01 Julho 2023
“A verdadeira oração será capaz de anular a própria vontade, tirar as sandálias da segurança, abdicar de títulos e privilégios – em favor da escuta silenciosa da Palavra. É o que podemos chamar de oração nua: despida de catecismos, de fórmulas, de cantos e preces repetitivos, de palavras vãs. Nudez e fraqueza que o silêncio e a escuta revestem com o rosto e a presença misteriosa e misericordiosa de Deus”, escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM/São Paulo.
Evidentemente, o título deve ser colocado entre aspas. Tais riscos referem-se a uma via duplamente distorcida da própria oração. De um lado, quando a tomamos como uma forma mágica de solver dúvidas e problemas; de outro, quando o ato de rezar se converte numa exigência da qual é necessário desobrigar-se o mais rápido possível. No primeiro caso, prevalece a prática de um formalismo ritual e estéril que, com frequência, reveste aquilo que chamamos de “devocionismo popular”, mas também pode se abrigar nos movimentos religiosos, e mesmo no interior da vida religiosa consagrada. No que se refere à desobriga, temos a repetição cotidiana de fórmulas, textos e preces onde o temor ocupa não raro o lugar da fé e da confiança.
Em ambos os casos, verifica-se a crença (ou será crendice?) de que a oração constitui um meio, uma espécie de ferramenta, para desvencilharmo-nos das dores que nos afligem ou das preocupações que pesam sobre os ombros. Vale, pois, sublinhar: a oração não modifica nossos problemas; modifica, isso sim, nossa maneira de encará-los. Não se trata de uma magia secreta e misteriosa à qual recorremos para dissolver os “impasses, os nós e os entraves” de vida cotidiana. Semelhantes dissabores permanecerão mesmo após os momentos de oração. São pedras e espinhos que temos de varrer de nosso caminho. Deus não virá fazer a tarefa em nosso lugar. Mas a oração nos revela que Ele está presente na história de cada pessoa e da humanidade, e que sua presença fortalece nossa vontade e nossa esperança.
Tanto a atitude mágica quanto a desobriga, aparentando aproximarem-se de Deus, podem nos conduzir para mais longe de seu rosto paterno/materno, bondoso e compassivo. Com tais meios, busca-se no fundo um conjunto de seguranças que garantam a salvação, a vida eterna, a entrada no Reino de Deus. Acumula-se uma espécie de “capital salvífico” que permita abrir a porta da Casa do Pai. Como se a entrada no Reino fosse mérito pessoal, e não dom absoluto. Nesta perspectiva, até mesmo a missa, ao invés de celebração eucarística, pode converter-se em devoção repetitiva. O alerta evangélico nos interpela: “Não é aquele que diz Senhor, Senhor!... e sim aquele que faz a vontade de meu Pai”. Ou ainda: “Não multipliqueis palavras, como se à força delas fosseis ouvidos; antes de abrirdes a boca, vosso Pai conhece vossos pensamentos”.
A distorção ocorre quando deixamos a atitude de escuta e nos colocamos a repetir frases e mais frases. Daí que muitas vezes a repetição pura e simples dessas fórmulas aparentemente mágicas, longe de nos aproximar de Deus, impedem que possamos saborear sua presença amorosa. O rumor das palavras e o manuseio ruidoso das folhas não permitem a irrupção do Espírito no momento da oração. Somente o silêncio, interno e externo, é capaz de desvelar a Palavra de Deus. A repetição e multiplicação das palavras impossibilitam a revelação da Palavra. A Palavra somente se forja, ganha terreno, cria, recria e liberta na oficina do silêncio/escuta. E este último, por sua vez, representa o útero onde se concebe, gesta e nasce Aquela. Em termos paradoxais, a reza recheada de palavras e vazia de abertura ao espírito pode, sim, nos afastar da oração.
Três exemplos extraídos da Bíblia: a oração de Moisés no episódio da sarça ardente (capítulo 3 do livro do Êxodo), a oração de Maria nas narrativas da infância de Jesus (2 primeiros capítulos de Lucas) e a oração de Jesus no Getsêmani (Mt 26,36-46). A Moisés se ordena: “tira as sandálias, porque o solo em que pisas é sagrado”. De Maria se diz que “guardava e meditava sobre essas coisas em seu coração”. Quanto a Jesus, o silêncio do Pai indica que deve, sim, beber o cálice daquela amarga bebida. Nos três casos, deparamo-nos com o conceito de abaixamento, de auto-humilhação, de aniquilação de si mesmo e de obediência ilimitada, conceito explicitado no hino da Carta de São Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11).
Não se trata de rastejar e morder o pó da terra para salvar-se. Trata-se, antes, de uma espécie de sentimento tão profundo e livre que, ao mesmo tempo, desvela e conduz à submissão de uma ação salvífica grandiosa e universal – humana/divina. “Obediência até a morte e morte de cruz” revela aqui uma atitude de liberdade desconhecida para a sociedade contemporânea. Liberdade quanto aos próprios interesses, paixões, desejos, instintos – em vista de um projeto de salvação desenhado pelo amor de Deus. A verdadeira oração será capaz de anular a própria vontade, tirar as sandálias da segurança, abdicar de títulos e privilégios – em favor da escuta silenciosa da Palavra. É o que podemos chamar de oração nua: despida de catecismos, de fórmulas, de cantos e preces repetitivos, de palavras vãs. Nudez e fraqueza que o silêncio e a escuta revestem com o rosto e a presença misteriosa e misericordiosa de Deus.
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Os riscos da oração. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU