Ao zerar desmatamento e ampliar escala de restauração e de agricultura de baixo carbono, país poderá alcançar 80% de meta net zero até 2050.
A entrevista com Aline Soterroni é de Elizabeth Oliveira, publicada por ((o))eco, 06-12-2023.
Graduada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente (SP), com mestrado, doutorado e primeiro pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a matemática Aline Soterroni se orgulha da sua formação acadêmica no Brasil. Com experiência em modelagem econômica regional do uso da terra dirigida à avaliação quantitativa de políticas ambientais e climáticas, a cientista ambiental está atuando como pesquisadora na Universidade de Oxford, há dois anos, de onde tem focado os interesses de investigação para as interfaces desses grandes temas com a realidade brasileira. Dessa imersão em duas frentes de atuação na Agile Initiative nessa instituição britânica, ela liderou um artigo recém publicado na revista Global Change Biology, envolvendo 13 coautores de oito instituições brasileiras e estrangeiras que apontam caminhos para o Brasil alcançar as metas no âmbito do Acordo de Paris, até 2050.
Dentre os grandes resultados apresentados na publicação, os pesquisadores afirmam, com base em projeções matemáticas, que a meta de emissões líquidas zero (net zero) de dióxido de carbono (CO2) e outros gases de efeito estufa (GEE) poderá ser atingida em 80% com soluções baseadas na natureza (NbS, na sigla em inglês). Isso significa reduzir, em média, 781 milhões de toneladas anuais de CO2 com investimento em NbS, em 30 anos. Os cientistas também identificaram que somente a implementação do Código Florestal não será suficiente para alcançar os objetivos brasileiros de longo prazo, já que esse arcabouço legal dirigido às áreas protegidas em propriedades privadas só daria conta de 38% do net zero nacional, até 2050.
Antes de seguir para Dubai, para participar da 28ª Conferência das Partes da Convenção do Clima da ONU (COP-28), a pesquisadora conversou com a reportagem de ((o))eco, sinalizando outras questões-chave que o Brasil precisa priorizar para aproveitar um potencial único que possui de liderar pelo exemplo os esforços globais pela estabilização do clima.
Aline Soterroni. (Foto: Acervo pessoal)
O que seria possível destacar como mais inovador nos resultados de pesquisa recém-publicados em artigo da revista Global Change Biology?
Os números de 80% [para alcance de net zero com soluções baseadas na natureza até 2050] e os do Código Florestal [só reduz 38% da lacuna de net zero até 2050] representam resultados importantes para se pensar em meta de longo prazo [do Brasil no Acordo de Paris] e na vantagem única que o país tem de ficar até 20 anos sem a necessidade de implementar soluções de engenharia de emissões negativas, em larga escala, que são custosas e ainda não estão maduras. Não só vai ser menos custoso como vai trazer uma série de benefícios para a segurança alimentar e energética, para combater as crises de clima e de perda de biodiversidade. Com isso o Brasil pode liderar pelo exemplo. É uma questão de vontade política.
Já existe um entendimento no Brasil de que o seu próprio potencial de soluções baseadas na natureza pode fazer a diferença na agenda climática? Qual a sua percepção sobre esse nível de entendimento, ou não, no país?
Sim. Tem um entendimento de que as soluções baseadas na natureza, como combate ao desmatamento e restauração, são fundamentais. Isso vem, sobretudo, do perfil de emissões brasileiras [têm maior representatividade em relação às mudanças no uso da terra, incluindo desmatamento e outras práticas que degradam as florestas]. Mas a importância do estudo está justamente em trazer o mundo para essa discussão. A gente tem um entendimento de que essas soluções são importantes. Mas como elas são importantes? Em quanto elas podem contribuir? Aí nós usamos esse cálculo matemático, essa modelagem integrada, para dizer que até 80% da meta brasileira de longo prazo do Acordo de Paris [a meta net zero] podem ser alcançadas com soluções baseadas na natureza.
Quais são os outros esforços necessários ao país para zerar as suas emissões, no âmbito do Acordo de Paris, no longo prazo?
É preciso um esforço em todos os setores. Mas o que vai dar mais resultado, e o estudo mostra isso, é acabar com o desmatamento e restaurar vegetação nativa em larga escala de forma que, inclusive, vá além das políticas nacionais. Um dos cenários que a gente investigou foi quanto à implementação rigorosa do Código Florestal, estimando que ela só reduz a lacuna para net zero em 38%, em 2050. De um lado, o Código Florestal é importante para cumprir as metas de curto prazo e até para aumentar a ambição brasileira, mas pensando no longo prazo não vai ser suficiente. É preciso pensar, planejar e implementar políticas além do Código Florestal. Mas tudo isso leva tempo. Por isso, o estudo traz essa perspectiva de longo prazo. E vale lembrar que net zero não está em políticas nacionais ainda. É um compromisso que o Brasil assumiu em documentos políticos como a NDC brasileira [as metas climáticas nacionais recentemente revistas], mas não está na legislação. A Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), por exemplo, não tem net zero. Seria muito importante incorporar.
Quais outros resultados do estudo podem ser destacados como orientações para processos de tomada de decisões no Brasil?
Se por um lado, o Brasil não precisa reinventar a roda, ele precisa investir em soluções baseadas na natureza e, além do Código Florestal, eliminar tanto o desmatamento legal como o ilegal e aumentar a sua meta de restauração. Com isso, o país pode ficar até 20 anos sem a necessidade de investir em soluções de tecnologia de emissões negativas que são custosas e ainda não estão maduras para serem implementadas em larga escala. Outros países para chegar no net zero não têm essa opção. Eles precisam implementar essas soluções. Então o Brasil teria uma vantagem única em relação a outros países. Além de ser menos custoso, as soluções baseadas na natureza podem ser implementadas imediatamente e trazem uma série de benefícios, não somente de redução de emissões, mas também de adaptação e aumento de resiliência aos eventos climáticos extremos que serão cada vez mais frequentes. Então não é nem leve dois e pague um. É leve um monte e pague um porque se reduz, adapta, cria resiliência e pode liderar pelo exemplo. Esse é o grande potencial do Brasil.
Quais são outras soluções que contribuem para fechar essa conta do net zero no longo prazo no Brasil?
Também é preciso ressaltar o papel de uma agricultura sustentável, muito para a resiliência do setor agrícola em relação a eventos climáticos que serão cada vez mais extremos. O Brasil já corrigiu a sua NDC, o desmatamento caiu em 22% na Amazônia, mas é preciso ir além. Eu sinto que o debate no país está muito no desmatamento e, como o estudo mostra, só desmatamento ilegal zero e 12 milhões de hectares de restauração, mais as políticas do Plano ABC+ não serão suficientes.
Como vê o fato de que o desmatamento da Amazônia vem caindo, mas o do Cerrado, por exemplo, vem aumentando?
Entendemos que nós viemos de um período muito difícil no Brasil, nos últimos quatro anos. Há um entendimento de que é um período de reconstrução, mas a expectativa é que o governo atual vá além disso. A gente olha com bons olhos a correção da NDC brasileira, a queda de 22%, mas em relação ao desmatamento, a ambição tem que ser desmatamento zero. Tanto o ilegal, como o legal. Quanto ao legal, a gente está falando sobretudo do Cerrado e também de outros biomas. Os níveis de Reserva Legal do Código Florestal são de 20% a 35% no Cerrado, contra 80% na Amazônia. Então o Código Florestal não vai ser suficiente para proteger o Cerrado. Em um dos resultados do estudo, com projeção de desmatamento entre 2020 e 2050, a gente mostra em um dos gráficos [em destaque abaixo], que com o cenário do Código Florestal, o Cerrado ainda vai ter muito desmatamento. Então é preciso pensar em políticas que vão além do Código Florestal, sobretudo, para o Cerrado que já perdeu a metade da sua cobertura florestal original e tem sido convertido a taxas alarmantes.
Imagem: Reprodução | ((o))eco
Quais são as vantagens do uso dessas modelagens que embasaram o estudo?
Uma das vantagens desse trabalho de modelagem é justamente essa de planejamento estratégico, de pensar nas próximas décadas. O ser humano tende a ser imediatista, mas numa trajetória de longo prazo, há muitos benefícios. Os custos no longo prazo serão muito maiores para mitigar do que se adaptar agora. E o Brasil pode mitigar e se adaptar ao mesmo tempo. Por conta das suas características e do seu perfil de emissões pode contar com soluções baseadas na natureza para atingir múltiplas agendas, tanto de clima como de biodiversidade. A gente também vive um período de queda muito alta de diversidade biológica. Cerca de 70% das espécies diminuíram no mundo como um todo e as soluções baseadas na natureza também ajudam a combater essa perda.
Como você avalia o momento de reconstrução das agendas socioambientais no Brasil no plano político-institucional?
É sim um momento muito oportuno. O Brasil tem uma série de janelas de oportunidades. Vai presidir o G-20 e vai sediar a COP-30, em dois anos. Ele pode mostrar boas soluções nesse sentido e ser um porta-voz. O país tem essa tradição de ser um porta-voz diplomático do Sul Global, mas ainda estamos nessa fase de reconstrução e como o estudo mostra é preciso ir além. Essa ferramenta de modelagem integrada, com a qual eu trabalho, pode ser importante para esse planejamento, identificando prioridades e setores-chave. Isso pode ajudar a direcionar investimentos. Mas isso também depende de uma combinação de esforços e de estudos, da academia e da sociedade civil. É bem complexo o desafio que temos pela frente, mas eu destacaria a importância dessa visão estratégica de longo prazo e de usar a ciência para ajudar a formular políticas públicas.
Como você avalia o avanço do fenômeno da desinformação envolvendo essas agendas com as quais trabalha mais diretamente?
Em termos de soluções baseadas na natureza, um problema que a gente enfrenta é o greenwashing. As empresas prometem atingir o net zero na metade do século, mas não apresentam estratégias robustas para isso, ou cortam o termo soluções baseadas na natureza e querem compensar as suas emissões com estratégias como monocultura de espécies exóticas. Então é preciso mudar a mentalidade porque os eventos extremos estão se tornando mais frequentes e a ciência para embasar políticas públicas precisa avançar. Tudo isso é desafiador para os pesquisadores porque requer muito tempo e a gente tem que se dedicar a escrever artigos. Então uma bandeira para termos cada vez mais pesquisadores se interessando por ciência para embasar políticas, poderia ser mudar o sistema de avaliar pesquisadores que estão nessa área para além das publicações científicas. O processo de publicação ainda é muito lento. Esse estudo, por exemplo, levou um ano para ser publicado. Para ter mais ciência nas políticas públicas, a gente precisa também melhorar esse processo de revisão [de artigos] e ter mais celeridade.
E como suprir demandas de divulgação científica em cenários de avanço da desinformação e de negacionismo científico?
Nesse caso eu tenho muita sorte de estar aqui em Oxford. Todos os projetos têm pessoas de comunicação. Todos os laboratórios têm pessoas para fazer essa ponte entre a ciência, a sociedade civil e os tomadores de decisão. Eu tenho acesso a media training e a ferramentas para me ajudar nesse aspecto porque eles entendem aqui que tudo isso é importante. Mas eu acredito que isso não seja realidade no Brasil. Então eu sou uma pesquisadora brasileira estudando assuntos de políticas para o Brasil, mas daqui da Universidade de Oxford. Eu amo o meu país e gostaria de ter lá as mesmas oportunidades que tenho aqui.
Na sua trajetória como pesquisadora, quais são os outros trabalhos mais significativos e como esses grandes temas vêm se interconectando nos últimos anos?
Eu trabalho nesse tópico desde 2012. Já tive um trabalho de avaliação do Código Florestal e outro envolvendo a moratória da soja no Cerrado. Esse estudo agora é um esforço não só do meu time de Oxford, mas de pesquisadores de várias instituições, das quais eu destacaria a colaboração com o professor Roberto Schaeffer, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), sobre modelos matemáticos para fazer cálculos de emissões a partir de políticas públicas. Precisamos pensar cenários futuros, traduzidos a partir de modelos de quantificações, em números para embasar debates importantes.
Destaques apontados pelo estudo publicado