20 Setembro 2023
"O caso da superioridade da virgindade sobre o matrimônio, primeiro afirmada e depois negada, é um exemplo incontornável de revisão posterior no que diz respeito a uma afirmação considerada definitiva".
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 15-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um interessante artigo publicado no último número da revista portuguesa Brotéria (n. 197, 2023, pp. 158-171), o Prof. Jerônimo Trigo dedica atenção ao tema “Doutrinas definitivas? Os exemplos do matrimônio e do celibato”.
O tema da reflexão é a qualidade “definitiva” e “irreformável” de afirmações que o magistério papal indica explicitamente em um certo momento histórico como dotadas de tais características. Com efeito, sabemos que a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis pretendeu explicitamente dizer uma palavra de autoridade sobre a reserva masculina do ministério sacerdotal, pretendendo exprimir uma “sentença definitiva” e, portanto, irreformável.
O artigo, no entanto, não trata detalhadamente da questão, mas apenas de seu lado formal, ou seja, da pretensão de definitividade. Se, em 1994, um pronunciamento papal com esse grau de autoridade expressou explicitamente tal sentença, 30 anos depois outro papa, ou um Sínodo, ou um Concílio poderia dizer algo diferente?
O artigo responde indiretamente a essa pergunta, contando detalhadamente outra história, singularmente paralela e bastante instrutiva. Trata-se do caso da encíclica Sacra virginitas (1954), com a qual o Papa Pio XII afirmava com autoridade e solenidade a superioridade da virgindade/celibato em relação à vida matrimonial. O teor do texto da encíclica parece inequívoco, porque se move a partir da exigência de contestar algumas dúvidas que surgiram na Igreja:
“Não falta contudo quem, saindo do bom caminho, nos dias de hoje exalte o matrimônio a ponto de o colocar praticamente acima da virgindade, depreciando consequentemente a castidade consagrada a Deus e o celibato eclesiástico. Por isso nos pede agora a consciência do nosso cargo apostólico que declaremos e defendamos a doutrina da excelência da virgindade, para acautelarmos de tais erros a verdade católica” [n. 8].
Diante dessas negações, afirma-se do modo mais cheio de autoridade a superioridade da virgindade consagrada sobre a vida matrimonial:
“Esta doutrina da excelência da virgindade e do celibato, e da superioridade de ambos em relação ao matrimônio, tinha sido declarada, como dissemos, pelo divino Redentor e pelo apóstolo das gentes; do mesmo modo foi também definida solenemente no Concílio Tridentino como dogma de fé e comentada sempre unanimemente pelos santos padres e doutores da Igreja. Além disso, os nossos predecessores e nós mesmos a explicamos muitas vezes e recomendamos insistentemente. Mas, perante recentes ataques a esta doutrina tradicional da Igreja, e por causa do perigo que eles constituem e do mal que produzem entre os fiéis, somos levados pelo dever do nosso cargo a desmascarar nesta encíclica e a reprovar de novo esses erros, tantas vezes propostos sob aparências de verdade” [n. 31].
Um dogma de fé parece irreformável e capaz de vincular para sempre a doutrina eclesial no reconhecimento do primado do celibato e da virgindade consagrada sobre a vida matrimonial. Por outro lado, nos textos do Concílio Vaticano II esse ensinamento não é confirmado e é omitido nas passagens mais decisivas (cf. LG 40-46). Algumas referências genéricas se encontram no magistério do Papa Paulo VI.
Mas, quase 30 anos depois do texto de Pio XII, João Paulo II fala de uma forma muito diferente sobre o mesmo tema, durante a Audiência Geral de 14 de abril de 1982:
“Nas palavras de Cristo sobre a continência ‘pelo Reino dos céus’ não há nenhuma menção à ‘inferioridade’ do matrimônio em relação ao ‘corpo’, ou seja, em relação à essência do matrimônio, que consiste no fato de o homem e a mulher se unirem nele para se tornarem ‘uma só carne’ (cf. Gn 2,24). As palavras de Cristo relatadas em Mateus 19,11-12 (assim como as palavras de Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 7) não oferecem motivo para sustentar nem a ‘inferioridade’ do matrimônio, nem a ‘superioridade’ da virgindade ou do celibato, pois estes por sua natureza consistem em se abster da ‘união’ conjugal ‘no corpo’. Sobre esse ponto, as palavras de Cristo são decididamente límpidas. Ele propõe a seus discípulos o ideal da continência e o chamado a ela não por motivo da inferioridade ou com prejuízo à ‘união’ conjugal ‘no corpo’, mas apenas pelo ‘Reino dos Céus’.”
E depois continua:
“O matrimônio e a continência não se contrapõem nem dividem por si só a comunidade humana (e cristã) em dois campos (digamos: dos ‘perfeitos’ devido à continência e dos ‘imperfeitos’ ou menos perfeitos devido à realidade da vida conjugal). Mas essas duas situações fundamentais, ou, como se costumava dizer, esses dois ‘estados’, em um certo sentido se explicam ou se completam reciprocamente, quanto à existência e à vida (cristã) desta comunidade, que, no seu conjunto e em todos os seus membros, realiza-se na dimensão do Reino de Deus e tem uma orientação escatológica, que é precisamente desse Reino. Ora, em relação a essa dimensão e a essa orientação – à qual deve participar na fé toda a comunidade, isto é, todos os que a ela pertencem – a continência ‘pelo Reino dos céus’ tem uma importância particular e uma eloquência particular para aqueles que vivem a vida conjugal. Sabe-se, aliás, que estes últimos constituem a maioria. Parece, portanto, que uma complementaridade assim entendida encontra a sua base nas palavras de Cristo segundo Mateus 19,11-12 (e também na Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 7).
Por outro lado, não há nenhuma base para uma suposta contraposição, segundo a qual os celibatários (ou as mulheres solteiras), apenas devido à continência, constituiriam a classe dos ‘perfeitos’ e, pelo contrário, as pessoas casadas constituiriam a classe dos ‘não perfeitos’ (ou dos ‘menos perfeitos’). Se, considerando uma certa tradição teológica, fala-se do estado de perfeição (status perfectionis), não é por motivo da continência mesma, mas a propósito do conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência), pois essa vida corresponde ao chamado de Cristo à perfeição (‘Se queres ser perfeito...’) (Mt 19,21). A perfeição da vida cristã, por sua vez, é medida com o metro da caridade. Segue-se daí que uma pessoa que não vive no ‘estado de perfeição’ (isto é, em uma instituição que fundamente seu plano de vida nos votos de pobreza, castidade e obediência), ou seja, quem não vive em um instituto religioso, mas no ‘mundo’, pode alcançar ‘de facto’ um grau superior de perfeição – cuja medida é a caridade – em relação à pessoa que vive no ‘estado de perfeição’, com um grau menor de caridade. No entanto, os conselhos evangélicos ajudam, sem dúvida, a alcançar uma caridade mais plena. Portanto, quem a alcança, mesmo que não viva em um ‘estado de perfeição’ institucionalizado, chega àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem, tanto em um ‘instituto religioso’ quanto no ‘mundo’.”
Esse discurso foi retomado, em 2016, pelo texto da Amoris laetitia (nn. 159-160):
“159. A virgindade é uma forma de amor. Como sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao serviço da evangelização (cf. 1Cor 7,32) e é um reflexo da plenitude do Céu, onde ‘nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos’ (Mt 22,30). São Paulo recomendava a virgindade, porque esperava para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: ‘O tempo é breve’ (1Cor 7,29). Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1Cor 7,6-8), não uma exigência de Cristo: ‘Não tenho nenhum preceito do Senhor’ (1Cor 7,25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: ‘Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra’ (1Cor 7,7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos ‘não oferecem motivo para sustentar nem a ‘inferioridade’ do matrimônio, nem a ‘superioridade’ da virgindade ou do celibato’ devido à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimônio pode-se considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande como ‘a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a humana’".
“160. Portanto ‘não se trata de diminuir o valor do matrimônio em favor da continência’ e ‘não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se, considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status perfectionis), não é por motivo da continência mesma, mas a propósito do conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos’. Entretanto uma pessoa casada pode viver a caridade num grau altíssimo. E assim ‘chega àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem’.”
Como é evidente, a sequência entre os textos de 1954 e os de 1982 e depois de 2016 mostra bem como a pretensa afirmação definitiva e irreformável do texto de Pio XII sofreu uma releitura profunda, com uma superação explícita da “superioridade” na “complementaridade”. Com efeito, a superioridade afirmada tornou-se a superioridade negada.
30 anos depois do primeiro documento, chegou-se a uma reformulação e a uma reforma explícita da posição anterior. Por que aquilo que ocorreu com a Sacra virginitas não poderia ocorrer, mais uma vez exatamente 30 anos depois, também com a Ordinatio sacerdotalis? Doutrinas declaradas como definitivas em um determinado momento podem talvez deixar de sê-lo em um momento posterior? O caso da superioridade da virgindade sobre o matrimônio, primeiro afirmada e depois negada, é um exemplo incontornável de revisão posterior no que diz respeito a uma afirmação considerada definitiva.
Deve-se notar, para encerrar, que o exemplo é ainda mais instrutivo porque a Sacra virginitas (1954) podia se basear em um cânone dogmático explícito expressado sobre o tema pelo Concílio de Trento, algo que, contudo, falta nas fontes de apoio da Ordinatio sacerdotalis (1994).
Se uma doutrina que havia sido definida como “dogma de fé” pôde ser reformada, como poderia não sê-lo uma doutrina que nunca tinha sido explicitamente considerada assim? O artigo do Prof. Trigo conclui-se com esta importante afirmação:
“A encíclica Sacra virginitas do Papa Pio XII, em 1954, reafirma a doutrina dos dois estados de vida cristã, a virgindade e o matrimônio, indicando a superioridade e a perfeição da primeira, definida solenemente como dogma de fé pelo Concílio de Trento. Ela tem fundamento bíblico e foi elaborada e transmitida pela Tradição e pelos papas. O Concílio Vaticano II e os documentos pontifícios posteriores não se pronunciam a esse respeito. O Papa João Paulo II se pronuncia em sentido contrário. Consequentemente, levanta-se a questão mais geral sobre a continuidade, descontinuidade e até ruptura em relação a doutrinas definidas, em um determinado momento, como definitivas” (pp. 169-170).
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70 anos depois da “Sacra virginitas” e 30 depois da “Ordinatio sacerdotalis”: doutrinas definitivas ou etapas de uma evolução? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU