21 Dezembro 2023
Mais do que um papa reformador, mais do que implementar uma verdadeira reforma de uma instituição milenar, Francisco se fez promotor na Igreja de um movimento capaz de modificar os equilíbrios consolidados, de modo que “nada poderá ser como antes”.
A opinião é do sociólogo italiano Franco Garelli, professor da Universidade de Turim, em artigo para o jornal La Stampa, 19-12-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dez anos depois de ter sido eleito ao sólio de Pedro, multiplicam-se as avaliações de um pontificado rico em novidades, mas também em tensões. Por si só, o cartão de visita já permitia pressagiar que ele não era propriamente uma figura de transição, tendo sido acolhido como um papa imprevisto, mas também imprevisível.
Não só porque vinha de longe, tanto em termos geográficos (da “periferia do mundo”) quanto no que diz respeito às dinâmicas da Cúria Romana e do “palácio”; mas sobretudo porque, desde seu primeiro documento (a exortação apostólica Evangelii gaudium), deixou clara a imagem da Igreja na qual ele mais se reconhecia: uma Igreja “em saída”, mais mãe do que juíza, capaz de propor – também na modernidade avançada – “o frescor original do Evangelho”.
E ainda uma Igreja que muda suas estruturas a partir de uma profunda conversão pastoral e missionária; portanto, mais voltada a se encarregar das feridas humanas da maioria do que da segurança da minoria.
É desnecessário dizer que esse programa de reforma não podia deixar de encontrar muitas resistências por parte daqueles que temiam uma rendição da Igreja de Roma sobre a questão da verdade, da centralidade do magistério, da defesa dos “valores inegociáveis”. Ou o delineamento de uma Igreja mais “hospital de campanha”, isto é, mais comprometida com a promoção humana e social do que com o anúncio da mensagem religiosa ou com a afirmação da distinção cristã na sociedade secularizada.
A reforma da Igreja, contudo, foi um objetivo controverso na visão de Bergoglio. Mais do que um papa reformador, mais do que implementar uma verdadeira reforma de uma instituição milenar, Francisco (também em relação à idade nem tão jovem em que se tornou bispo de Roma) se fez promotor na Igreja de um movimento capaz de modificar os equilíbrios consolidados, de modo que “nada poderá ser como antes”.
Inserem-se nesse quadro tanto o convite às conferências episcopais das diversas nações a assumirem uma maior autonomia da Cúria Romana quanto a utilização do Sínodo como uma forma colegial de enfrentar as questões mais relevantes que interpelam hoje o conjunto da catolicidade hoje (sobre os temas da família, sobre a questão dos jovens, sobre o modo de governo da Igreja universal).
Outro ponto qualificador de seu pontificado diz respeito ao tema da inculturação da fé, sobre o qual ele recordou várias vezes que “o cristianismo não dispõe de um modelo cultural único” e que o rosto da Igreja é “pluriforme”. Não se pode, portanto, esperar que todos os povos, ao expressarem a fé cristã, se reconheçam no modo como ela foi vivida na Europa em alguns momentos da história; daí o desejo de uma Igreja capaz de dar voz às reivindicações dos vários continentes, atenta à sensibilidade das diversas comunidades nacionais e locais.
A importância atribuída à fé vivida é outro traço distintivo da sensibilidade deste papa, legado de uma cultura que sempre valorizou a piedade popular, as devoções do coração, uma religiosidade que se alimenta de sentimentos e de paixões. O Papa Francisco recordou muitas vezes o valor da fé simples, que ilumina e orienta a existência; uma dimensão que ele propõe também na modernidade avançada, até mesmo naquele mundo desenvolvido que não parece mais interessado no mistério cristão ou que, no mínimo, considera a religião mais como um objeto de debate público do que como uma característica da vivência.
Muitas críticas dizem respeito à ideia de que o Papa Francisco está mais atento às questões sociais do que às espirituais, mais envolvido nas dinâmicas da cidade terrena do que propenso a chamar as pessoas e os fiéis para o lado mistérico e transcendente da vida. A atenção aos últimos, ao descartados da sociedade, certamente é uma opção específica deste pontífice, que, no entanto, ofereceu muitas vezes testemunhos religiosos fecundos.
Como a experiência das missas em Santa Marta às 7h da manhã durante a pandemia (transmitidas pela TV pública), quando muitos fiéis (e também muitas pessoas laicas) se defrontaram com uma figura capaz de lembrá-los das coisas que importam e da riqueza da espiritualidade cristã.
Depois, há a grande abertura do pontífice às questões éticas, a atenção ao tema dos divorciados e recasados, ao reconhecimento dos casais homossexuais e, mais em geral, àqueles que hoje vivem situações que a Igreja considerou “irregulares” durante muito tempo.
É justamente de ontem, dia 18, a notícia de que o Vaticano disse “sim à bênção aos casais gays”, embora admitindo que não se trata de um matrimônio. É um passo à frente na direção de uma Igreja mais inclusiva, de uma sensibilidade eclesial que – como lemos em uma passagem do Sínodo dos Bispos sobre a família de alguns anos atrás – reconhece que “é possível estar dentro da regra sem uma real vida de fé e é possível estar fora da regra, mas ter uma busca de Deus que merece ser considerada e valorizada”.
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O sim do papa aos casais gays: um gesto contracorrente. Artigo de Franco Garelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU