21 Julho 2023
Agradeço a atenção de dom Víctor Manuel Fernández (e seu recente bispo auxiliar dom González que ajudou a marcar a entrevista) para responder a perguntas incômodas que certamente excedem a possibilidade de ter soluções “mágicas”, nem mesmo para um ou vários papados. Mas vejo que o novo cardeal pratica aquela máxima do Papa Francisco: “o tempo é mais importante que o espaço” e como são importantes os processos, porque essas mudanças evangélicas são profundas, mesmo que demorem anos.
A entrevista é de Guilherme Jesus Kowalski, publicada por Religión Digital, 14-07-2023.
A impressão que tenho desta entrevista é que o Papa não só nomeou um padre com vida intelectual (algo raro num ambiente que colhe títulos mas só usa a inteligência para defender a instituição e o seu status quo), com muita experiência pastoral e com habilidosa “diplomacia”, uma virtude proeminente para sobreviver nos círculos milenares do Vaticano.
A palavra que mais ouvi é "diálogo", algo que dá esperança a uma instituição acostumada a ter muita certeza do "o que fazer" e condenar rapidamente aqueles que não são perfeitos sacristãos através de inquisições passadas e presentes. A frase mais incisiva que levo comigo como conclusão é a que diz: "uma teologia que nos convida a pensar, sentir e viver como um povo e, ainda por cima, um povo onde o mais importante é o último". Que apelo pode ter esta mensagem para os ouvidos burgueses, para uma pessoa negligente em seus objetivos individuais?
O Vaticano II quis remover o viés antimoderno em sua atitude e enfatizar um diálogo fecundo para a humanidade. Você acha que isso foi alcançado ou a que atribui sua falta de realização?
Creio que, com idas e vindas, a opção da Igreja pelo diálogo com o mundo é agora irreversível, ainda que existam minorias que continuam resistindo. São João Paulo II, embora se opusesse a certas aplicações perturbadoras do Concílio, fez grandes gestos de aproximação ao mundo nas suas várias dimensões. Francisco o faz com uma coragem invulgar, com uma capacidade admirável de se expor para além de qualquer risco. Laudato si' é um modelo de diálogo com o mundo, mas além de seus escritos estão seus encontros diretos, face a face, onde ele está disposto a ouvir o que eles querem dizer, mesmo que seja ofensivo ou desafiador. Isso é fundamental, porque não há diálogo sem uma abertura generosa para ouvir o fundo. Nesse sentido, podemos dizer que Francisco está levando o Concílio à sua realização mais luminosa.
Qual é o seu diagnóstico e qual deve ser a atitude da Igreja diante do distanciamento maciço da fé eclesial, da multiplicação das espiritualidades e do que o Papa chama de “paradigma tecnocrático” como modelador da cultura atual?
Grupos conservadores culpam o Concílio e Francisco por este distanciamento de muitas pessoas, porque consideram que a abertura da Igreja a faz perder a sua identidade e isso a torna menos atrativa. Eu acredito que o diagnóstico é bastante o oposto. Se há grupos minoritários que precisam de uma liturgia e de uma certa forma de expressar a doutrina, também há espaço para eles. Mas a maioria dos que se distanciam é porque não encontram na Igreja uma linguagem atraente, uma proposta que cative, uma mensagem expressa de maneira que seja percebida como fonte de vida e realização. Nesse sentido, o que tem causado a saída de muitos é a falta de diálogo com o mundo.
A que você atribui que uma teologia tão fecunda quanto a Teologia do Povo é ininteligível na Europa?
Porque a cultura europeia se orientou para um individualismo crescente, e isso não é culpa da Igreja. Tampouco é um bem ao qual a Igreja deve se adaptar. Ao contrário, um chamado profético e contracultural corresponde neste caso. Exige que cresçamos na capacidade de mostrar que “ninguém se salva sozinho”, que não há realização numa vida confortável e isolada, que somos mais felizes se somos família e se somos pessoas. A sociedade deve ser sacudida dessa terrível ilusão que a faz acreditar que o individualismo é a salvação. Nesta linha, a Teologia do Povo torna-se incompreensível e irrelevante para a cultura europeia, também para a cultura eclesial infectada por aquele espírito individualista. Porque é uma teologia que nos convida a pensar, sentir e viver como um povo e, ainda por cima, um povo onde o mais importante é o último.
O Papa Francisco falou desde o início de dois grandes males para a Igreja: o clericalismo e a autorreferencialidade. Como você acha que esses males que ameaçam a centralidade da fé católica devem ser enfrentados?
O primeiro com um saudável caminho sinodal. É impressionante como muitos padres relutam em dar maior protagonismo aos leigos, e não percebem que, se continuarmos assim, seremos comidos por ratos. A autorreferencialidade se opõe à autotranscendência e, para isso, nada melhor que uma espiritualidade onde o centro é a caridade, o amor que nos tira de nós mesmos. Mas se trata de algo sobrenatural, que devemos implorar como um dom do Espírito Santo. O ser humano sozinho é incapaz de tal milagre.
O Papa preservou-o da questão derivada dos julgamentos por abusos dentro da Igreja. Isso significa que seu departamento não se dedicará a investigar as causas sistêmicas da vida clerical que são um terreno fértil para esses abusos? Não acha que admitir, pedir perdão, punir, acompanhar e indenizar as vítimas é insuficiente se não forem aprofundadas as causas estruturais desses crimes cometidos em todas as partes do mundo?
Você está absolutamente certo, o que você diz é muito valioso. É verdade que, deste ponto de vista, o Dicastério para a Doutrina da Fé, juntamente com o da Cultura e as academias vaticanas poderiam enriquecer muito a reflexão sobre as causas da pedofilia na Igreja. É uma tarefa complexa, interdisciplinar, desafiadora e que, sem dúvida, nos faria muito bem. Mas espero ter os recursos mínimos para poder realizar tantas coisas importantes que poderiam ser feitas.
Existem milhares de padres casados. Eles permanecem sacerdotes por natureza do sacramento e podem celebrar os sacramentos em perigo de morte. No entanto, existe uma lei de cancelamento não escrita que os silenciou, retirou o apoio e não os incluiu institucionalmente para a tarefa evangelizadora. Assim, desperdiça-se um importante recurso humano e uma necessária experiência espiritual que une o caminho Igreja-família-mundo. Você acha que é possível reverter essa injustiça teológica ou eles devem se resignar a continuar sendo ignorados e descartados da vida eclesial?
É possível repensar isso. É um assunto do Dicastério para o Clero, mas estou disposto a oferecer minha contribuição se em algum momento se abrir a possibilidade de debater.
Alguns de nós acreditam que a sinodalidade não é um simples recurso pastoral, mas uma superação também do Vaticano II. Diante da rejeição aberta e/ou silenciosa do clero que acredita que perderá privilégios, o que fará a Igreja para canalizar essa iniciativa diante dessa resistência?
Enfrentar essas resistências de forma mais decidida na formação inicial e permanente do clero. Mas também, se abrirmos novos caminhos para o empoderamento dos leigos, eles mesmos ensinarão aos sacerdotes como superar o clericalismo. Existem leigos muito santos, muito dedicados, muito generosos, que às vezes nos desestabilizam e nos deixam sem palavras. Eu mesmo aprendi muito com eles quando fui pároco e acredito que cada vez mais os leigos se sentem à vontade para intervir, para dar sua opinião, para contribuir.
O que o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé pode nos dizer sobre a guerra de identidades sexuais e de todos os tipos que são travados há algumas décadas na cultura atual, que gera tantas agressões e clivagens sociais?
Que precisamos da ascese que nos permite tolerar com caridade quem às vezes com sua maneira de ser nos machuca. Temos o dever de desenvolver esse ascetismo, porque a violência verbal de alguns desses grupos identitários é uma saída compreensível para eles depois de muitos séculos de nossa violência verbal, linguagem ofensiva, muito ofensiva ou manipulação de mulheres como se fossem de segunda categoria, de muitos escárnios. Volto a dizer que Francisco é um modelo daquela "resiliência" que brota do coração de pai. Possivelmente com o tempo se consiga um maior equilíbrio, essas questões possam ser refletidas e discutidas com menos aspereza, com menos ataques, com uma serenidade que nos permite tratá-las de forma mais completa e aprofundada.
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Perguntas desconfortáveis ao novo guardião da fé católica. Entrevista com Dom Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU