"Usando tocas ninjas, espancam os migrantes que fogem e nós socorremos as pessoas torturadas". Entrevista com Duccio Staderini, integrante do Médicos Sem Fronteiras

16 Junho 2023

"De Médicos Sem Fronteiras, passamos a ser médicos de fronteira. Os migrantes nos contam sobre as violências privadas e institucionais. Eles têm sinais de feridastortura de seus países de origem e aquelas mais recentes dos arames farpados. E não só. Colaboramos com a Marinha grega e o procurador das ilhas de Lesbos e Samos. A ACNUR nos envia relatórios por e-mail com a posição GPS das embarcações em dificuldade. Chegamos com o primeiro socorro nessas falésias que os migrantes escalam desde a praia, para se esconderem dos chamados balaklavas", conta Duccio Staderini, chefe da missão Grécia e Balcãs dos Médicos Sem Fronteiras

A entrevista é de Letizia Tortello, publicada por La Stampa, 15-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista. 

Que informações vocês têm sobre o naufrágio de Kalamata?

Não muito mais do que vocês, a situação é confusa. Mas agora vocês veem este naufrágio. Até a Europa percebe isso. Mas é apenas o último, o mais dramático e talvez doloroso dado o número de vítimas, de um fenômeno que está crescendo. Receio que será o primeiro de uma longa série, porque é consequência da política de fechamento que os países fronteiriços da União Europeia - UE estão implementando, com o dinheiro e a pressão da UE. O muro do Evros, na fronteira com a Turquia, os impedimentos de entrada no Egeu, o fechamento agora cada vez mais aceito por todos, têm uma paternidade. Os responsáveis são aqueles que acreditam que a gestão dos fluxos migratórios com a dissuasão e a terceirização das fronteiras seja a solução para o problema migratório.

Imagem do barco dos migrantes, antes do naufrágio (Foto: Reprodução | Guarda Costeira da Grécia)

É a direção para a qual a Europa está olhando, como vimos desde a última votação do acordo sobre migrantes.

Essa direção não só não resolve os problemas das chegadas, como só é eficaz em produzir sofrimento e morte. Alguém, um dia, deveria ser declarado responsável. Não falo apenas da Grécia, mas também da França e da situação em Ventimiglia e Oulx, dos 50.000 barrados pela polícia de fronteira francesa. Números alarmantes, que ninguém mais vê. Estou falando de todas as fronteiras da UE agora. Dos Bálcãs, da Inglaterra, da Polônia na fronteira com a Bielorrússia, da Hungria, da Romênia.

O governo grego reivindica como um sucesso que com o muro do Evros as entradas foram reduzidas.

Isso é fazer política às custas dos migrantes?

É uma política desumana. E ineficaz, repito. As chegadas no Evros foram reduzidas, exceto nas últimas semanas. A passagem por mar pelas ilhas, Lesbos, Samos, Kios, por outro lado, está sujeita a rejeições regulares. Os impedimentos de entrada são gargalos. Não são verdadeiros muros. São gargalos. Mas nenhum migrante volta para seu país. Se você me impedir de entrar pela porta, vou tentar pela janela, porque se o lobo estiver lá fora, no meu país, mudo o rumo, mas não volto ao ponto de partida. E isso alimenta o tráfico humano, que é uma economia que só perde no mundo para aquela da guerra.

Vocês têm testemunhos de violências, abusos? De quem?

De Médicos Sem Fronteiras, passamos a ser médicos de fronteira. Os migrantes nos contam sobre as violências privadas e institucionais. Eles têm sinais de feridas, tortura de seus países de origem e aquelas mais recentes dos arames farpados. E não só. Colaboramos com a Marinha grega e o procurador das ilhas de Lesbos e Samos. A ACNUR nos envia relatórios por e-mail com a posição GPS das embarcações em dificuldade.

Chegamos com o primeiro socorro nessas falésias que os migrantes escalam desde a praia, para se esconderem dos chamados balaklavas.

É o nome dos caçadores de migrantes gregos, certo?

Sim, homens mascarados não identificados, com quem cruzamos várias vezes e denunciamos à União Europeia. Os migrantes são brutalizados por eles, algemados com cabos de plástico, submetidos a choques de tesers. Todos sabem quem são esses balaklavas, ninguém faz nada.

Privados ou para-polícia?

Não temos certezas. Mas não são práticas isoladas. Todos nós vimos o vídeo do New York Times da Marinha Grega que barrava no Egeu. Nós, uma semana antes, havíamos publicado uma reportagem sobre isso.

No naufrágio de ontem, parece que a guarda costeira grega tivesse sido avisada, mas não interveio. Como é que se enquadra a Frontex, a polícia de fronteiras da UE, no patrulhamento dos mares? Vocês colaboram?

Temos relações apenas com o seu Fundamental Rights Officer (Fro). Nós relatamos a ele as violações dos direitos fundamentais. A presença da Frontex não impede, segundo o que observamos, os comportamentos mais perversos sobre os migrantes.

Em Lesbos, o campo de refugiados de Moria não existe mais. A situação humanitária realmente melhorou?

Moria já não existe, mas no seu lugar está Mavrovouni, onde até duas semanas atrás ainda estavam dois mil migrantes. Mil foram expulsos: as autoridades gregas reduziram as ajudas alimentares, para os obrigar a abandonar o campo, sem poder regressar. E há o Megaloterma, no norte, onde desembarcam pessoas que ficam de três a 15 dias em estruturas cercadas com tela de arame, como galinheiros, sem separação entre os sexos. Condições que não acho que estejam de acordo com os padrões humanitários internacionais.

Mapa da região do Mediterrâneo onde aconteceu o naufrágio (Reprodução)

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