10 Junho 2023
A nomeação de Jorge Ignacio García Cuerva para o arcebispado de Buenos Aires foi recebida com alegria e satisfação por amplos setores da Igreja argentina, mas não faltam críticas à sua simpatia pelo peronismo. É, sem dúvida, uma escolha feliz porque o arcebispo está em total sintonia com o Papa Francisco: a paixão pelas periferias, a marcada atenção pelos pobres e pelos que não têm voz, a competência no campo jurídico e teológico.
O artigo é do cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália, publicado por Settimana News, 06-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jorge Ignacio García Cuerva nasceu em 12 de abril de 1968 em Río Gallegos, sede da diocese de mesmo nome e capital da província de Santa Cruz, na costa meridional da Argentina. Padre desde 1997 e nomeado cardeal na diocese de Santo Isidro. Aos 49 anos, em 2017, tornou-se bispo auxiliar de Lomas de Zamora e foi consagrado em 3 de março de 2018.
Seu lema episcopal é significativo: "No apartes tu rostro del pobre” (Não desvie o rosto do pobre, Tobias 4,7).
Em 3 de janeiro de 2019 foi transferido para Río Gallegos. Em 20 de julho de 2021, o Papa Francisco o nomeou membro da Congregação para os Bispos e, em 26 de maio de 2023, promoveu-o a arcebispo metropolitano de Buenos Aires, sucedendo ao card. Mário Aurélio Poli.
Alguns meios de comunicação lembram de suas simpatias pelo peronismo e de ter laços estreitos com Sergio Massa, uma polêmica personalidade política, cujas extravagâncias e passagens de uma orientação política para outra são conhecidas.
García Cuerva admite ter tido estima pelo peronismo, mas não é prisioneiro dele.
Uma rápida pesquisa permite identificar as suas características. O general Juan Domingo Perón participou do golpe que, em 1943, pôs um fim ao governo de Ramón Castillo e se tornou vice-presidente, ministro da Guerra e Trabalho da junta militar. Preparou uma série de reformas sociais, que lhe conferiram grande popularidade, sobretudo entre as classes populares recentemente urbanizadas (os descamisados).
Em 1946 foi eleito Presidente da República, dando vida a um regime populista, no qual a sua mulher Evita, atriz com quem se casou em 1945, desempenhou um papel significativo e que desenvolveu atividade política em sintonia com os sindicatos. Os planos assistenciais e a descarada demagogia de muitas escolhas econômicas levaram o país à crise.
Alarmados, em 1955 os militares o derrubaram. Perón se exilou na Espanha, de onde voltou em 1973, após o sucesso eleitoral do líder peronista Héctor José Campora. Ele foi reeleito presidente e tentou mediar entre a esquerda peronista com tendências revolucionárias e o partido justicialista, que tinha posições conservadoras em sintonia com os militares.
Ele morreu em Buenos Aires em 1º de julho de 1974. Ele foi sucedido por sua segunda esposa, Isabelita.
O peronismo na década de 1970 foi uma mistura de vários sentimentos e diferentes tendências. Havia aquela conciliadora da Confederação Geral do Trabalho e do movimento justicialista oficial, disposta a tratar com os militares; havia a tendência autonomista, profundamente nacionalista e regionalista; havia a tendência de esquerda, que se encarregava das instâncias dos trabalhadores, muito próxima aos padres do terceiro mundo; por fim, havia a tendência representada pelos militantes da extrema esquerda, os guerrilheiros, que entendiam o peronismo como uma revolução armada.
O lema de Perón era claro: independência econômica, soberania política, justiça social. O movimento foi chamado de justicialismo e foi duramente atacado pelos Estados Unidos e pela hierarquia católica. Parte da sociedade argentina também se opôs a ele e gradualmente foi se desestruturando. No final, Perón foi exilado.
O governo de Perón foi sem dúvida um governo popular, que lutou contra o imperialismo e as oligarquias locais. Organizou os trabalhadores em um sindicato forte e coeso, deu aos trabalhadores uma consciência social e política. Muitas leis de natureza social foram promulgadas, as mulheres ganharam o direito ao voto e a Constituição foi reformada. O povo alcançou um padrão de vida digno.
O peronismo também se manteve vivo nos anos difíceis de Arturo Frondizi (1958-1962), durante a ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1969) e Alejandro Augustín Lanusse (1971-1973). No entanto, a carga inovadora foi se perdendo e o povo se levantou em Córdoba, Mendoza, Tucumán, Rosário.
O peronismo, ou justicialismo, na década de 1970 foi um movimento de libertação, não um partido. Um movimento organizado e bem articulado, na vanguarda da Argentina na luta anti-imperialista. Era um movimento nacional, que se baseou nos caudilhos Rosas e Yrigoyen e inspirava-se no cristianismo como todos os movimentos populares argentinos.
Fu um movimento ideológico, que se propunha, em sua segunda fase, à mudança total das estruturas do país e a implantação do socialismo, adaptado à Argentina. Nada a ver, porém, com o socialismo internacional dogmático e burocrático.
Fu um movimento popular, que envolveu a classe trabalhadora, inteiramente peronista, sem recorrer à luta de classes e sem a pretensão de monopólio da revolução. As massas populares, nas eleições de 11 de março de 1973, tiveram confiança em Perón, que assim se expressava:
“O justicialismo era a transformação indispensável, num contexto pacífico, de formas brutalmente capitalistas para um socialismo nacional e humanista”.
A hierarquia católica, em 1945, apoiou Perón aberta e publicamente porque o caudilho se empenhava em defender a escola particular católica e a indissolubilidade do casamento. Quando Perón não cumpriu o acordo, a hierarquia católica passou para a oposição.
Na década de 1970, o movimento dos padres terceiro-mundistas era ativo, fato que preocupava os bispos, que, em 1972, voltaram a se manifestar para condenar sua atividade política. O teólogo Juan Carlos Scannone, jesuíta e professor de Bergoglio, no Colégio Máximo de San Miguel, apresentou-me um balanço daquele período: “A forma de fazer teologia na Argentina deve-se em grande parte ao clima cultural criado pelo peronismo. No plano político, o peronismo dava muita importância aos trabalhadores, os famosos descamisados, ou seja, aquelas massas trabalhadoras que, vindas do interior do país, convergiam para Buenos Aires. Na concepção peronista, é o povo, não a classe, que mais importa. O povo é entendido e sentido como uma categoria; é pensado a partir da unidade e não do conflito como no marxismo.
A "teologia do pueblo" nasceu na Argentina e alguns, como Gustavo Gutiérrez e eu mesmo, a consideram "uma corrente com características próprias dentro da teologia da libertação", embora outros a distingam dela. Parte da unidade do povo para resolver os conflitos, não da luta de classes. No marxismo a unidade vem apenas no final, na sociedade sem classes. É curioso que Bergoglio tenha ido à Alemanha para aprofundar os "contrários em tensão" no pensamento de Romano Guardini, por quem tinha grande estima.
O próprio Gustavo Gutiérrez, fundador da teologia da libertação, me confidenciou um dia que via no peronismo um sulco para aqueles que, fora do marxismo, lutavam pelos pobres. Vou mencionar alguns pontos firmes do pensamento de Bergoglio: o todo é mais que a soma das partes; a unidade vence o conflito; a realidade incide mais que as ideias; o tempo prevalece sobre o espaço.
Outro dos grandes teólogos argentinos, Carlos Maria Galli, me confirmou, em um encontro na faculdade de teologia de Buenos Aires, que Bergoglio nunca se desprendeu e nunca se desprenderá desses quatro axiomas. Seu sucessor na arquidiocese, Jorge Ignacio García Cuerva, já demonstrou, como bispo de Rio Gallegos, que os coloca em prática.
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Buenos Aires tem um novo arcebispo. Artigo de Francesco Strazzari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU