"Onde ocorre libertação, o mistério da graça está operando, independente de vinculação religiosa ou espiritual. O laço fundamental que liga salvação e libertação é, em primeiro lugar, 'a vontade salvadora de Deus'. A cada momento que se dá um movimento libertador ocorre sempre o sopro da graça".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Num momento onde a Teologia da Libertação (TdL) vem sendo questionada cotidianamente por grupos conservadores e beligerantes da igreja católica, é momento oportuno de aquecer os corações com obras que tiveram um papel fontal e irradiador para a pastoral no Brasil, sobretudo para as Comunidades Eclesiais de Base. Quero lembrar aqui de um livrinho precioso, de co-autoria de dois irmãos queridos: Leonardo Boff e Clodovis Boff. O livro veio dedicado ao pai fundador da Teologia da Libertação: Gustavo Gutiérrez. Os dois sempre estiveram à frente do enriquecedor trabalho pastoral no Brasil, nos convocando à alegria de um compromisso fraterno e cordial com as pequenas comunidades espalhadas por todo o Brasil. Irmãos que estão na história dos Intereclesiais de CEBs como tatuagem que não se apaga jamais.
O livro, Da Libertação, foi publicado pela editora Vozes em 1979. Era o tempo em que eu estava fazendo o mestrado em teologia na PUC-RJ, e tive a oportunidade maravilhosa de ter Clodovis Boff como docente em várias disciplinas da teologia. Ele vinha com todo o vigor e animação de sua defesa doutoral, realizada em Louvain, na Bélgica, em torno ao método da teologia da libertação. Foi uma tese pioneira e que marcou todos nós estudantes de teologia daquele período [1]. O seu trabalho foi fantástico, organizando de uma forma clara e exemplar o método que caracteriza a Teologia da Libertação.
Vemos esse influxo de sua reflexão no primeiro capítulo do livro, de autoria de Leonardo Boff, quando vem abordado o tema da Salvação nas libertações. Com o brilhantismo que o caracteriza, Leonardo abordou questões fundamentais, como o nascedouro da TdL, que se irradiou a partir da mística dos pobres. Em sua genuína reflexão, Leonardo indica que no fundamento da TdL está uma mística, que é a do “encontro com o Senhor no pobre”.
Esse é o grande mote que a todos nos inspirou, e que já estava presente no livro fundador da TdL, de autoria de Gustavo Gutiérrez, que também dedicava ao tema da espiritualidade um lugar singular. Dizia ali Gutiérrez que a espiritualidade “é uma forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o evangelho” [2].
Acompanhando a expressão “espiritualidade” estava outra igualmente importante: “Solidariedade”. Com base na espiritualidade, lembra-nos Gutiérrez, está uma experiência de solidariedade com os outros, sobretudo os mais pobres; uma solidariedade que vem tematizada e testemunhada. Quando Gutiérrez enfatizou esse tema da espiritualidade da libertação queria também nos advertir sobre algo que é essencial para todo militante: jamais esquecer a plenitude do amor que está presente no compromisso em favor da libertação. Se essa fonte vem relativizada ou mesmo esquecida, o risco maior é de desconhecer “toda a plenitude” que está na raiz desse compromisso [3].
A reflexão de Gustavo Gutiérrez tem uma clara inspiração em Teresa de Ávila, que em seu livro sobre as Moradas nos chama a atenção para esse segredo fundamental do compromisso em favor do outro: “O amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus” [4] (VM 3, 9).
Retomando o capítulo escrito por Leonardo Boff, após falar dessa mística do pobre, ele desenvolve o tema da “articulação sacramental da TdL”. Trata-se, a seu ver, de uma teologia que nasce de uma escuta e de um sentir, ou seja, da percepção da miséria da realidade. Junto com o sentir, ocorre também o momento da iracúndia sagrada, da justa indignação contra a realidade que provocou e provoca essa pobreza. E, finalmente, o momento da prática concreta, do exercício de solidariedade com o outro.
Com a ajuda preciosa do irmão, Leonardo então aprofunda o método da teologia da libertação recorrendo aos três elementos fundamentais que marcam a epistemologia da TdL: A mediação sócio-analítica (MSA), a mediação hermenêutica (MH) e a mediação prática (MP). Em sua tese doutoral, Clodovis Boff dedicou-se integralmente ao tema: o objeto da TdL, o modo de apropriação desse objeto (a pertinência teológica) e o “meio de realização da prática teológica concreta”. Leonardo Boff retoma esses elementos com precisão franciscana. E assim se expressa:
“O ideário cristão não é totalmente consumível numa prática política, nem pode reduzir-se a uma forma particular de sociedade. Mas a fé cristã ajuda o cristão a optar, dentro das concreções da história, por este ou aquele tipo de análise da realidade” [5].
Uma vez analisada a realidade e examinada à luz da fé, vem o momento da práxis, ou seja, o momento da tradução “em ação concreta o que foi visto e julgado anteriormente” [6]. É quando se dá o momento fundamental da lucidez da prática e também da “prudência pastoral”.
Na sequência de sua reflexão, Leonardo aborda questões relacionadas à atmosfera da libertação e sua temática, levando-se em conta a contribuição do magistério da igreja, e em particular do documento de Puebla (1979). Finaliza sua abordagem apontando o problema axial da teologia da libertação: sua “perspectiva de fundo” e sua “correta embocadura” que possibilita um discurso teologicamente rigoroso sobre o tema.
O segundo capítulo do livro, de autoria de Clodovis Boff, trata o tema da sociedade e o reino. A forma como Clodovis escolheu a abordagem da questão é bem sugestiva, envolvendo o diálogo entre um militante (Luís), um vigário (Vicente) e um teólogo (Carlos). É algo bem típico de Clodovis, depois de sua volta do doutorado, a de buscar uma teologia bem enraizada no chão do povo. Por isso mesmo ele buscou concretizar esse desejo em seu próprio exercício de vida, pontuado por um semestre de atuação no Acre, junto às comunidades populares, e o outro na PUC-Rio, lecionando no departamento de teologia. Era o caminho de visibilização de uma união sensível entre vida pastoral e vida acadêmica, sendo que a primeira iluminava o labor da segunda.
Através desse recurso didático, Clodovis vai situando com muita clareza o que define a teologia da libertação. É extremamente rico e elucidativo o diálogo entre os três interlocutores. Cito como exemplo, uma fala do teólogo (Carlos), clarificando o significado de libertação integral.
O teólogo faz menção indireta à obra de Gustavo Gutiérrez, e busca avançar na reflexão sobre os níveis de libertação [7]. Para ele, há que elucidar melhor o tema, mostrando com clareza que os vários níveis estão mutuamente envolvidos. Cada um dos níveis de libertação “já se encontra implicado no outro por uma espécie de mútua inclusão”. Não há que justapor os níveis mas perceber, com clareza, que a libertação espiritual já está intimamente vinculada à libertação material [8].
O teólogo entra para esclarecer o vigário e o militante sobre a peculiaridade da teoria teológica da libertação. Quando assentada epistemologicamente, a TdL tem melhores condições de entrar num diálogo enriquecedor com as ciências sociais, e diria eu, com as outras ciências em geral. O teólogo Carlos busca argumentar sobre a “urgência de uma terapia da linguagem teológica”, capaz inclusive de ajudar a precisar melhor o vocabulário da libertação. Como ele argumenta, o esforço de “aplicar uma boa terapia à linguagem teológica contribui a resolver o grande problema que é a libertação real do povo” [9].
Movido por grande lucidez e vontade de contribuir, o teólogo Carlos, que na verdade é o teólogo Clodovis, busca esclarecer para o militante e o vigário que não há oposição entre espírito e matéria. O que ocorre é justamente o contrário, ou seja,
“O Espírito Santo está aninhado na matéria, anima o corpo humano, habita no íntimo do homem e preenche o mundo. Ele se opõe somente ao não-ser, à morte, ao mal: a injustiça, a destruição, a dominação, o desprezo, o desamor, enfim, o pecado” [10]
Embora não apareça explicitamente na interlocução entre os três o traço que caracteriza o objeto próprio da teologia, queria aqui lembrar que, com base em Tomás de Aquino, o próprio Clodovis lembrou em sua tese doutoral, que não há nada que escape ao olhar ou visada teológica. Tudo pode ser objeto da teologia, e isso é o que proporciona a ela uma grande riqueza. No caso do capítulo escrito por Clodovis, o teólogo Carlos busca clarificar tudo de forma muito rica. Como ele diz no diálogo:
“tudo o que se faz segundo o Espírito Santo é ´espiritual`, mesmo quando a gente trata das coisas materiais, como comer, beber, trabalhar, ter e criar filhos, amar, dar pão ao faminto, vestir o nu e, hoje, lutar pelos e com os oprimidos”.
Quando Carlos, o teólogo fala do Reino de Deus, nossos olhares ganham um brilho irradiador. É algo de uma beleza única, que também nos faz recordar as reflexões pioneiras de Leonardo Boff sobre o tema em seu Jesus Cristo Libertador (1972) . O Reino de que fala Jesus, em sua essência, diz Carlos,
“não é nenhuma sociedade de que fala um político. Assim também a salvação de que fala o cristão não é em si mesma nenhuma libertação de que fala um marxista. A sociedade é algo de histórico, objetivo, relativamente manipulável. O Reino não: ele é trans-histórico, é um dom divino, é um mistério, ou seja, uma realidade não objetivável” [12].
Ao falar sobre o Reino de Deus, o teólogo provoca um “salto da transignificação”, ou seja, ele busca colher uma imagem utópica, de uma sociedade ideal, daquela que todos almejamos, fundada na justiça e na fraternidade. E esse Reino, como diz Carlos, “é uma realidade que já está presente no coração da história” [13].
Quando se aborda o Reino de Deus, não se pode olvidar o seu significado propriamente sacramental, que envolve uma metáfora peculiar, que está ligada à “salvação divina dos homens”. O Reino não se idêntica com o mundo, mas se identifica no mundo. O que ocorre é uma identificação tópica. É possível então, nos diz Carlos, compreender que o Reino está no mundo, dentro de nossa sociedade. Devemos sim, evitar “a linguagem da identidade pura e simples: o Reino é o mundo, e adotar a linguagem da realização tópica, de instalação: o Reino está no mundo” .[14]
Essa reflexão sobre a relação entre Reino e Mundo opera também para a relação entre salvação e libertação. É uma relação que não consegue ser captada com o olhar de superfície, mas exige de nós a percepção de que algo misterioso aí se dá. As palavras não conseguem dar conta desse íntimo laço que une salvação e libertação. Mas de que as duas estão intimamente unidas, não há dúvida alguma.
Onde ocorre libertação, o mistério da graça está operando, independente de vinculação religiosa ou espiritual. O laço fundamental que liga salvação e libertação é, em primeiro lugar, “a vontade salvadora de Deus” [15]. A cada momento que se dá um movimento libertador ocorre sempre o sopro da graça [16].
Ao final do diálogo entre os três interlocutores, Carlos depura ainda mais a sua reflexão teórica, mostrando o processo da prática teológica que abraça a dinâmica histórica libertadora, mas garantindo ao mesmo tempo a singularidade da pertinência teológica. É aquele desafio que toca a todos nós, de buscar com os óculos da fé desentranhar no processo histórico uma dinâmica salvífica, ou seja, de “descobrir dentro da libertação sua dimensão transcendente, sobrenatural, salvífica” [17]. Como adverte Carlos, para se perceber a dimensão salvífica da libertação, exige-se do cristão a devida compreensão do significado da salvação, que só pode ser facultado com o recurso da mediação hermenêutica (auditus fidei) [18].
Respondendo a uma provocação feita pelo militante Luís, em torno do povo organizado como sujeito da história, o teólogo Carlos acrescenta que à luz da fé (G2), Deus está sempre-aí presente. Ele, sim, é o verdadeiro sujeito de tudo, e sua ação “passa pela intermediação das forças políticas, inclusive econômicas” [19].
Com a ocular teológica somos capazes de compreender que Deus está emaranhado em todas as lutas em favor da libertação dos pequenos, bem como das ações que buscam salvaguardar a criação. Deus é aquele que está sempre presente, ele “age por detrás, e através, e no interior de todas as causalidades físicas e históricas” [20]. Em síntese, “a ordem da libertação está toda inteira no interior do plano da salvação”. Ou como diz com acerto Edward Schillebeeckx: “não há salvação fora do mundo” [221].
O diálogo do vigário, do militante e do teólogo desemboca numa questão essencial, que diz respeito à presença dos cristãos na política. Todo o embasamento anterior tecido por Carlos, favorece a clara percepção de que a ação militante do cristão no mundo é algo que desborda da própria fé.
A fé entra como o “potencial de luz e força de primeira grandeza”. Ela entra como fonte inspiradora da ação e fermento para a luta. A fé não exclui o compromisso no mundo, mas o exige, pois ela “radicaliza o empenho” [22]. E para essa luta, a mística aparece como a azeitona da empada, pois é a mística que alimenta a luta, assim como alimenta a fé, e igualmente mantém aceso o vigor de todos que ainda acreditam num outro mundo possível.
[1] Clodovis Boff. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978.
[2] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 172.
[3] Ibidem, p. 173.
[4] Santa Teresa de Jesus. Castelo interior ou moradas. São Paulo: Paulus, 1981, p. 121.
[5] Leonardo Boff & Clodovis Boff. Da libertação. O teológico das libertações sócio-históricas. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 18.
[6] Ibidem, p. 19.
[7] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação, p. 44. Gutiérrez distingue três níveis de significado da palavra libertação: o plano científico, que envolve a práxis histórica, o plano utópico (processo de libertação do homem), o plano da fé (que diz respeito à libertação do pecado).
[8] Leonardo Boff & Clodovis Boff. Da libertação, p. 72.
[9] Ibidem, p. 76.
[10] Ibidem, p. 78.
[11] Leonardo Boff. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 68-70.
[12] Leonardo Boff & Clodovis Boff. Da libertação, p. 80.
[13] Ibidem, p. 81.
[14] Ibidem, p. 82-83.
[15]Ibidem, p. 87.
[16]Ibidem, p. 88.
[17] Ibidem, p. 93.
[18] Ibidem, p. 94.
[19] Ibidem, p. 99.
[20] Ibidem, p. 99.
[21] Edward Schillebeeckx. História humana revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 21.
[22] Leonardo Boff & Clodovis Boff. Da libertação, p. 107.