26 Abril 2023
“Diante da situação desesperadora de angústia, incerteza e impotência que eu vivo há 2 anos e 10 meses devido ao desaparecimento de minha filha, como cristã e argentina que pede apenas justiça, dirijo-me a Vossa Excelência Reverendíssima, esperançosa nas palavras de Sua Santidade João Paulo II, para suplicar-lhe que interceda junto ao nosso governo a fim de obter a liberdade de minha amada filha I.M.A. Com fé em Deus, Nosso Senhor, e a esperança em nossas autoridades eclesiásticas, rezo para que minhas súplicas sejam ouvidas ouvi e agradeço profundamente a intervenção da nossa Igreja naquilo que ela puder fazer” [1].
A reportagem é de Gabriella Zucchi, publicada por Il Regno Attualità, n. 8, de abril de 2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
São milhares os pedidos com esse teor, reveladores muitas vezes do sentimento religioso de quem pede, que chegaram de várias maneiras ao núncio Pio Laghi – na Argentina de abril de 1974 a dezembro de 1980 – e, depois dele, a Dom Ubaldo Calabresi (1981-1983), à época do terrorismo de Estado praticado pela junta militar no poder desde 24 de março de 1976 [2].
De fato, contam-se 3.115 casos de presos, sequestrados ou desaparecidos, pelos quais a nunciatura apostólica – principalmente Laghi – interveio junto às autoridades do governo entre 1976 e 1983. Entre estes, 1.812 também constam na lista publicada em 1984 pela Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas, presidida por Ernesto Sábato, enquanto 1.303 são os que foram finalmente libertados.
É o que vem à tona no segundo tomo de “La verdad los hará libres. La Conferencia Episcopal Argentina y la Santa Sede frente al terrorismo de Estado 1976-1983. El terror, el drama y las culpas” [A verdade vos fará livres. A Conferência Episcopal Argentina e a Santa Sé frente ao terrorismo de Estado 1976-1983. O terror, o drama e as culpas, em tradução livre], organizado por Carlos María Galli, Juan Guillermo Durán, Luis Oscar Liberti e Federico Tavelli [3].
(Foto: Divulgação)
A investigação histórica, cujo terceiro e último tomo está previsto para o fim do ano, foi possível graças à abertura dos arquivos da Conferência Episcopal Argentina (CEA), da Secretaria de Estado vaticana e da Nunciatura Apostólica de Buenos Aires, antecipada por vontade do Papa Francisco em relação aos habituais 70 anos após os eventos.
O crucial segundo tomo, em três seções – o terror (1976-1977), o drama (1978-1981), as culpas (1982-1983) – investiga o comportamento da Santa Sé e da CEA em relação à ditadura, seu papel de denúncia ou de reticência sobre detidos e desaparecidos.
Os núncios encaminhavam ao governo pedidos de informação apresentando listas de nomes com as indispensáveis referências ou, em alguns casos, cartas que solicitavam informações sobre pessoas individuais ou grupos familiares. Trata-se de 80 listas, enviadas periodicamente pela nunciatura ao ministro do Interior, de julho de 1976 a abril de 1982, referentes a 2.601 casos, aos quais se somam outros 230 para os quais foi utilizada carta na comunicação, e 284 em que se recorreu a ambas as modalidades.
O maior número de casos foi apresentado por Laghi: 926 em 1976, 1.442 em 1977, 723 em 1978. Outras listas foram compiladas pela Secretaria da CEA, muitas vezes também encaminhadas às autoridades por meio da nunciatura. O governo respondeu às indicações recebidas em apenas 1.078 casos, o equivalente a apenas 35% dos apresentados.
Onde não havia intenção de revelar a verdade, as respostas eram evasivas: “As verificações feitas sobre outras pessoas não deram os frutos esperados”, respondia o ministro do Interior, Albano Harguindeguy, a Laghi em 16 de outubro de 1976. No caso em que os indivíduos estavam detidos, o pedido de libertação recebia, no máximo, uma resposta negativa, pois a pessoa permanecia “fiel à ideologia subversiva” ou não apresentava “sinais positivos de reabilitação”.
As perorações enviadas também à CEA ou a seu presidente denotam um tom reverencial dos redatores para com a autoridade eclesiástica quase excessivo, mas revelador da importância de que o episcopado gozava à época no âmbito público. Fato que Laghi também aponta em seu “Relatório final sobre a atividade da nunciatura apostólica”, de 77 páginas, enviado a Casaroli em 2 de janeiro de 1981: “Os bispos gozam, em geral, de enorme credibilidade no seio da Igreja e de um prestígio singular no país (...) deve-se dizer que nesses bispos a característica do ‘pastor’ prevalece sobre a do ‘profeta’” [4].
Ele evidencia que o episcopado apresenta uma atitude muito tradicionalista e alguns prelados denotam uma insuficiente abertura ao Vaticano II. Embora a CEA e a nunciatura tenham trabalhado juntos em uma infinidade de temas comuns, e na maior parte em substancial acordo, as ênfases de Laghi já mostram uma lacuna entre as posições das duas instituições, que se ampliaria nos anos seguintes.
De fato, o Relatório continua assim: “Um tema muito espinhoso é o da defesa e da promoção dos direitos humanos; o episcopado argentino o assumiu à sua maneira, ou seja, evitando o clamor, o tom irritante da denúncia e da publicidade. Enunciou com clareza e firmeza os princípios, com declarações públicas e coletivas; não considerou oportuno constituir um ‘Vicariato da Solidariedade’, como fez a hierarquia do Chile, mas optou pela via do diálogo direto, instituindo uma ‘comissão de conexão’, composta por três prelados, que se reúnem habitualmente com os três secretários das Forças Armadas”.
E ainda, um pouco mais adiante: “Com esse modo de agir, os bispos defendem que não só cumprem seus deveres, mas também obtêm resultados, não muitos, na verdade, que lhes seriam negados se agissem de maneira diferente; e esse é um modus procedendi que, dadas as circunstâncias e a mentalidade dos militares, eles consideram positivo e digno de aprovação” (p. 493).
Essa comissão de conexão, iniciada em 1976, foi solicitada pela junta militar como canal oficioso de comunicação com o episcopado, ideia apreciada também por este último por acreditar que os problemas espinhosos poderiam ser tratados com confidencialidade e franqueza nessa sede, procurando esclarecê-los e possivelmente resolvê-los.
Pelo contrário, isso acabou sendo um grande blefe, já que, nas 22 reuniões realizadas de 1976 a 1981, os militares principalmente mentiram aos delegados do episcopado: inicialmente manifestando desconhecimento, atribuindo os crimes a alas desviantes e negando toda responsabilidade do governo diante do crescente número de pessoas desaparecidas; depois – quando o modus operandi das forças armadas já havia se tornado inegável – defendendo a validade dos métodos, embora não moralmente apreciáveis, da luta antissubversiva.
É justamente a partir do informativo sobre a 13ª reunião da comissão de conexão (junho de 1979) enviado por Laghi que Casaroli julgará necessário informar João Paulo II das admissões feitas pelos militares a respeito dos desaparecidos, com a consequente separação mais clara do Vaticano em relação aos bispos argentinos. Acima de tudo, pressionando estes últimos a se exporem mais.
Laghi escreveu a Raúl Primatesta, presidente da CEA (01-08-1979): “Os bispos – diz o cardeal prefeito [Casaroli; ed] – não podem aceitar tais motivações e justificativas; têm o dever de falar e de insistir opportune et importune, com os meios à sua disposição”. E, ainda em nome de Casaroli, pedia “que se dê a conhecer às mais altas autoridades do governo a viva preocupação da Santa Sé em uma matéria de justiça e de humanidade tão relevante” (p. 401).
A visita ad limina dos bispos argentinos em 1979 deve ter confirmado em João Paulo II a necessidade de intervir em primeira pessoa, ainda no dia 28 de outubro, sobre o tema dos desaparecidos:
“Na oração do Ângelus de hoje, além da alegria deve haver também o eco das preocupações, das inquietações e dos sofrimentos que não faltam no mundo de hoje (...) Assim, por ocasião dos encontros com os peregrinos e com os bispos da América Latina, em particular da Argentina e do Chile, volta frequentemente o drama das pessoas perdidas ou desaparecidas. Rezemos – continuava o papa – para que o Senhor conforte aqueles que não têm mais a esperança de voltar a abraçar seus entes queridos. Compartilhamos plenamente a sua dor e não perdemos a fé de que problemas tão dolorosos sejam esclarecidos para o bem não apenas dos familiares envolvidos, mas também para o bem e para a paz interna daquelas comunidades que nos são tão caras. Pedimos que se apresse a anunciada definição das posições dos encarcerados e que se mantenha um rigoroso compromisso para proteger, em todas as circunstâncias em que se pede a observância das leis, o respeito à pessoa física e moral, inclusive dos culpados ou indiciados por violações”.
As palavras do pontífice no Ângelus, todas cuidadosamente sopesadas, marcam o ponto de maior diferenciação entre a posição da Santa Sé e a da CEA, pois “colocam os bispos em uma situação que eles gostariam de evitar, ou seja, a de se mostrarem beligerantes diante do governo” (p. 427).
Não se pode deixar de notar que as ocasiões posteriores em que João Paulo II interveio sobre a Argentina – a viagem apostólica durante a guerra das Malvinas (11-06-1982), o discurso ao corpo diplomático em 1983, a Audiência geral de 4 de maio de 1983 – também acabam mais ou menos incomodando o episcopado, no interior do qual sempre há quem confunda a maior audácia do papa com imprudência. Em relação a qual perigo?
A partir daquilo que os arquivos informam, fica claro que, se a partir de um certo momento a Santa Sé e a CEA passam a assumir atitudes diferentes, o ponto de partida é absolutamente comum, compartilhado por amplos setores da sociedade argentina, ou seja, a convicção de que em 1976 somente os militares poderiam salvar uma nação próxima do colapso econômico e da guerra civil, e restabelecer a paz.
“Quem mais poderia dar ao país a ‘espinha dorsal’ de que precisava senão as Forças Armadas, uma instituição sólida, bem coesa, acima dos partidos políticos e posta a serviço dos mais altos valores da pátria?”, não hesitava em escrever Laghi no referido Relatório Final.
Em 4 de agosto de 1976, quando o iluminado bispo de La Rioja Enrique Angelelli pagou com a vida seu compromisso de denúncia e de renovação da Igreja [5], quase ninguém questionou seriamente se se tratava de uma “desgraça” (assim disse Laghi a Villot). Durante todo o tempo da ditadura, aos olhos de grande parte do episcopado, o perigo a ser evitado era sobretudo a queda do governo, com o risco do caos, da instauração de um regime mais duro ou – o pior dos piores – até mesmo comunista.
Se em 1976 a Santa Sé partia de posições substancialmente semelhantes às da CEA, sua percepção foi mudando gradualmente. No Relatório de 1981, Laghi identifica, sim, a origem de todo mal na barbárie do terrorismo guerrilheiro, mas também afirma que isso não justifica “a outra barbárie, a da repressão”, e estigmatiza a segurança do Estado considerada como um valor absoluto, “sobre cujo altar tudo pode e deve ser sacrificado, inclusive a vida humana, e também a liberdade da Igreja”.
As Forças Armadas argentinas cultivaram estrategicamente relações cordiais com a Igreja e com a Santa Sé: retrospectivamente, capta-se bem que elas eram funcionais a um inconfessável plano de extermínio programado, mantido o máximo possível oculto graças ao relacionamento com instituições de grande prestígio e relevância social, às quais, por exemplo, era possível pedir a mediação no conflito com o Chile pelo Canal de Beagle.
No início de seu mandato, Laghi sempre relatava a Roma os traços cristãos que percebia nas mensagens proferidas pelo general Jorge Rafael Videla – um homem que finalmente seria condenado à prisão perpétua e que nunca se arrependeu – como se “o presidente tivesse assumido os sentimentos cristãos do povo argentino, convidando a dar um testemunho autêntico de fé e de amor” (p. 67).
Em seu encontro de 7 de agosto de 1976, Videla lhe disse: “Não procurei este cargo e, se pudesse abandoná-lo, o faria; mas cumpro o meu dever, convicto de que faço um ato de obediência à vontade do Senhor”, e Laghi comentou que o presidente colocou sobre as costas uma pesada cruz... (p. 129). Após o encontro de 18 de julho de 1977, o núncio descreveu Videla como um homem de boa vontade e de excelentes dotes de estadista, sincero e honesto (p. 199).
Em seu diálogo confidencial realizado na residência presidencial de Olivos em 19 de dezembro de 1979, o ditador se definiu comovido pelo Ângelus de João Paulo II e pela mensagem do Dia da Paz de 1º de janeiro de 1980: “Essas mensagens que acompanhei com atenção me levantam agora um problema de consciência, que, como governante e como católico, devo resolver”.
E ainda: “O que querem o Santo Padre, a Igreja na voz de seus pastores, de nós, governantes? Talvez esperem que seja dita a verdade absoluta, total, integral? Estaríamos diante de uma tarefa impossível, pois a verdade absoluta está fora de nosso alcance: mesmo com a maior boa vontade, não conseguiríamos dizer mais do que uma verdade parcial”.
Convidado por Laghi a começar a dizer pelo menos o que pudesse, Videla falava de um número de 5.000 ou 6.000 desaparecidos e não hesitava em mentir sobre os centros de detenção. Na realidade, nem mesmo posteriormente, quando pediria a colaboração da CEA para a reconciliação nacional, o governo diria a verdade sobre os desaparecidos.
Para se ter certezas sobre os “voos especiais”, durante os quais, a cada vez, 15 a 20 prisioneiros em estado de inconsciência eram jogados nas águas do Atlântico, seria preciso esperar pelos anos 1990.
Encerro sobre as Mães e as Avós da Praça de Maio, muitas vezes católicos comprometidas, que, durante o tempo da ditadura, bateram em muitas portas da Igreja, encontrando-as quase sempre fechadas. A principal culpa delas era a de serem percebidas como de esquerda, por serem mães e avós politizadas de supostos subversivos, às quais não se podia nem arriscar dar ouvidos por medo de parecer complacentes com essa ala política.
Na CEA, as razões ideológicas prevaleceram durante anos sobre as razões humanitárias: as mães finalmente conseguiram se encontrar com uma delegação de bispos em maio de 1981, para depois serem recebidas apenas em 1983. Quanto às suas viagens ao exterior, encontraram em Roma o apoio do Pe. Andrea Santoro, o vice-pároco da Paróquia da Transfiguração, mais tarde assassinado na Turquia enquanto rezava na igreja, mas não do cardeal vigário Ugo Poletti, que definiu Santoro como “um homem perturbado política e mentalmente” (p. 413) e evitou dar ressonância às suas iniciativas de acompanhamento.
Por outro lado, Laghi as recebeu na nunciatura e regularmente protestava com o governo, também pelas crianças desaparecidas. A Pontifícia Comissão Iustitia et pax encontrou as abuelas em 15 de maio de 1981, e João Paulo II não temeria ouvir as madres e abuelas várias vezes, depois da primeira delas, em Porto Alegre (Brasil, 05-07-1980).
1. Carta da Sra. A.E.Q. ao Núncio Apostólico Pio Laghi, Buenos Aires, 12-09-1979, SdS, 19 B591nal 13b 566-571 (567), 735.
2. A Secretaria de Estado, à qual os núncios se reportavam, era presidida pelos cardeais Jean-Marie Villot (1969-1979) e Agostino Casaroli (1979-1990).
3. GALI, C. M.; DURÁN, J. G.; LIBERTI, L. O.; TAVELLI, F. (orgs.). La verdad los hará libres. La Conferencia Episcopal Argentina y la Santa Sede frente al terrorismo de Estado 1976-1983. El terror, el drama y las culpas, vol. 2, Buenos Aires: Planeta, 2023, 848 páginas.
4. Os intercâmbios epistolares entre os núncios e a Santa Sé são todas em italiano, mas, no volume, são traduzidas em espanhol.
5. Reconhecido como mártir pelo Papa Francisco, foi beatificado em 27-04-2019.
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Argentina. O véu ideológico: o papel da Santa Sé, os medos dos bispos, as portas fechadas às Mães da Praça de Maio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU