18 Agosto 2023
Durante as escaldantes férias de verão europeias, a medida pontifícia relativa ao Opus Dei não recebeu a atenção que merece da mídia, tanto em relação à história do movimento quanto no contexto do atual pontificado.
O comentário é de Alfonso Botti, historiador e hispanista italiano, professor de História Contemporânea da Universidade de Modena e Reggio Emilia e diretor da revista Spagna Contemporanea. O artigo foi publicado por Il Mulino, 17-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com a carta apostólica em forma de motu proprio Ad charisma tuendum divulgada no dia 8 de agosto passado, o Papa Francisco, em cumprimento da constituição apostólica Praedicate Evangelium de 19 de março de 2022, modificou os cânones 295-296 do Código de Direito Canônico relativos às prelazias pessoais. Como a única com essa configuração era a prelazia pessoal denominada Santa Cruz e Opus Dei, a medida recaía sobre ela.
Ela coloca a prelazia sob a responsabilidade do Dicastério para o Clero (art. 1); impõe que o prelado apresente anualmente um relatório sobre o estado da prelazia ao referido dicastério (art. 2); submete seus estatutos em reforma à aprovação dos órgãos competentes da Santa Sé (art. 3); estabelece que o prelado não é e não pode ser bispo (art. 4) e que todas as questões relativas à prelazia, anteriormente tratadas pela Congregação para os Bispos, passem para a jurisdição do Dicastério para o Clero (art. 6).
Emitido nas escaldantes férias de verão, não se pode dizer que a mídia deu a devida atenção ao documento. O que, por sua vez, é de grande importância, se for avaliado em relação à história do Opus Dei e no contexto do atual pontificado.
Estamos em 1928, quando, a partir da ideia de que a santidade pode ser alcançada por meio do empenho no campo laboral e profissional, um jovem sacerdote aragonês chamado José María Escrivá de Balaguer concebe seu próprio projeto. A intuição é original, porque conjuga sem escrúpulos a imersão sine glossa no mundo tal como é com a obediência plena ao ensinamento do magistério e à mortificação corporal.
Mas é sobretudo moderna pela fórmula da “santificação do trabalho”, que recorda aquele significado reverencial, moral e religioso do dinheiro sobre o qual escreve, precisamente nos mesmos anos, um dos ideólogos da direita reacionária espanhola, Ramiro de Maeztu, depois de ser iluminado, durante uma viagem de verão de 1925 aos Estados Unidos, não pela democracia, mas pelas virtudes do capitalismo. Depois, ele seria embaixador da ditadura de Primo de Rivera na Argentina, de 1928 a 1930, tornando-se o apreciado interlocutor e instigador do novo nacionalismo católico platense.
Influenciado por Max Weber, Maeztu identifica a causa do atraso dos povos latinos nos ideais cristãos de pobreza e no malogrado entrelaçamento entre economia, moral e religião que distinguiria, embora de formas distintas, a ética de protestantes e judeus. Se “o gênio econômico pode ser comparado à santidade” – escrevia – deduz-se que os Fords e os Rockefellers, que sabem se enriquecer enriquecendo os outros, “são os verdadeiros santos do país”.
Daí a afirmação de que a modernização da Espanha e da América Latina deve passar pela conciliação do catolicismo com o capitalismo: uma adaptação e uma tentativa de transposição para o contexto católico daquilo que foi enfocado pelo sociólogo alemão em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.
O jovem Escrivá de Balaguer, não sabemos se ciente do que Maeztu estava escrevendo, retomou, de fato, seu pensamento. Ele fez isso com uma série de aforismos que publicou sob o título “Camino” em 1934, e em 1939 na versão definitiva. Um texto que equilibra a pobreza teológica com o autoritarismo clerical de que está imbuído, cujo impacto representa um estudo de caso sobre como a relação entre a montanha e o rato pode se apresentar historicamente de modo invertido.
De fato, a partir dos anos 1940, o Opus Dei teve um crescimento exponencial na Espanha, na América do Sul e depois no restante do mundo. Durante os anos da ditadura franquista, homens do Opus Dei ocuparam o Conselho Superior de Pesquisas Científicas, obtiveram inúmeras cátedras universitárias e conquistaram cargos de primeiro plano no regime.
No fim dos anos 1950, Carrero Blanco, homem de confiança de Franco, promoveu a ascensão ao governo de alguns homens do Opus Dei: os chamados tecnocratas que iniciaram a fase tecnocrática do regime. O erro, então, foi o de pensar que eles eram guiados pela cúpula do Opus Dei, enquanto agiam em plena autonomia, sendo totalmente alheios, por formação, ao catolicismo democrático e, portanto, moldados para serem orgânicos a um sistema iliberal e autoritário. Algumas personalidades da mesma filiação, depois expostas como prova do pluralismo político do Opus Dei, dissentiram do franquismo, mas não foram verdadeiros opositores propriamente ditos.
Nesse ínterim, a partir de junho de 1946, Escrivá de Balaguer esteve na Itália, onde, a partir de Roma, durante 30 anos, até sua morte em 1975, teceu uma densa rede de relações com os ambientes da Cúria Romana em benefício de sua própria criatura e, é desnecessário dizer, de si mesmo.
Sua tarefa estava longe de ser fácil, porque o compromisso com o franquismo, a opacidade da organização, a fama de “máfia branca”, mitos e narrativas pouco fundadas dificultavam seu caminho. Aproveitando a referida modernidade, o Opus Dei, produto tipicamente espanhol da Igreja de Pio XI e de Pio XII, aproveitou a renovação conciliar, dizendo-se seu precursor e parte dela, mas basta ler o papel subalterno que o “Camino” atribui aos leigos para se dar conta do despropósito disso.
E, se isso não bastasse, bastaria acrescentar a leitura do testemunho da ex-numerária (o mais alto grau dos filiados) Emanuela Provera, “Dentro l’Opus Dei” (Ed. Chiarelettere, 2009).
Seja qual for o caso, a atividade romana de Escrivá de Balaguer produziu, ainda que lentamente, os efeitos que ele esperava. Em 1969, sob o reinado de Paulo VI, iniciou-se o processo de institucionalização de sua criatura, mas foi o Papa Wojtyła quem deu o passo decisivo, ao reconhecer ao Opus Dei o status de prelazia pessoal com a constituição apostólica Ut sit, de 28 de novembro de 1982. Seguiu-se em 1992 a beatificação do fundador e, com uma pompa invulgar, sua canonização em 6 de outubro de 2002. Não é um acaso, mas sim uma linha política, pastoral e eclesial precisa.
Sob o reinado do papa polonês, de fato, em 1982, o Comunhão e Libertação foi reconhecido como “Associação de Direito Pontifício”; no ano seguinte, foram aprovados os estatutos dos Legionários de Cristo; em 30 de agosto de 1990, foi o Caminho Neocatecumenal que recebeu o aval do pontífice com a carta Ogni qualvolta, enquanto seus estatutos seriam aprovados em 2002.
Enquanto isso, no dia de Pentecostes de 1998, realizou-se em Roma o Congresso Internacional dos Movimentos Eclesiais. Os novos (por assim dizer, porque seu nascimento remonta a vários anos antes) “exércitos do papa”, todos com seus próprios seminários encarregados de produzir uma classe sacerdotal paralela.
É preciso reconhecer que o Opus Dei não gozou de uma boa imprensa. O que também alimentou negativamente o imaginário coletivo foi o romance de Dan Brown “O Código Da Vinci” (2003), seguido em 2006 pelo homônimo filme de sucesso, dirigido por Ron Howard, apenas parcialmente equilibrados pelo desajeitadamente hagiográfico filme de 2011 “Encontrarás Dragões – Segredos da Paixão”, de Roland Joffé, coincidentemente o diretor do muito mais bem-sucedido “A missão” (1986).
Apesar do desinteresse geral pela medida do Papa Francisco, não faltaram, por parte dos ambientes católicos mais hostis ao atual pontificado, alusões a uma suposta recaída no centralismo vaticano, imbuído de autoritarismo. E também não faltou nem mesmo quem tirasse o pó da relação competitiva e da tradicional rixa histórica entre os jesuítas e o Opus Dei, ambos de origem espanhola, ambos dedicados à formação das futuras elites públicas.
Nenhuma das explicações convence. Quanto menos nos distanciamos da verdade, mais nos apegamos a alguns dados de fato: a reforma em curso da Cúria Romana, a anômala configuração jurídica do Opus Dei e a extravagante autonomia de que gozava.
Por outro lado, querendo aprofundar e entrever na medida a reverberação da linha que caracteriza o atual pontificado, é totalmente pertinente a referência ao alerta lançado em diversas ocasiões pelo Papa Francisco contra os riscos do clericalismo, reiterado na carta ao clero romano de 5 de agosto passado, onde se afirma que é possível assumir um espírito clerical “ao levar em frente os ministérios e os carismas, viver o próprio chamado de modo elitista, fechando-se no próprio grupo e erigindo muros em relação ao exterior, desenvolvendo laços possessivos em relação aos papéis na comunidade, cultivando atitudes presunçosas e arrogantes em relação aos outros”.
Uma advertência a todos os movimentos e grupos carismáticos particularmente em voga durante o pontificado de João Paulo II, promotor de um catolicismo identitário e triunfal, pouco compatível com a Igreja “hospital de campanha” e ponto de referência para a humanidade desorientada, do papa argentino. Um claro sinal de descontinuidade, portanto, em relação aos dois pontificados anteriores. Ambos pouco conscientes de que, ao encorajarem e institucionalizarem, a partir da última metade do século XX, os “novos” movimentos eclesiais, não davam uma resposta à decantação da fé católica com base nas diferentes sensibilidades e nos carismas peculiares, mas facilitavam sua fragmentação, com o consequente nascimento de um arquipélago de ilhas e ilhotas autossuficientes e autorreferenciais.
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O Papa Francisco e o Opus Dei. Artigo de Alfonso Botti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU