, for atacado em nome do evangelho...
Mas gostaria de chamar a atenção, mais uma vez, a todo esse progressismo individualista, que quer "tudo e agora", que o critica com por não fazer "agora", coisas pelas quais não ousaram criticar quando os seus antecessores não o fizeram. E que olham apenas para o seu interesse particular, sem considerar as circunstâncias históricas e a totalidade da Igreja. Acho que isso deve ter lhe machucado muito mais do que o anterior. Mas enfim: você já conhece a nossa massa (‘pasta’) humana. Creio que não lhe faltou caridade para com eles. E me pergunto se, diante de tantas críticas destes e daqueles de antes, você nunca orou para que “Pai, perdoe-os porque eles não sabem o que estão dizendo”.
3. Quanto ao futuro imediato, lhe peço novamente três mudanças que me parecem muito possíveis e fáceis: que no Credo não se diga “qui ex Patre filioque procedit”, mas “qui ex Patre, per Filium procedit” (e que me parece de grande importância ecumênica).
Que você proíba ser chamado de Santidade ou Santo Padre. E a canonização de alguns modelos não católicos como D. Bonhoeffer ou Gandhi. Acho que isso está em suas mãos e ouso repetir. Mas, como parte desta carta, gostaria de destacar outros dois pontos que talvez você não consiga mais fazer, mas pode sair focado.
A primeira é a revisão de todo o sistema de nomeação de bispos, recuperando a prática da primeira Igreja e dando voz às igrejas locais. Isto pode ser complicado hoje porque (como diz algum sociólogo) a nossa falsa democracia corrompeu as eleições, ligando-as não ao “programa”, mas ao “espetáculo” e substituindo “apoiadores” (que podem ser críticos) por “fãs” (que são cegos e acríticos). Talvez seja necessário nomear uma comissão para estudar como fazê-lo. Mas creio que é necessário devolver às igrejas locais toda a iniciativa possível na eleição dos seus pastores.
E o segundo ponto é que o Bispo de Roma deixe de ser “chefe de Estado” e se limite a ser mais um cidadão do Vaticano. Sei que assim se perdem algumas vantagens práticas, mas se evitará muitas condições que dificultam a sua atividade pastoral. Evocando a carta de São Bernardo a Eugênio III, você apareceria novamente como “sucessor de Pedro e não de Constantino”. E aludindo ao querido irmão Pedro Casaldáliga que falava de “João Paulo, apenas Pedro”, você (ou o seu sucessor) se tornaria “Francisco Pedro en ciernes”.
Perdoe esse pequeno incômodo, irmão Francisco, e voltemos ao início: “obrigado, obrigado, muito obrigado”. E que o Senhor abençoe a todos nós.