21 Junho 2023
A maioria tem pais, mas corre o risco de adoção na Rússia. E um novo relatório da OSCE denuncia: “Crianças submetidas a um processo de russificação. E passam também por uma reeducação militar”.
A reportagem é de Nello Scavo, publicada por Kherson Avvenire, 17-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Certa noite, uma das garotas do dormitório caiu da janela do quinto andar. Assim nos disseram. Desde então, os soldados russos trancaram todas as janelas e não podíamos mais abri-las para deixar entrar o ar fresco. Obrigavam-nos a ficar com as portas abertas, para poderem entrar a qualquer hora, mesmo quando estávamos tentando dormir." Liza e Nastya conseguiram fugir depois de oito meses de deportação. Nunca descobriram como a outra garota caiu nem o que aconteceu com ela. Haviam sido transferidas sob o controle das autoridades de Moscou por meio de enganos. Também por isso é mais difícil obter o retorno dos menores ucranianos mantidos pelas forças russas. Porque cada uma de suas histórias é um ato de acusação.
Moscou reconhece ter transferido crianças e adolescentes da Ucrânia, mas afirma que o fez para salvá-los dos horrores da guerra. Ainda nos últimos dias, pelo menos 300 menores teriam sido levados do Donbass para a Rússia, sempre afirmando que querem protegê-los dos perigos do conflito. Mas um novo relatório da OSCE, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa da qual a Rússia ainda é membro, desmascara a deportação sistemática dos "filhos da guerra".
Como Liza, natural de Kherson, que passou oito meses de deportação em Genichesk, no território da Crimeia ocupada, no dormitório do "colégio nº. 27”. Aqui conheceu Nastya Shevelyova, uma garota de quinze anos também de Kherson. Elas estudavam em escolas diferentes e durante a ocupação russa de sua cidade, suas famílias receberam ofertas para deixar as meninas morarem em um internato protegido do fogo cruzado da artilharia. Quando, depois de alguns dias, a mãe de Liza tentou entrar em contato com a filha no internato, descobriu que os garotos haviam sumido. Depois de semanas de buscas desesperadas, ficou sabendo que sua filha estava na Crimeia para umas "férias", mas não era impossível contatá-la.
Após os primeiros meses, quando a pressão internacional aumentou para rastrear as crianças desaparecidas, Liza foi transferida para a região ocupada de Zaporizhzhia. "Eles a ameaçaram de que se ela não fosse, a trancariam no porão", relatou a mãe que conseguiu abraçar a filha novamente graças ao trabalho do "Salve a Ucrânia", a organização estatal que tenta trazer para casa as crianças roubadas. Liza, como aconteceu com outras adolescentes ucranianas, havia conseguido enviar notícias pegando emprestado o celular de alguns colegas de classe. Os "educadores" devem ter pensado que bastava deixar para as crianças a possibilidade de usar operadoras de telefonia russas e monitorar os telefones, mas de alguma forma Liza conseguiu contornar o bloqueio e usando as redes sociais russas conseguiu informar onde estava na Ucrânia. A operação para recuperá-la não foi fácil e envolveu vários países. Moscou concordou com sua soltura alegando que queria protegê-la, mas Liza conta como lhe havia sido oferecida a cidadania da Federação e a possibilidade de ser designada para uma nova família na Rússia.
O último relatório da OSCE estabeleceu que existem duas categorias principais de crianças transferidas ilegalmente para a Rússia. “A primeira inclui os órfãos, isto é, as crianças que não têm mais os pais, seja porque os pais faleceram, seja porque são desconhecidos ou porque abandonaram legalmente a criança”, consta no dossiê. As crianças podem ficar órfãs por razões não relacionadas com o conflito ou devido à perda dos pais justamente por causa da guerra. A segunda categoria é composta por crianças desacompanhadas, "ou seja, crianças que têm um ou mais pais, mas foram separadas deles por vários motivos que podem estar, mas não necessariamente, relacionados ao conflito em andamento". Esse grupo inclui "crianças confiadas", por um período máximo de 3 ou 6 meses, ao chamado "assistencialismo", em situações em que suas famílias lutam com circunstâncias de vida difíceis não necessariamente relacionadas ao conflito, ou crianças deixadas por seus pais para outras famílias. Moscou nega ter segurado menores que não sejam órfãos e responde a todos os pedidos explicando que nos seus registos só constam menores sem pais nem adultos de referência.
Em entrevista de um funcionário da polícia não melhor identificado, a agência de notícias russa explicou que, de fevereiro de 2022 a fevereiro de 2023, mais de 5,3 milhões de pessoas, incluindo 738.000 crianças, chegaram ao território da Federação Russa vindas das regiões da Ucrânia que a Rússia considera parte da Federação.
A deportação dos menores é encoberta por uma mentira. Moscou afirma cuidar dos órfãos ucranianos, abandonados por seu país de origem e postos em risco pelos combates. Mas os dados coletados nos últimos meses contam uma história diferente. O que a Rússia não diz é que o Escritório do Comissário para a Infância, chefiado por Marija Llova-Belova, destinatária junto com Vladimir Putin de um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional, é que as crianças ucranianas se tornam órfãs no momento em que acabam sob o controle das autoridades de Moscou.
“Seja qual for a forma de colocação, as crianças ucranianas se encontram em um ambiente inteiramente russo, incluindo língua, costumes e religião, e são expostas a uma campanha de informação pró-Rússia que muitas vezes equivale a uma reeducação dirigida, além de serem envolvidas na educação militar”, lê-se no documento enviado pela OSCE a Moscou, a quem se pede uma resposta até 10 de julho. “A Federação Russa – denuncia-se – não realiza nenhuma ação para promover ativamente o retorno das crianças ucranianas. Pelo contrário, cria vários obstáculos para as famílias que tentam recuperar seus filhos." O comissário de Direitos Humanos do Parlamento ucraniano, Dmytro Lubinets, acredita que o número fornecido pela Federação Russa esteja inflado, com a intenção de sugerir a ideia de transferência voluntária em massa da população para a "Mãe Rússia".
A Comissária presidencial para a Infância, Daria Gerasymchuk, estima que "poderíamos estar falando de várias centenas de milhares de crianças sequestradas, ou seja, 200-300 mil". As denúncias recolhidas por Kiev são quase 20 mil, mas menos de 400 crianças conseguiram voltar a abraçar as suas famílias.
Alguns pais conseguem alcançar o território russo implorando para que seus filhos lhes sejam devolvidos. "Eles podem voltar para casa - explica uma fonte da inteligência ucraniana encarregada de assistir as famílias - somente depois de agradecer formalmente à Federação Russa por salvar seus filhos, e isso na presença de propagandistas russos que registram tudo". Uma forma de se proteger das acusações dos tribunais internacionais. Em geral, explica a "Salve a Ucrânia" as famílias devem “enfrentar até 12 horas de intensos interrogatórios pelos serviços de inteligência russos do FSB, que querem descobrir qual de nós ajuda esses pais a rastrear as crianças. E muitos voltam para a Ucrânia de mãos vazias”.
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Ucrânia. Os menores roubados relatam: "Nós, transformados em órfãos de cidadania russa" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU