26 Setembro 2023
"Nunca se deve ceder à ditadura do juízo alheio: corremos o risco de nos causar muitos danos. Porém, nesse caso, o Pe. Gian Luca tem o mérito de nos oferecer uma crítica importante: a primeira, explícita no seu escrito, diz respeito ao vínculo padre-Igreja, que é fortemente malsã quando o entendemos como uma identificação. E, em vez disso, a Igreja somos todos nós, todos os batizados. A segunda, mais implícita, mas ao meu ver consequente, diz respeito a um problema que efetivamente existe independentemente de como as pessoas nos veem: a identidade do padre", escreve Francesco Cosentino, teólogo, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e membro da Secretaria de Estado do Vaticano, em artigo publicado por Settimana News, 23-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há poucos dias o padre Gian Luca Rosati, pároco da diocese de San Benedetto del Tronto, colocou em seu blog uma breve reflexão sobre a figura do padre, que teve ampla repercussão nas redes sociais e, recentemente, também no jornal da Conferência Episcopal Italiana (CEI), Avvenire. O texto não tem a pretensão de fornecer-nos reflexões aprofundadas de tipo teológico, eclesial ou pastoral sobre a figura do padre, mesmo assim estas últimas estão de alguma forma implícitas e emergem do estilo coloquial que o Pe. Gian Luca, não sem uma deliciosa e mordaz ironia, usa para apontar uma questão que deveria interessar a todos nós: o padre.
Já foi escrito e falado de tudo sobre a figura do padre. Às vezes, as reflexões refletem visões demasiado parciais ou visões eclesiológicas e pastorais limitadas, mas, mesmo independentemente disso, acontece que o padre, colocado sob a lupa do público, é visto de maneiras tão diferentes que corre o risco de uma verdadeira crise de identidade.
Gian Luca nos transmite muito bem disso, com um sorriso nos lábios: o padre é aquele que preenche os registros, aquele que dá permissão para ser padrinho ou madrinha, o “camarada” que organiza jantares e viagens ou o policial que vigia a escola dominical; mas obviamente é também aquele quer prega uma coisa e pratica outra, que tem que cuidar da manutenção de caldeiras e telhados e que em tudo isso também deve sorrir sempre e estar disponível, caso contrário... "não reclame que a igreja está vazia".
Nunca se deve ceder à ditadura do juízo alheio: corremos o risco de nos causar muitos danos. Porém, nesse caso, o Pe. Gian Luca tem o mérito de nos oferecer uma crítica importante: a primeira, explícita no seu escrito, diz respeito ao vínculo padre-Igreja, que é fortemente malsã quando o entendemos como uma identificação. E, em vez disso, a Igreja somos todos nós, todos os batizados. A segunda, mais implícita, mas ao meu ver consequente, diz respeito a um problema que efetivamente existe independentemente de como as pessoas nos veem: a identidade do padre.
Pode-se dizer que “como as pessoas nos veem”, por mais exagerado ou parcial e por mais contaminado por visões inadequadas da Igreja, é o indicador de um problema que diz respeito à identidade real do padre, que hoje parece estar em grave crise, que precisa reencontrar o seu centro, que há tempo sofre as incursões de uma considerável complexidade – cultural e eclesial – a ponto de se tornar híbrida, flutuante, caótica. Em última análise, cada um de nós encarna “um tipo”, um “modelo” de padre, acentuando alguns aspectos mais do que outros, mas é como se toda essa rica variedade de figuras presbiterais e ministeriais não tivesse um pano de fundo comum, uma base similar, uma base compartilhada.
Também sobre esse tema, na realidade, estamos hoje no início de uma nova temporada cultural e eclesial. As velhas formas de cristianismo e as velhas representações de Deus e da fé desaparecem, mas essa realidade nos é dada, como nos ensina a história bíblica, para a nossa purificação, a nossa renovação e o nascimento de algo novo que o Espírito nos quer sugerir e que devemos estar disponíveis para acolher. Se um mundo desaparece – afirmava André Fossion anos atrás – é porque outro está chegando e, portanto, “não é o fim do cristianismo. Sem minimizar a crise de transmissão que envolve a fé, existe também um cristianismo que avança. […] O nosso tempo, de fato, apresenta-se como uma nova oportunidade para o Evangelho, desde que seja possível fazê-lo ressoar de uma maneira nova aos ouvidos dos nossos contemporâneos” [1].
Devemos então perguntar-nos: estamos dispostos, também em vista do Sínodo que se aproxima, a nos questionar realmente, como o Papa Francisco nos convida a fazer, sem fechamentos e sem medos, sobre como fazer ressoar o anúncio do Evangelho de uma nova forma? E nos perguntar em relação a essa tarefa: que forma de Igreja precisamos? Qual revitalização dos ministérios na Igreja? Qual paróquia? E, voltando ao nosso tema, como reler, rever, reformular o ministério do padre? Pode continuar a ser pensado como fizemos até agora?
Essas questões não podem mais ser adiadas e não dizem respeito a aspectos secundários ou simplesmente ministeriais, mas à própria identidade do presbítero, implicando assim um aprofundamento e uma releitura da doutrina sobre o sacramento da Ordem. Apenas a título de síntese e para estimular uma eventual reflexão sucessiva mais aprofundada sobre cada aspecto, gostaria de sinalizar algumas questões urgentes relativas à identidade do presbítero.
Existe uma distância, ou melhor, um “desnível”, entre o padre ideal que cada candidato à Ordem imaginou e internalizou no seminário, e a realidade efetiva em que depois acaba se vendo: as expectativas e os ideais muitas vezes se chocam com situações diferentes, que geram decepções, desgastes e solidões.
Domenico Cambareri, em seu belo texto Contro Don Matteo. Essere preti in Italia, não usa meias palavras: é preciso vigiar aquela “propaganda eclesiástica” que retrata a figura do padre de forma angelical e “a partir das expectativas das pessoas”, impondo sobre os ombros do jovem padre o peso do ideal da perfeição e de uma vida “totalmente dedicada” (uma retórica por vezes cheia de violência ideológica que depois esmaga as pessoas) para a atividade pastoral. Analisando a figura popular do sacerdote televisivo, Cambareri afirma que “Dom Matteo não se apaixona, não tem dificuldades para rezar, não briga, não duvida, não desabafa com um amigo, não sai de férias, não fala palavrões... As histórias dos padres reais são bem diferentes. Os padres reais quando usam batina é porque são fãs do latinorum… os padres reais têm dúvidas de fé, às vezes abandonam o ministério, sofrem devido ao celibato, têm problemas com álcool, apaixonam-se, brigam com Deus e com o papa-bispo-presbitério-povo” [2].
Perguntemo-nos: não seria a própria doutrina sobre o padre, a forma como descreve a sua missão, a associação quase asfixiante demais com a mediação de Cristo, que gera, no padre e no imaginário coletivo, um ideal demasiado exagerado e tendente ao perfeccionismo? Não se deveria esquecer que nesse aprofundamento doutrinal a a importância desse ministério e de seu vínculo com Cristo sacerdote e pastor se encarna numa humanidade frágil e se ativa apenas no caminho comum do Povo de Deus? E tudo o que em torno da figura do padre foi gerado por um mundo sagrado e religioso não faria surgir no próprio padre – na sua psique e na sua espiritualidade – o ideal de “ter que ser” perfeitos e impecáveis?
A formação do seminarista e a vida do padre deveriam, ao contrário, evitar a ansiedade de desempenho religioso, de entender a missão como uma série de deveres externos a cumprir para atingir um padrão e do desempenho do apostolado através da interpretação errônea do "se eu faltar, tudo desmorona".
Pode-se morrer de perfeccionismo, assim como pode-se ser vítima dele – precisamente por causa daqueles atributos que as pessoas estão habituadas a dispensar – de uma imagem ideal e determinante do padre. Eventualmente, porém, os padres muitas vezes correm o risco de ler a si próprios e ao seu ministério numa concepção sagrada do sacerdócio ordenado que de alguma forma os reveste com uma aura divina e os coloca num pedestal em comparação com os outros. Essa é a tentação do ‘liderismo’, que, se quisermos, é uma das facetas do clericalismo.
Enquanto vivemos na chamada condição pós-moderna, que inaugurou um tempo plural e incerto, muitas vezes sente-se a necessidade de “identidades fortes” [3]e, para os padres – muitas vezes os mais jovens – esta pode ser uma grande tentação. Mas isso depende, mais uma vez, do fato de o padre ainda hoje estar “demasiado no centro”. É assim porque a atual configuração eclesial e paroquial é ainda fortemente piramidal, fundada no padre que continua a assumir um papel predominante e deve presidir a tudo, mesmo às questões administrativas e burocráticas, revendo consequentemente uma infinidade de solicitações e tornando-se de fato aquele que resume em si toda a ministerialidade da Igreja.
Ainda podemos pensar num ministério presbiteral como esse, como o de um único homem no comando? Reflete a vontade de Jesus, a visão do Evangelho, a eclesiologia do Vaticano II? É adequado às factuais condições geográficas, culturais e pastoris? Não seria necessário alargar finalmente a ministerialidade laical (trata-se de uma verdadeira empreitada depois de anos de cristalização) e aprender, mesmo entre os padres, a pensar, planejar e trabalhar juntos? O padre que permanece obsessivamente no centro sabe das muitas coisas a fazer, das suplências a honrar, dos ritmos de vida acelerados, a ponto de ficar sobrecarregado, com os compromissos pastorais e o numeroso arquipélago de missas a celebrar (mas quando repensaremos isso também?) e, além disso, em contextos muitas vezes descristianizados ou fragmentados, onde grande parte desse esforço parece ser desperdiçado.
Tudo isso gera aquela sensação generalizada de desconforto e de cansaço físico e mental que conhecemos como burn out. Cambareri afirma que o padre é vítima da ideologia que o enquadra há décadas, mesmo na Igreja, como líder indiscutível, numa espécie de jogo desgastante onde o exercício do poder e a generosidade com que se entrega estão sempre aquém das solicitações e das exigências pastorais que as pessoas lhe apresentam: trata-se de uma armadilha implacável. Ele deve ser “pobre mas não desleixado; acolhedor, bem-humorado e compreensivo; deve estar imerso no mundo mas não se envolver na política; companheiro dos idosos mas apto a estar com os jovens; não ser centralizador, capaz de relacionamentos, mas líder quando necessário; próximo dos pobres sem se deixar enganar; homem de oração, mas com conhecimentos de ciências humanas; capaz de pregar, permanentemente formado, guardião das tradições;, em saída, na soleira, na janela, integrado, se resguardar das mulheres, das amizades com os leigos, sempre disponível, não irritado, capaz de diálogo, de perdão e – crucial para os bispos – sábio administrador econômico” [4].
Mas seria tudo isso possível?
Não é preciso gastar muitas palavras para justificar a importância da formação humana, que inclui as emoções e os afetos do padre. O psiquiatra Raffaele Iavazzo dedicou a isso um estudo precioso, principalmente no que diz respeito ao insuficiente amadurecimento emocional e afirmou: “Hoje em dia, o presbítero, ou qualquer outra pessoa religiosa, tem de lidar com condições físicas, políticas e culturais pelo que é necessária uma boa tolerância à frustração, com uma capacidade suficiente para elaborar as limitações e os insucessos, sem vivenciá-los sempre como uma responsabilidade pessoal... O que observo em muitas situações é que falta a linguagem adequada para expressar as dificuldades e o corpo parece ser um bom atalho para comunicar as coisas que não vão bem e das quais muitas vezes nem sequer se tem consciência. Às vezes só se quer que alguém cuide de nós, porque estamos cansados de sufocar pela enésima vez as nossas necessidades adiadas, de antepor o serviço aos outros às nossas exigências pessoais" [5].
O discurso precisa ser bem aprofundado: às vezes há uma espécie de insano heroísmo, mascarado por um falso zelo religioso e por aquela concepção de autocentrismo que foi mencionada acima, que às vezes impede o padre de se sentir à vontade nas suas próprias emoções, de expressá-las mesmo quando for inconveniente, de lidar com frustrações e fracassos como todas as pessoas deste mundo, sem disfarçá-los com falso pietismo; entre parênteses: pietismo péssimo quando afirma que “essa é a vontade do Senhor” ou “é preciso carregar a cruz” e assim por diante.
Para uma formação que esteja à altura dos desafios emocionais e afetivos, principalmente nos dias de hoje, precisamos repensar também os locais e os percursos da formação. Iavazzi afirma que os seminários desempenharam por muitas décadas uma função louvável; no entanto, “separam os candidatos ao sacerdócio da sua comunidade familiar e social, enquanto é no contexto comunitário que se desenvolve a capacidade de viver relações que expressam compreensão e afabilidade, maturidade oblativa, disponibilidade para amar e deixar-se amar. A melhor comunidade educativa para um candidato ao sacerdócio é aquela que se configura num contexto vital... Seria desejável, na precoce experiência pastoral dos candidatos ao sacerdócio, introduzir estadias prolongadas em contextos familiares de particular significado: um estágio qualificado e diversificado como acontece com os estudantes de medicina, direito, das ciências da educação etc., para experienciar as diversas formas do futuro ministério, mas sem preconceitos, não clerical, efetivamente enraizados na vida da comunidade aberta ao mundo" [6].
A forma como as pessoas nos veem refere-se, portanto, ao problema subjacente, aquele mais urgente e ainda pouco abordado: quem realmente é o padre e de que padre precisa a Igreja do futuro.
[1] A. Fossion, Il Dio desiderabile. Proposta della fede e iniziazione cristiana, EDB, Bologna 2011, p. 31.
[2] Ibidem, p. 48-50.
[3] Cf. Z. Bauman sobre esses temas, La società dell’incertezza, Il Mulino, Bologna 1999; Id., Modernità Liquida, Laterza, Roma-Bari 2008.
[4] D. Cambareri, Contro don Matteo. Essere preti in Italia, EDB, Bologna 2021, p. 57.
[5] R. Iavazzo, “Pastori nuovi, nuovi pastori”, in Il Regno 2/2021, p. 53-59.
[6] Ibidem, 62.
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Que padre, para que Igreja. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU