19 Setembro 2023
Novo zoneamento aprovado pelo Consema, baseado em estudo encomendado por indústria de celulose, pode cobrir mais de 10% do território gaúcho com árvores invasoras.
A reportagem é de Bettina Gehm, publicada por Matinal News, 18-09-2023.
O Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), órgão que a julgar pelo nome deve zelar pelo meio ambiente do Estado, decidiu na última quinta-feira liberar para o plantio de espécies exóticas, como o pinus e o eucalipto, uma área extra de até 3 milhões de hectares. Isso equivale a mais de 10% do território gaúcho.
Como a silvicultura já ocupa 1 milhão de hectares no Rio Grande do Sul, a canetada do Consema permite que o espaço destinado ao chamado “deserto verde” quadruplique, ocupando uma área equivalente à do Estado do Rio de Janeiro.
Para assombro de ambientalistas, que dizem ter sido ignorados no processo, a decisão do conselho foi baseada em relatório financiado por um ente com interesse econômico na expansão da área de cultivo, a multinacional CMPC, uma das maiores produtoras de celulose e papel do mundo. As entidades ambientalistas apontam um conflito de interesses e afirmam que o novo regramento pode causar danos severos a um bioma que já está seriamente degradado, o pampa.
O processo que levou à aprovação das novas regras para cultivo de florestas voltadas à produção de matéria-prima – como celulose e madeira – foi controverso desde o início.
As regras vigentes até agora haviam sido instituídas em 2009, a partir de estudos promovidos pela Fundação Zoobotânica, órgão técnico do governo estadual. Em 2018, a fundação foi extinta pelo então governador José Ivo Sartori, em um duro golpe para a proteção do ambiente. Logo depois, a CMPC, que produz celulose no Rio Grande do Sul há uma década, contratou uma consultoria chamada Codex para a elaboração de uma nova proposta de Zoneamento Ambiental para a Atividade de Silvicultura (ZAS). O estudo resultante foi entregue pela CMPC à Federação das Indústrias (Fiergs), que assumiu a tarefa de protocolá-lo no Consema.
No conselho, coube à Câmara Técnica de Agropecuária, dominada por setores com interesses na silvicultura, o encargo de avaliar a proposta. O passo seguinte foi dado em 30 de março deste ano: a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) abriu uma consulta pública sobre o ZAS e deu prazo de 10 dias corridos para discussão. Destes, quatro eram durante fins de semana, um era feriado oficial (Sexta-Feira Santa) e outro era feriado informal (a quinta-feira). Além de oferecer um prazo apertado para a sociedade se manifestar, a Sema disponibilizou um único documento para subsidiar a discussão: a proposta encomendada à Codex pela CMPC.
Diante desse cenário, o Ministério Público Estadual interveio e determinou a extensão da consulta pública para um período de pelo menos 30 dias. Também recomendou que o estudo da Codex fosse submetido à Câmara Técnica de Biodiversidade do Consema e que fossem incorporadas as contribuições técnicas da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). “Não se pode tratar esse assunto só pelo viés da agricultura”, criticou a promotora Annelise Monteiro Steigleder, que assinou a peça do MP. Em consequência da intervenção dela, a consulta pública sobre o zoneamento acabou recebendo 215 contribuições da sociedade.
Se essas contribuições foram levadas em conta, é outra história. Pouco antes da aprovação pelo Consema, o biólogo Paulo Brack se declarou “estarrecido” ao perceber que a proposta original estava sendo encaminhada praticamente sem nenhuma modificação. Coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Brack alerta que, além de produzir efeitos ambientais graves, a aprovação do novo zoneamento abre um precedente muito perigoso, escancarando o caminho para que empresas de diferentes setores proponham um regramento ambiental para sua atividade que atenda aos seus próprios interesses econômicos, e não aos anseios da sociedade. “É um processo meramente político, com pouca base técnica, em que os setores econômicos definem o que eles querem. Se não houver olhar vigilante, vai ser mais uma catástrofe para a nossa biodiversidade”, diz.
No caso da silvicultura, essa catástrofe decorre da substituição da vegetação nativa por espécies invasoras, com prejuízos enormes para a biodiversidade. Embora, quando vistas do alto, as plantações de espécies como o eucalipto e o pinus tenham a aparência de florestas naturais, elas configuram na verdade mais uma monocultura a ocupar o espaço, daí serem chamadas de “desertos verdes”. O eucalipto, por exemplo, que representa 64% das áreas de silvicultura no Estado, é prejudicial aos aquíferos, porque consome muita água e transpira demais. Um aspecto particularmente sinistro da expansão da silvicultura é que ela ocorre em larga medida sobre o pampa, bioma prasileiro que mais perdeu vegetação nativa entre 1985 e 2020, segundo o Mapbiomas.
Depois da aprovação do novo ZAS, a secretária do Meio Ambiente, Marjorie Kauffmann, festejou: “É uma etapa importante para o RS, que segue com os preceitos da preservação, aliados ao desenvolvimento econômico, que é o que gera sustentabilidade para a população gaúcha”, disse.
Em resposta por escrito à questionamentos feitos pela Matinal, a Sema afirmou que “o que se busca com a atualização do ZAS não é o aumento dos plantios de pinus e eucalipto, mas a atualização de diretrizes que visam o aprimoramento do planejamento territorial para a atividade de silvicultura”. No entanto, afirma o texto enviado pela secretaria, “uma eventual possibilidade de ampliação decorre da atualização da base de dados utilizada e a inserção de novas ferramentas de geociências, as quais possibilitam maior acurácia para as análises realizadas”.
De acordo com a secretaria, as novas diretrizes oferecem uma mapeamento mais atualizado de uso do solo, maior volume de dados de evapotranspiração e precipitação para o cálculo da disponibilidade hídrica, aumento do número de espécies-foco de fauna e flora e inclusão de novos territórios importantes para a conservação, entre outros dados. Em sua resposta, a Sema afirmou também que atendeu às solicitações do MP, que as contribuições recebidas durante a consulta pública foram analisadas e que a Câmara Técnica de Biodiversidade participou do debate.
A secretaria disse ainda que a atualização do ZAS estava prevista em resolução de 2009 e que o estudo enviado para consulta pública é “ uma proposta amplamente discutida e debatida ao longo de pelo menos três anos por um grupo de trabalho integrado por Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura, Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, Ministério Público Estadual, ONGs e Academia”.
Consultada pela Matinal, a promotora Annelise Steigleder contestou essa afirmação. “Não concordo com o teor da resposta da Sema, pois o que foi à consulta pública foi apenas o estudo da consultoria, sem inclusão das contribuições da Fepam e demais participantes. As manifestações do MP tampouco foram divulgadas na consulta pública, o que ensejou nossa recomendação”, afirmou ela.
A contribuição da Fepam que não teria sido levada em conta na aprovação do ZAS é um parecer que considera o estudo da Codex “insuficiente e inadequado”. Para a Fepam, o novo zoneamento desconsidera extinções de espécies locais em áreas convertidas e pode tornar impossível a restauração do ambiente natural quando os cultivos cessarem. O relatório critica também a análise feita pela Codex sobre os recursos hídricos disponíveis para a silvicultura: foram levados em consideração dados de consumo, e não de demanda, o que pode representar um subdimensionamento “O simples fato de existir uma demanda e ela não estar sendo usada no ano de 2013 (data do relatório utilizado como fonte de dados) não significa que ela não venha a existir no futuro próximo”, observa o parecer da Fepam.
Outras entidades ambientais, como a Coalizão pelo Pampa e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (NEPRADE), da UFSM, também se manifestaram contrárias ao novo zoneamento. O InGá, que tem assento no Consema, emitiu uma nota alertando para perdas extraordinárias e irreversíveis: “Por carecer de maior discussão, tratamento técnico adequado com especialistas e iniciativas de convergências, solicitamos uma análise quanto ao vício de origem da proposta, elaborada por iniciativa dos próprios interessados que serão regulados, além de reivindicarmos uma proposta de ZAS que provenha da área técnica da Sema, sem ingerências políticas, sem predomínio de interesses econômicos e com tempo e espaço razoável para uma análise técnico científica que não comprometa ainda mais o que resta do bioma mais ameaçado do Brasil”.
O Rio Grande do Sul foi o quinto Estado brasileiro com maior produção de madeira em tora oriunda da silvicultura entre 2018 e 2020, conforme a última edição do Atlas Socioeconômico. Foram produzidos 13,9 milhões de metros cúbicos por ano no período. Grande parte disso é para exportação. “Aqui a gente fica com mais dano do que outra coisa. O papel é feito em outras partes do mundo”, afirma Brack. “É um desenvolvimento às avessas. A silvicultura diminui a diversificação econômica do Estado.”
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Rio Grande do Sul. Em processo criticado por ambientalistas, estado permite ampliação de “desertos verdes” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU