15 Dezembro 2023
"A recusa em revogar o famigerado NEM, a composição do MEC, a presença das fundações educacionais do grande empresariado no governo criam um caldo de cultura extremamente perverso para milhões de jovens brasileiros oriundos da classe trabalhadora", escreve Jorge Alexandre Alves, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Jorge Alexandre Alves integra a comissão ampliada do Movimento Nacional Fé e Política. É sociólogo, mestre em Educação pela UFRJ, professor do IFRJ e da rede estadual do Rio de Janeiro.
Ontem fomos "brindados" com mais uma derrota do campo popular na Câmara dos Deputados. Não foi a primeira e nem será a última. Contudo, no que se refere a Educação, demonstra-se a enorme contradição existente dentro do MEC neste debate. Como o ministério não está descolado de quem governa, desculpem-me os companheiros petistas, mas não dá para negar o quanto foi lastimável o papel do governo Lula nessa discussão do Novo Ensino Médio (NEM). De certa forma, o desfecho era até previsível.
A sensação que muitos de nós, professores da Educação Básica, temos é que fomos abandonados pelo governo federal. A recusa em revogar o famigerado NEM, a composição do MEC, a presença das fundações educacionais do grande empresariado no governo criam um caldo de cultura extremamente perverso para milhões de jovens brasileiros oriundos da classe trabalhadora.
Ao fim e ao cabo deste primeiro ano de governo, parece-nos a todos que o que o Sr. Ministro da Educação, Camilo Santana, e o governo fizeram foi um jogo de cena conosco. Não sabia o governo, olhando para o Congresso Nacional, que Arthur Lira e o Centrão cometeriam o escárnio de por o autor do NEM como relator da revisão do mesmo? Não sabiam os ministros do Planalto que os secretários estaduais de educação, a imprensa e o Todos Pela Educação iriam apresentar objeções?
Com todo respeito aos que estão no governo, mas quem escreve tem 25 anos de magistério e 18 anos na rede pública, lecionando no Ensino Médio. O governo não escutou profissionais da educação, pesquisadores e as vozes da Ciência na Educação brasileira, muito menos os estudantes. Se tivessem escutado, Camilo Santana jamais teria posto os pés sequer no saguão de entrada do MEC.
Nem ao menos para manter as aparências ele se manifestou. Jogou parado o tempo todo. E, certamente, após o estrago feito, irá candidamente dizer que fez tudo que estava ao alcance dele do ministério. Que nada poderia fazer diante do parlamento. Ou seja, se exime de responsabilidade, afinal houve uma consulta pública, não?
Só há duas alternativas que expliquem uma postura tão omissa: Ingenuidade ou comprometimento ideológico com as concepções que subjazem o NEM. Sendo ingênuo a ponto de não prever esse desfecho, Camilo não poderia ser Ministro, afinal o cargo exige certa expertise em relação as disputas políticas.
Estando comprometido ideologicamente com concepções empresariais na educação - como mais parece ser - sua nomeação para o MEC é muito discutível. E um erro grave do Presidente Lula por ter posto no comando de uma área tão fundamental para um país alguém que parece estar mais comprometido com a agenda empresarial na área do que com um programa popular para a educação brasileira.
O que nós passamos na última década, a perda de capilaridade social dos movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda, a perda das ruas para o fundamentalismo religioso e a extrema direita deveria ter nos ensinado que a luta destes tempos é mais que superar o flagelo da fome. É maior que incluir pela renda os historicamente excluídos do Brasil. Isso foi feito com eficiência nos anos 2000 e ainda assim vivemos uma onda catastrófica de retrocessos.
Como nunca na história recente, a luta é passa por corações e mentes. Encher os bolsos da classe trabalhadora de dinheiro de nada adiantará se eles continuarem a acreditar na ideologia do empreendedorismo ou que são empresários de si mesmo. A continuar esse "zeltgeist" liberal, seremos derrotados logo ali na frente. E de forma mais contundente e, quiçá, definitiva.
O debate a respeito do Ensinou Médio não se resume apenas a uma questão de carga horária das matérias escolares. Nem a respeito do espanto diante das coisas bizarras que temos visto nas redes estaduais. Não é somente pela defesa da carreira docente e do magistério, ainda que essas coisas sejam muito importantes.
A gravidade deste debate reside na possibilidade concreta de futuro dos filhos e filhas da classe trabalhadora. Está nas chances de transformar estruturalmente este país, a fim de termos uma sociedade igualitária e justa. Jogar a educação nas mãos dos educatecas do ensino e dos burocratas da gestão pode representar a condenação da juventude empobrecida deste país à reprodução de sua condição subalterna. Não apenas mantendo, mas aprofundando a herança nefasta da desigualdade, do racismo estrutural e da mentalidade escravocrata e elitista que ainda sangra de morte o Brasil.
O Novo Ensino Médio aprofunda algo gravíssimo que testemunhamos hoje na escola básica, a total perda de sentido da escolarização por parte de seus destinatários e sujeitos principais, os estudantes. Quem lida com adolescentes e jovens em certas realidades escolares nas redes públicas de ensino sabe o que isso significa, bem como as suas consequências.
A Escola Básica, notadamente o Ensino Médio, cada vez mais faz menos sentido na vida dessa garotada. Lidamos com uma geração adoecida, temos um corpo de profissionais da educação na iminência de um colapso nervoso e uma gestão irresponsável, abusiva e tóxica.
O NEM, ao consagrar pressupostos neoliberais aplicados à Educação, aprofunda e compromete o futuro. Junto com ele vem uma pedagogia das competências que acirra a competição ao invés de reforçar a solidariedade, que estimula o individualismo, a lógica do empreendedorismo como único meio de sobrevivência para a população, negligenciando a luta por direitos.
Para as escolas públicas, reforça a lógica da meritocracia, reduz investimentos e bota na conta do professor as mazelas do ensino. Ao invés de reformar o ensino, quer reformar o docente e acaba por deformar a educação.
Lamentavelmente, o desenlace deste episódio reforça ainda mais a fragilidade deste mandato presidencial, a hipertrofia política do parlamento e a tibieza de um Ministro da Educação que ou é pouco comprometido com uma escola pública de qualidade ou pouco entende de Educação. No mínimo, desconhece o cotidiano da escola de Ensino Médio, os dramas e tensões dos jovens e falta de perspectiva destes rapazes e moças, sobretudo nas periferias.
É muito triste ser testemunha ocular da tragédia do NEM a partir da vivência diária do chão da escola. Estamos perdendo uma geração inteira de jovens, que talvez aprendam a fazer “brigadeiro gourmet” ou, quando muito, saberão "o que rola por aí". Mas que dificilmente terão acesso à universidade pública ou aos institutos federais.
Estamos condenando nossos jovens a uma inserção subalterna e precarizada no mundo do trabalho. Pela necessidade extrema de sobrevivência, já estão se tornando presas fáceis da ditadura dos aplicativos de entrega, dos algoritmos da uberização do trabalho. Absolutamente vulneráveis, sem direitos e sem futuro.
Mais triste ainda é saber que em um governo de esquerda, sob a liderança do maior líder popular da história brasileira, do grande estadista do século XXI no Sul Global, a possibilidade de reverter esse quadro trágico foi jogada na latrina pela infeliz escolha de um ministro e seu imobilismo em movimento.
Esse desfecho melancólico é revelador de nossa contradição política. No campo da Educação, reforça aquela célebre frase de Darcy Ribeiro, que a crise da Educação não é uma crise, mas sim um projeto. Pois bem, neste final de ano, esse projeto trágico se torna um pouco mais vitorioso.
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A crise da educação: um projeto que está vencendo. Artigo de Jorge Alexandre Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU