17 Junho 2023
Há um grande risco em torno de expectativas irrealistas e impacientes sobre o projeto de reforma da Igreja Católica por parte do Papa Francisco.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 16-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estamos agora a poucos meses da assembleia de outubro de 2023 do Sínodo sobre o “processo sinodal”. Uma segunda assembleia está marcada para outubro de 2024. Ambas serão realizadas no Vaticano. O documento de trabalho para essa primeira assembleia será divulgado à imprensa no dia 20 de junho, e os nomes de quem participará da reunião de outubro próximo também serão divulgados em breve.
Este é um momento importante na vida da Igreja, e as expectativas de muitos católicos estão muito altas: de certa forma, são comparáveis às de um conclave para eleger um novo papa, e certamente não às das assembleias anteriores do Sínodo dos Bispos.
Olhando para trás em perspectiva histórica, quando tentamos identificar tais expectativas em relação ao processo sinodal e, em longo prazo, à sinodalidade, um termo imediato e natural de comparação é o Concílio Vaticano II. Joan Chittister, a renomada irmã beneditina e escritora dos Estados Unidos, aborda exatamente essa questão em uma coluna publicada no dia 9 de junho no National Catholic Reporter. Ela analisa a relação entre a sinodalidade e o Vaticano II, não em termos de linguagem ou conceitos teológicos, mas de resultados. O título do artigo – “Nada realmente mudou depois do Vaticano II. Mas a sinodalidade pode fazer a diferença” – captura o argumento que Chittister tenta apresentar.
“Quaisquer mudanças que as pessoas desejassem do Concílio Vaticano II de 1962-1965 eram, ao que parecia, informes, silenciosas, perdidas na agitação de uma Igreja agitada e congelada em uma mente medieval. Em vez disso, depois de 400 anos sem um concílio de reforma, o tipo de mudanças que as pessoas esperavam desse Concílio ainda se encontra em Roma, secando a tinta molhada lá e amplamente ignoradas aqui”, diz Chittister.
Ela culpa João Paulo II, Bento XVI e os bispos pelo fracasso em implementar o Vaticano II, mas argumenta que o debilitamento do Concílio começou antes mesmo desses dois papas começarem a fazer nomeações episcopais:
“Os bispos do mundo inteiro que participaram do Vaticano II votaram sim para todos os seus documentos, mas, assim que voltaram para casa, muitos simplesmente os ignoraram. Ainda mais importante, poucos Padres conciliares, se é que houve algum, ensinaram os documentos conciliares às suas congregações. Poucos Padres, se é que houve algum, admitiram que eles mesmos também não se deram ao trabalho de ler os documentos. Ah, algumas poucas igrejas redesenharam seus confessionários, e algumas mais derrubaram os cercadinhos do altar, mas, na realidade, além disso e da mudança para o vernáculo em todos os eventos litúrgicos – nada mais aconteceu. A maioria das mudanças eram pura fachada.”
Mas Chittister diz que a sinodalidade pode ser o veículo que finalmente trará todas as mudanças que o Vaticano II prometeu, mas nunca entregou.
Desta vez, o Papa Francisco está fazendo com que os próprios fiéis façam parte do processo de elaboração da pauta, antes mesmo da convocação do Sínodo. O laicato foi convidado para a teologia intelectual da Igreja, em vez de simplesmente se preparar para levantar uma preocupação piedosa em torno do evento. Desta vez, o próprio laicato foi levado em consideração para determinar quais temas devem ser considerados – padres casados, gênero, teologia do matrimônio, igualdade, mulheres-padres, seja lá o que for. Leigos e leigas terão a permissão para falar para os 99% da Igreja, em vez daquilo que o 1%, seus clérigos, permite que seja ouvido.
Tenho o maior respeito por Joan Chittister. Poucas pessoas fizeram o que ela fez para manter vivas as trajetórias do Vaticano II. Ela mudou muitas vidas para melhor. Eu também experimentei, em primeira mão, a acolhida calorosa de sua comunidade religiosa, as Irmãs Beneditinas de Erie (Pensilvânia), quando fui convidado para falar sobre o Papa Francisco alguns anos atrás.
Chittister levanta uma série de pontos válidos: as decepções sobre o ecumenismo, a rejeição do papel das mulheres na Igreja, a ausência de vida ministerial laical em muitas das nossas igrejas. Grande parte disso é dolorosamente verdade em muitos lugares, especialmente nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, sua leitura do Vaticano II (pelo menos como ela descreve em seu último artigo) é profundamente equivocada e enganosa, tanto do ponto de vista histórico quanto teológico. Isso acarreta sérios riscos à medida que nos aproximamos de um momento-chave do “processo sinodal”.
Historicamente, o Concílio mudou, sim, o catolicismo, apesar das insuficiências em sua implementação. É um quadro muito complicado e que ainda está sendo desenhado: o que funcionou e o que não funcionou em escala global; diferentes etapas na recepção do Concílio em diferentes partes do mundo (ou até no mesmo país); falhas que não podem ser atribuídas apenas ao papado ou ao clero; o intervalo de tempo necessário para medir os efeitos de um concílio como o Vaticano II.
A impressão generalizada do ponto de vista anglo-americano é que, embora o Vaticano II tenha mudado a relação do catolicismo com outras denominações cristãs, religiões mundiais e o mundo secular, ele falhou em mudar fundamentalmente as dinâmicas internas e as estruturas institucionais de poder da Igreja. Mas o Vaticano II também mudou a Igreja internamente, de um ponto de vista teológico, de uma forma que agora minimizamos ou assumimos como evidente.
O simples veredito de que o Vaticano II foi um fracasso é, de certa forma, o outro lado da moeda dos argumentos levantados pelos católicos neoconservadores e neotradicionalistas nos Estados Unidos. Ambos os lados se focam excessivamente em um conjunto restrito de questões e desprezam o que o Concílio significou para os católicos de outros países e até mesmo para muitos católicos estadunidenses.
Teologicamente, a questão não é – na minha opinião – se o Concílio ainda precisa ser implementado e, em algumas questões, ampliado. O Vaticano II ocorreu há 60 anos, e o próprio magistério papal construiu seu ensinamento de maneiras inegáveis, às vezes indo além da letra do Concílio. A questão é como a sinodalidade pode retomar o fio do Vaticano II, junto com as dimensões hierárquica e colegial na vida da Igreja. Uma Igreja sinodal redefinirá esses aspectos hierárquicos e colegiais, e não os removerá. Essa forma renovada de catolicismo ainda é em parte amorfa. Está tomando forma diante dos nossos próprios olhos, e não há nenhum roteiro canônico ou eclesiológico claro que possamos seguir.
Mas sabemos que há uma bússola para essa jornada, e é o Concílio Vaticano II – não apenas o que seus documentos disseram (ou deixaram de dizer), mas também o que a recepção do Vaticano II nos ensinou desde 1962 até os nossos dias.
A uma dada leitura do que ocorreu no Vaticano II e seus efeitos, corresponde um conjunto de expectativas da sinodalidade. Aqueles que veem o Concílio como uma decepção ou uma revolução fracassada provavelmente buscarão uma reencenação dessa revolução. Mas isso é ainda mais impossível hoje do que naquela época.
Do lado oposto, aqueles que – com uma certa dose de Schadenfreude – veem a situação atual da Igreja Católica no Ocidente secularizado como uma evidência do fracasso do Vaticano II, provavelmente aproveitarão esta oportunidade para tentar revogar os desenvolvimentos do magistério conciliar, começando pela reforma litúrgica.
Se vemos o Concílio como um fracasso e a sinodalidade como uma chance de reparar esse fracasso (ou, pior, de vingá-lo), então estamos fadados ao fracasso com certeza. A sinodalidade pode mudar a Igreja, mas não da noite para o dia. A assembleia do Sínodo de outubro próximo – a primeira das duas sobre sinodalidade – provavelmente não tomará nenhuma decisão inovadora. Devemos estar preparados para uma longa viagem.
Em uma Igreja que se tornou parte do show business da mídia global, gerir as expectativas tornou-se muito mais importante do que antes. O discernimento também é necessário para as expectativas, e isso é muito mais difícil, porque suas dinâmicas são muito diferentes daquelas de uma conversa espiritual em um encontro sinodal.
As expectativas em torno da sinodalidade são um assunto delicado também por outra razão. Quando João XXIII morreu em junho de 1963, os cardeais elegeram Paulo VI precisamente porque ele era a favor da continuidade e da conclusão do Concílio de João XXIII. Mas, se muitos dos atuais cardeais-eleitores estiverem assustados ou alarmados com o Sínodo sobre a Sinodalidade, eles podem votar em alguém no próximo conclave que esteja ansioso para interromper o projeto de Francisco.
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Vaticano II e sinodalidade: uma resposta amigável a Joan Chittister. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU