20 Setembro 2023
O Rio Grande do Sul viveu, no início de setembro, sua maior tragédia climática desde 1959, quando 94 pessoas morreram nas cidades de Candelária e Sobradinho, no Vale do Rio Pardo.
A entrevista é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 18-09-2023.
De acordo com a Defesa Civil gaúcha, devido às enchentes que se abateram no estado, 48 pessoas perderam suas vidas. Desde junho deste ano, o estado passou por três situações alarmantes. O primeiro foi o ciclone extratropical na costa do Litoral Norte na metade de junho, que deixou 16 mortos, e um segundo ciclone no começo da segunda quinzena de julho, com saldo de cinco mortes.
O Brasil de Fato RS conversou com o professor de Climatologia e Oceanografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor substituto do Centro Polar e Climático da mesma instituição, Francisco Eliseu Aquino, sobre essa situação.
“Está evidente, para nós, que os sistemas de alertas antecipados, que é uma agenda internacional para que o maior número de países aprimorem, seja também um esforço no Brasil. Isso requer ciência e tecnologia que nós temos, isso requer investimento, isso requer que políticas públicas incentivem essas condições”, destaca o professor.
O Rio Grande do Sul tem registrado, desde junho deste ano, no mínimo três catástrofes ambientais, sendo que o temporal do início de setembro foi o mais trágico, resultando, até o momento, em 48 mortes. Como climatologista, tu acreditas que isso poderia ter sido evitado?
Nós observamos eventos extremos com mortes. Teve a passagem de um ciclone e o sistema frontal associada que desenvolveu tempestades na região de Caraá e Maquiné, com 16 mortes. Agora mais 48, etc. Como climatologista, eu tenho que admitir, temos que assumir que esses eventos poderiam ser evitados, porque os eventos extremos, ou a previsão do tempo e eventos extremos, tem acontecido de uma forma bem boa, estão adequadas. Semanas antes, a gente já tem um cenário de quão difícil pode ser a organização da atmosfera para um evento desses extremos.
Evitar mortes é o maior desafio da humanidade. 50% dos países do mundo não têm sistemas de alertas antecipados adequados. Então, sistemas de alerta adequados, a população compreendendo o que é o sistema de alerta, compreendendo que essa mensagem de evento extremo, risco, alto risco acontecer, favorece, sim, a resiliência. Isso é a pessoa não se colocar em risco, perceber o risco e assim por diante.
Então, claro que o Brasil vem evoluindo e implementando o sistema de defesa civil em cada município. Ainda temos muito a fazer, mas sim, frear os eventos extremos a gente não vai conseguir. Mas salvar vidas é, sim, uma prioridade.
É possível prever esses eventos extremos? Haverá outros como esse?
É possível prever os eventos extremos, os modelos meteorológicos, matemáticos, numéricos atuais, no mundo e no Brasil, já antecipam eventos extremos. Pode ser sistemas convectivos com precipitação extrema, uma onda de frio, uma onda de calor, um ciclone extratropical intenso etc. Isso é previsível.
Como eu disse, até 7, 10 dias antes, os meteorologistas, os especialistas da previsão já antecipam isso. E, lamentavelmente, a posição do Rio Grande do Sul, a circulação atmosférica característica da nossa região, toda ela está sendo influenciada com as mudanças do clima. Então, esses eventos que já aconteciam seguirão acontecendo e estão potencializados.
Qual o papel das mudanças climáticas nesses episódios?
Temos que admitir que as mudanças climáticas são palco, cenário de fundo da atmosfera no presente. É difícil atribuir todo evento extremo meteorológico com a mudança climática porque eles já existiam. Mas, também se sabe que o aumento da temperatura do ar dos oceanos leva ao incremento, a intensificação, ou até o aumento do número de eventos extremos.
Então, esse ano, que é um ano anomalamente quente, com recordes de temperatura no planeta, inclusive na América do Sul, em junho, julho e agosto, mais o El Niño, que favorece a formação de ciclones extratropicais e intensificação das chuvas no Rio Grande do Sul... A combinação do planeta quente e do El Niño cria o cenário favorável a isso.
Portanto, mesmo que eu não atribua a mudança climática num evento específico ou neste evento recente específico, eu tenho que considerar que a atmosfera está mais aquecida, os oceanos mais aquecidos, e eles aproveitam a existência dos fenômenos metrológicos e tendo a condição, eles vão se tornar mais extremos.
Tivemos em janeiro do ano passado um calor extremo no estado, influenciado pela presença de La Niña. Agora esses episódios foram sob o El Niño. Gostaria que comentasse as principais características de ambos?
Os últimos três anos nós tivemos uma La Niña persistente, isso também não é comum, não é normal, uma La Ninã durar tanto tempo. Sabemos que normalmente duram um pouco mais do que os El Niños, mas não três anos consecutivos. Então, três anos quentes com La Niña favoreceu ondas de calor, períodos longos sem precipitação.
Recentemente um estudo de atribuição da mudança climática e ondas de calor e déficit de precipitação foi publicado, indicando que entre 2019 e 2023, aquela extensa estiagem na Argentina, aqui ao nosso lado, só poderia ter ocorrido com a contribuição da mudança climática. Então já existem trabalhos bem recentes mostrando que a mudança climática abriu a condição para essa onda de calor e estiagem observada na Argentina. Também teve estudo de atribuição de mudança climática para aquele evento de 2021 no litoral da Bahia, se não me falha memória, entre outros, no mundo.
Então, cada vez mais a ciência do clima e a atribuição de eventos extremos a mudança do clima está conseguindo mostrar tecnicamente como isso está acontecendo.
Bom, o El Niño está em franco desenvolvimento e deve atingir o seu ápice aí no final da primavera e o verão desse ano. Isso significa que, como é um ano de El Niño, ele favorece o aumento de precipitação na Região Sul do Brasil.
Então, no Sul do Brasil, enquanto estiver atuando o El Niño, todos os fenômenos meteorológicos podem estar sendo incrementados, o que resulta em um maior volume de chuva e, em alguns casos, esses excepcionais em eventos de muito maior excepcionalidade, claro, causando danos.
Até quando teremos a presença de El Niño? E que efeitos ele terá nos próximos meses?
O atual El Ninõ no atual cenário a gente entende que irá até o final do verão, início do outono de 2024 deverá estar atuante.
Estamos próximos do ponto de não retorno, ou seja, do ponto em que, para retornar à estabilidade climática de algumas décadas atrás, se levará centenas de anos?
Essa é uma ótima pergunta, extremamente difícil. Semana passada teve um evento internacional sobre essas discussões. E claro a gente precisa entender melhor. Mas claro o desmatamento da Amazônia, entende-se que a gente está indo para um ponto que a Amazônia possa não se sustentar mais sozinha. O aquecimento global, a poluição atmosférica, o aumento dos níveis de CO2 etc., estão a cada ano que passa ganhando mais ênfase, e isso nos aproxima dos pontos de não retorno.
Para retornar a estabilidade climática de décadas atrás, será no mínimo daqui a 100 ou mais anos, isso se a gente cumprir com as metas de mudar, fazer uma transição energética, diminuir em 50% a emissão de CO2 no planeta até 2035, e quase zerar esses níveis atuais até 2050.
Qual o papel do uso intensivo das terras próximas às margens dos rios nas enchentes?
Áreas das margens de rios são extremamente importantes. No RS muitas delas têm matas ciliares, elas protegem encostas, reduzem erosão, reduzem o tempo de enchimento dos rios.
Quando nós suprimimos as áreas de preservação em matas ciliares a gente aumenta a erosão do solo, aumenta o assoreamento do rio, o rio enche mais rápido e as inundações são muito intensas.
As áreas de preservação, as áreas de banhado, as matas ciliares, elas são essenciais para o sistema natural que nos guarda água, que nos suaviza ou retarda inundações, eventos extremos. E claro, a sustentabilidade de modo geral é uma forma eficiente, via natureza, de frear a mudança climática atual.
Meteorologistas têm alertado para uma onda de calor acima dos 40 graus para praticamente todo o país. Que fatores podem explicar esse calor excepcional?
A onda de calor que se desenvolve na América do Sul, Brasil Central, ela é típica dessa época do ano, final de inverno e início da primavera. É comum o ar ficar seco e uma área de alta pressão ser dominante nessa região. Como nós também cruzamos um inverno mais quente, dentro de um ano quente, a gente observa que tem grandes possibilidades de continuarmos observando os recordes de temperaturas máximas entre o Mato Grosso, o sul do Acre, em direção a Bolívia, ao Paraguai e até aqui na região Sul do Brasil tal é a configuração.
E, obviamente, essa onda de calor é um fator que dificulta, essa região controlada pela alta pressão que organiza a onda de calor, a aproximação das frentes frias, induz ar quente e até, às vezes, a umidade da Amazônia chegar aqui no Sul. E por isso a gente tem visto a formação de vendaval, tempestades intensas. É o contraste que está marcado aqui na nossa região, a aproximação de ar mais frio, um sistema frontal rivalizando com a América do Sul, um Brasil excepcionalmente mais quente.
Enfatizo, é comum nessa época do ano ser mais quente e ser mais seco o Centro-Oeste brasileiro. Porém, os dados das últimas décadas mostram ficando mais seco e mais quente e aí as ondas de calor surgem e os extremos de temperatura também vão sendo rompidos.
Nos últimos 10 anos (2013 a 2022), a perda de vegetação nativa no Brasil acelerou. O período coincide com a vigência do novo Código Florestal, aprovado pelo Congresso em 2012. Além disso especialistas apontam que o Brasil regrediu nos últimos anos na política ambiental. O senhor tem esperança de que o país reduza a degradação nos próximos anos? O que o poder público e a sociedade como um todo deve fazer para amenizar os efeitos extremos dos efeitos climáticos?
Nos últimos dez anos o Brasil observou uma aceleração na perda de vegetação e, claro, coincide com a vigência do novo Código Florestal e também coincide com um enfraquecimento de fiscalização e de política pública empenhada nisso ao longo dos últimos quatro anos. Sem dúvida, eu tenho esperança que o Brasil reduza a degradação nos próximos anos.
Isso se uma agenda governamental for realmente aplicada, construída, na busca do desmatamento zero da Amazônia, na recuperação de áreas degradadas, na inibição ou no combate às queimadas.
Porém, o cerrado brasileiro vem acelerando, assim como o Pantanal, nos últimos quatro, cinco anos, a área de alteração da superfície natural, quer dizer, desmatamento e assim por diante. É uma meta extremamente importante para o Brasil e para o mundo, e também extremamente relevante na questão da contribuição brasileira ao combate às mudanças climáticas.
O poder público é extremamente necessário nisso. E agora nos cabe, essencialmente, procurar políticas como desmatamento zero, preservação das áreas das nascentes e construir sistemas de alerta e precaução antecipados para a gente poder enfrentar os efeitos da mudança climática nas próximas décadas.
Esses efeitos continuarão existindo ou se intensificarão. Por isso, precisamos perseguir a meta de diminuição em 50% das emissões de gases de efeito estufa até 2030. E no caso brasileiro, desmatamento zero e preservação de outros biomas que vêm sendo frontalmente agredidos em termos de desmatamento e ocupação irregular nos últimos 5, 6 anos.
Outra observação importante que achas que deve ser destacada.
Está evidente, para nós, que os sistemas de alertas antecipados, que é uma agenda internacional para que o maior número de países aprimorem, seja também um esforço no Brasil. Isso requer ciência e tecnologia que nós temos, isso requer investimento, isso requer que políticas públicas incentivem essas condições.
Acho que isso é um ponto importante frente aos últimos desastres no Rio Grande do Sul. Ampliar e melhorar o sistema de alerta. Em especial a população entender a real mudança climática, os riscos e compreender os riscos das suas localidades e aprender com as distintas comunidades, localidades, a sua forma de comunicar e como fazer essa interação, isso é importante.
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Brasil precisa de sistema de alerta antecipado contra desastres ambientais. Entrevista com Francisco Eliseu Aquino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU