04 Outubro 2023
"Paulo, seu pensamento complexo e muitas insondável (não tanto por dificuldade, mas pela multiplicidade e dinamismo das reflexões) poderia ser a chave para inverter o pensamento e as práticas políticas e sociais atuais", escreve Mauro Belcastro, filósofo italiano, pesquisador do Departamento de Estudos Históricos da Universidade de Turim, em artigo publicado por Il Manifesto, 30-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O livro de Corrado Augias sobre Paulo, lançado há algumas semanas pela editora Rai Libri (Paolo: l’uomo che inventò il Cristianesimo), não suscitou nenhum debate. Talvez era de se esperar. Por outro lado, quem estaria interessado em discutir um personagem que teria “inventado o cristianismo” e com ele um estado de opressão ética e política que dura há dois mil anos?
Mesmo assim, Paulo poderia surpreender por sua energia subversiva. Paulo, seu pensamento complexo e muitas vezes insondável (não tanto por dificuldade, mas pela multiplicidade e dinamismo das reflexões), poderia ser a chave para inverter o pensamento e as práticas políticas e sociais atuais. Ora, no livro de Augias, essa carga subversiva é completamente normalizada e sedada.
Corrado Augias. Paolo. L’uomo che inventò il cristianismo. Rai Libri (Foto: divulgação)
Augias apresenta uma interpretação da figura e do pensamento de Paulo que é parcial, mais que tradicional, e acrítica, que não leva em conta os estudos e reflexões que foram desenvolvidos sobre ele ao longo dos anos. As referências apenas a Bultmann são um exemplo: como se, em décadas de análise exegética, histórica, antropológica ou filosófica (tantos - e muitos mais - são os âmbitos em que muitos/as estudiosos/as refletiram sobre Paulo), apenas Bultmann e a tradição teológica e exegética alemã teriam dito algo sensato sobre Paulo.
Afirmações como aquelas sobre “Paulo, o inventor do cristianismo”, sobre “Paulo dotado de uma temperamento duro" e rabugento, em contraste com Pedro "homem profundamente bom", sobre Tiago (irmão de Jesus) “homem de dialética refinada”, mas também fanático e conservador, dedicado à "bugiganga judaica" (leia-se "a prática da Torá").... Bem, tudo isso destaca a antiga, criticada e justamente superada polarização a-dialética entre Paulo e o Judaísmo, entre Pedro e Paulo, entre Paulo e Tiago. Mas a história é mais complexa que isso e é também mais bonita.
Ora, não só Paulo era e sempre será um judeu do primeiro século, não só a sua história deve ser enquadrada justamente no mundo judaico complexo e articulado daquela época, de suas relações (muitas vezes conflitantes) com o que o cercava; Paulo é também alguém que, a partir da sua experiência, decidiu ser promotor de novas práticas de vida coletiva, baseadas na anarquia do Espírito de Deus, mas o dinamismo político paulino é completamente silenciado por Augias.
No entanto, esse aspecto central já havia sido destacado e explorado por Pasolini, Alain Badiou, Slavoj Žižek, Ward Blanton… A ideia de que poderia existir no Messias Jesus uma nova vida comum em que seriam superadas as divisões étnicas ("não há judeus nem gregos"), as divisões sociais ("não há mais escravos nem livres") e de gênero ("não há mais homem nem mulher"), em que a lei fosse negociação e em que a liberdade fosse a destruição da restrição.
O uso que Augias faz das fontes é, no mínimo, problemático, como se o uso dos Atos dos apóstolos para a reconstrução dos eventos de Paulo estivesse livre de problemas e não fosse afetado (como tem sido observado por muitos estudiosos) por uma certa modalidade adocicada e irênica de mostrar Paulo como o herói da fé. A ausência total de linguagem inclusiva é desarmante.
No capítulo 8 (com o inquietante título “Uma história de amor”), é feita menção a uma mulher, Lídia, que Paulo teria encontrado em Filipos. A rica e generosa Lídia é retratada por Augias como “fervorosa e sensual" e Paulo, um pouco antes, como um quarentão "vigoroso". A linguagem sedutora é apenas aparentemente camuflada, visto que no final do capítulo Augias espera que entre os dois, Paulo e Lídia, tenha havido algo mais do que um simples encontro, que Lídia o tenha "seduzido em todos os sentidos", de tal forma a permitir a Paulo, sempre tão tenso, um pouco de relaxamento. Mereceria escrever um artigo de crítica no mínimo por essas considerações de viés marcadamente patriarcal.
Uma última consideração diz respeito à importância da divulgação. O mundo acadêmico está cada vez mais desconectado da sociedade: a quem poderia interessar se um punhado de estudiosos faz pesquisas sobre Paulo? Em vez disso, a necessidade por parte de quem realiza trabalho acadêmico de reconectar-se com o lado militante que está no DNA da pesquisa é urgente, assim como a exigência, por um lado, de mostrar a todos que (no caso específico) Paulo tem muito a dizer à sociedade atual; por outro, restaurar a dignidade da divulgação, para contribuir, em última análise, para a quebra das barreiras elitistas, criar uma sociedade de partilha de conhecimento e, assim, realizar novas práticas coletivas que justamente o pensamento de Paulo poderiam sugerir.
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O desafio incompreendido de Paulo de Tarso. Artigo de Mauro Belcastro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU