30 Mai 2023
Juan Luis Arsuaga (Madri, 1954) observa nas salas do Museu do Prado as esculturas do Diadúmeno de Policleto e a Vênus del Delfín. O corpo humano nu e glorificado, resultado de uma história evolutiva de sete milhões de anos.
Conectando a ciência com a arte, o famoso divulgador, um dos cientistas mais importantes da Espanha e codiretor de Atapuerca, lança nesse cenário o seu novo livro, Nuestro cuerpo (Destino), no qual esmiúça como foi o processo até chegar a essa expressão anatômica e como nos diferenciamos do resto das criaturas.
A entrevista é de David Barreira, publicada por El Cultural, 23-05-2023. A tradução é do Cepat.
O que você diria que é a parábola deste livro? O que quer ensinar aos leitores sobre a anatomia humana?
Basicamente, o que eu pretendo é nos familiarizar com o nosso próprio corpo, desfrutar do corpo, conhecendo-o. Acredito que não pensamos muito nele, exceto quando sentimos dor. Então, não temos um bom relacionamento. O corpo é um desconhecido.
Sabemos sobre o corpo o que eu sei de meu carro, não sendo um apaixonado por mecânica. Sei que possui um motor em algum lugar e que, de alguma forma, com gasolina anda. Alguém que sabe sobre mecânica de automóveis parece desfrutar melhor a viagem no carro. Com o nosso corpo parece que acontece um pouco o mesmo, com uma diferença fundamental: nosso corpo tem sensibilidade e sentimos através dele.
Após ter dito tudo nessa chave dualista, nessa chave de Descartes, de que, na realidade, somos dois – uma parte importante que sou eu e, depois, um veículo que é menos importante que me leva, que me transporta –, busquei mudar um pouco o sentido do olhar e dizer que, muito mais, somos um corpo que tem uma mente. Isso nos leva a nos interessar pelo nosso corpo e a senti-lo e desfrutá-lo através do conhecimento. Ou seja, Epicuro.
Também tem uma estrutura original...
Do ponto de vista literário, tem a originalidade de que, até onde eu sei, nunca se escreveu um livro sobre o corpo humano somente com textos. Ninguém lê um livro do corpo. Lemos romances ou livros sobre qualquer coisa, mas não um atlas de anatomia com alguns senhores dissecados. Em outras palavras: o livro na realidade é o corpo.
Nosso corpo é um livro. De fato, é um dos títulos que abordamos. O corpo é um documento que tem sete milhões de anos de história. É preciso aprender a conhecê-lo como se fosse o documento que é e através da vista e do tato. O livro não tem ilustrações porque o seu corpo é a ilustração. É um livro para se tocar.
Reivindica a relação que os antigos gregos tinham com o corpo. Mas por que o corpo é o grande desconhecido? Por uma questão de pudor?
Na Espanha, em particular, temos um problema. Seria necessário fazer uma análise sociológico-histórica para ver como chegamos a isso, mas somos vergonhosos. Essa é uma observação imediata. Quando você diz na aula “vamos tocar nossa munheca”, ocorre uma espécie de momento de pânico. Em outros lugares, aparecem voluntários. Aqui, temos uma imagem ruim do corpo.
Há uma coisa com o corpo que seria fácil dizer que é produto da Inquisição, da Contrarreforma, sei lá, mas temos uma relação que não é normal, que não é a que as crianças têm. As crianças ficam encantadas em se tocar em todos os lugares e, depois, como adultos, ficamos tímidos, envergonhados e com pudor.
Os dois grandes traços definidores do ser humano são o bipedismo e a capacidade cognitiva. Como chegamos até aqui? Quais são as chaves deste processo de evolução em relação a outros animais?
Estão defasados porque primeiro aparece a posição bípede e depois a inteligência. Esses dois traços que nos definem aparentemente não têm nada a ver, exceto que talvez possamos dizer que a posição bípede era uma condição necessária para que mais adiante ocorresse a expansão do cérebro. As habilidades, por exemplo, de manipular objetos são anteriores à expansão do cérebro, que deve ser uma condição necessária, talvez não suficiente, mas o precede.
Mas também há outra coisa aí: dentro da evolução, somos bípedes há quatro milhões de anos, mas o Homo sapiens é um bípede muito especial, porque somos um prodígio da biomecânica e do desenho biológico. O Homo sapiens é uma espécie muito bem desenhada para percorrer longas distâncias. Somos uma espécie caminhante, peregrina.
E somos a espécie privilegiada, a eleita pela seleção natural?
Bem, nós desenvolvemos isso mais do que a força. Na evolução humana, as outras espécies bípedes, os neandertais, o Homo erectus, possuem uma grande força física. Pesariam 10-15 quilos a mais de músculos do que qualquer um de nós. Certamente, suas fibras musculares também tiveram predomínio das fibras de contração rápida.
Ou seja, trata-se de corpos que estão mais bem preparados para esforços explosivos, mas não para a resistência. Eu sempre dou um exemplo que é bastante evidente: as pessoas fazem o Caminho de Santiago em um mês, que começa na França e termina em Compostela. Essa capacidade de caminhar que nos parece normal é excepcional, é extraordinária.
As migrações de nossos ancestrais, há dezenas de milhares de anos, já eram impressionantes…
O Homo sapiens é um maratonista. E isso tem muitas implicações, do parto a milhares de coisas. Uma forma de explicar esse conceito para que as pessoas entendam está em como é difícil emagrecer, porque esse nosso carro queima tão pouco combustível que custa muito perder peso só pelo exercício, porque gastamos muito pouco.
Os sete milhões de anos de evolução foram uma grande odisseia? O lógico teria sido ficarmos pelo caminho?
O lógico teria sido sermos paranthropus. Dentro de uma lógica de nossa descendência, há uma mudança climática, um fato externo, que reduziu a extensão da floresta, da floresta chuvosa. Nesse momento, há muitas linhas evolutivas que evoluem para se adaptar a ambientes mais secos, mais abertos, mais sazonais. Surgem os australopithecus e isso continua progredindo e aparecem algumas formas de australopithecus que têm um aparelho de mastigação: são vegetarianos que trituram muito alimentos vegetais.
Essa seria a evolução que deveria ter ocorrido. Mas, aconteceu outra coisa: houve um antepassado nosso que em vez de aumentar o tamanho dos dentes, reduziu-os e, ao contrário, substituiu a biologia pela tecnologia e aumentou o cérebro. Isso, se eu fosse um zoólogo extraterrestre que estivesse observando, francamente não é o que eu esperaria, porque é como uma inversão, é uma mudança completa da evolução. É uma trajetória evolutiva diferente e de certo modo inesperada.
O momento chave.
Foi aí que tudo começou: o momento em que um antepassado nosso que vivia junto com outros muito parecidos que eram vegetarianos e que viviam naqueles ambientes, em vez de se adaptar aos novos ecossistemas e novos recursos, desenvolvendo o aparelho mastigatório, apostou em toda a tecnologia e na inteligência. Essa aposta teve êxito, mas, absolutamente, não estava escrita.
No livro, analisa a polêmica científica entre os que defendem que nosso corpo (do pescoço para baixo) pouco mudou desde o Homo erectus e os que, como você, afirmam que foi uma aquisição exclusiva do Homo sapiens, há aproximadamente 200.000 anos.
É que isso é tudo. Para além das descobertas de ossos, esse é o grande ponto de partida da ciência da evolução humana. É algo em que gosto de insistir porque não é trivial. Eu comparo isso com a teoria da Terra como o centro do universo. Essa é a grande partida que está sendo jogada. Há duas hipóteses alternativas que são incompatíveis e não pode haver um meio termo. E eu defendo uma e estou certo de que vou vencer.
Quais são as evidências que respaldam sua teoria?
Pelo que expliquei antes, pela interpretação dos ossos, e porque penso que, em poucas palavras, o Homo sapiens é uma espécie excepcional. Não somos um a mais. Os neandertais, para dar o exemplo de uma espécie semelhante à nossa, são como uma extensão do que havia antes.
Nós somos um acontecimento, algo novo, uma grande novidade evolutiva, um desenho biológico diferente de tudo o que veio antes. Todo o resto é o arcaico. É como se você tivesse um barco a vela. Você pode colocar mais velas e mais velas, e mais postes e mais paus. Bem, é um aperfeiçoamento do barco da vela, mas nós somos um barco a vapor. É que somos outra coisa.
Esse momento específico do surgimento do cilindro corporal estreito é o grande mistério sobre a evolução humana?
É o grande debate. Mistério não é porque há duas alternativas: branco ou preto. É como Copérnico: gira o sol gira ou gira a Terra. Agora, há discussão e disputa para ver quem tem razão. Contudo, não tenho a menor dúvida de que a batalha está ganha, de que esse grande debate será resolvido a favor da minha equipe. E isso mudará nossa perspectiva.
Muito se escreveu acerca de que somos uma espécie humana a mais como tantas outras, com alguma peculiaridade. E eu digo que não, que somos um desenho revolucionário, que somos outra coisa, que não somos uma variante.
Já se sabe que o pêndulo da história vai de um extremo ao outro. Começou-se dizendo que éramos algo único, incomum e divino, e que os outros eram simiescos e subnormais, incluindo os neandertais, mas, depois, foi em outra direção e parece que somos simplesmente uma variante ou uma subespécie de hominídeo com alguma coisa peculiar e um pouco de sorte.
E eu penso que não, que temos um desenho completamente diferente e que tudo está relacionado. Nós renunciamos a força individual em favor da força do grupo. Ou seja, podemos nos dar ao luxo de ser individualmente mais fracos porque nosso grupo é mais forte. Tudo isso condiciona a definição do ser humano.
Em que outros aspectos você diria que, atualmente, os principais estudos científicos relacionados à evolução humana estão se concentrando?
É que o corpo humano continua sendo um mistério. Ainda não sabemos por que temos o glúteo máximo tão desenvolvido. O motivo de termos bunda, dito, assim, diretamente. Não sabemos que função tem a posição bípede ou que vantagens representa.
No livro, aparece muito Descartes, que é dualista, a mente e o corpo como coisas separadas. Isso se tornou tão transcendente que parece que sempre pensamos nesses termos, que temos duas entidades separadas. Agora, há uma tendência a mudar o sentido do olhar: enquanto com Descartes se dizia que a mente tem um corpo, agora, nos inclinamos a pensar que o proprietário é o corpo.
No verão passado, sua equipe anunciou a descoberta, em Atapuerca, do rosto do europeu mais antigo. Esse indivíduo seria muito distante do que somos hoje?
Sim, sim, porque eu digo que somos diferentes. O outro lado diria que não, que há mudanças a nível do cérebro, mas que na essência é bastante parecido. Como penso que o Homo sapiens é produto da evolução, claro, mas que somos nós os originais, eu diria que sim. Provavelmente, o melhor nome que podemos dar a essa espécie de 1,4 milhão de anos é o de Homo erectus.
Quando o vemos reconstruído em um museu, é bastante parecido conosco, não é um macaco. É um humano bípede, alto e grande, tecnológico. Mas, depois, na anatomia e em tudo o que isso implica, não. Se você tem um corpo bem apto para esforços explosivos, praticará uma caça por emboscada. E se você tem uma anatomia que facilita a corrida de resistência, então, fará uma caça por esgotamento.
Em vários fragmentos do livro, repete que um dos grandes problemas enfrentados pelos paleontólogos é a escassez de fósseis. Considera que as novas tecnologias podem ajudar nessa busca ou realmente teme que a ausência de restos de hominídeos se deva ao fato de que não se conservaram, após tantas centenas de milhares de anos?
Sempre houve mais cavalos e mais zebras do que humanos, mas sempre houve mais zebras do que leões. Então, não, os restos mortais vão sendo encontrados porque não éramos tão excepcionais. De fato, não seríamos mais raros que os leões. Isso é uma questão de tempo, esforço e dinheiro.
Há poucos dias, foi publicado um estudo na Nature dizendo que o Homo sapiens descende de pelo menos duas populações diferentes da África. Como avalia a revolução que os estudos de DNA estão provocando na história da evolução humana?
São comparáveis aos que têm sido produzidos no estudo da espécie humana atual. E, na realidade, muito complementares ou muito relacionados, porque verdadeiramente para saber no que somos diferentes é muito útil ter uma espécie como os neandertais e os denisovanos com os quais nos comparar.
Há aspectos da biologia humana que não mudam tanto como pode ser a anatomia e a fisiologia. A genética é importante para a espécie humana atual. Não sabemos muitas coisas sobre como nos desenvolvemos e nossa relação com as doenças. Agora, há um limite de antiguidade. Nunca teremos o DNA do Homo erectus ou de australopithecus.
Bermúdez de Castro diz que a evolução humana é um edifício bem construído e que esses estudos são como uma espécie de reforma, que não haverá uma virada brutal.
Eu acredito que de entrada saber que temos uma porcentagem de genes neandertais é uma contribuição. A ciência é cumulativa, ou seja, essa frase que muito se lê por aí de que essa descoberta vai nos forçar a reescrever o livro da história... Cara, estaríamos fritos, não? Se a cada semana tivéssemos que reescrever a história, estaríamos perdidos.
O conhecimento produz ignorância. Antes de descobrirmos a América, não tínhamos qualquer problema com a botânica americana. De fato, sequer sabíamos que existia um continente. Uma vez que Colombo chegou à América, já surge uma pergunta: que tipos de plantas crescem aqui?
Ou seja, para formular uma pergunta, você precisa de uma novidade, um fato novo. Quando pensávamos que só havia água entre a Europa e a Ásia, o problema das culturas americanas não existia. Quanto mais conhecimento, mais perguntas surgem.
O próprio DNA foi descoberto em 1953. Ninguém se perguntava sobre os genes. Cada descoberta permite levantar novas perguntas. Cada avanço faz com que surjam novas questões. Não é o caso de reescrever o anterior. É que agora surgem novas perguntas.
Talvez nós, dos meios de comunicação, tenhamos um pouco de culpa por exagerar nas descobertas...
Às vezes, sim, e às vezes, são os pesquisadores. Nos últimos tempos, no mundo da paleontologia, as novas tecnologias que fizeram coisas muito importantes são os métodos de datação e depois viria a TAC, do qual não se fala em comparação com o DNA. Não se fala tanto dela, mas revolucionou completamente os estudos de paleontologia humana, pois graças a ela podemos ter uma imagem tridimensional do objeto. O primeiro crânio sobre o qual se publicou um estudo de TAC foi o número 5 da Sima de los Huesos, feito no Hospital 12 de Outubro.
No livro, diz que ciência e liberdade são inseparáveis. Agora que parece que temos mais liberdade do que nunca, a ciência está perdendo peso nessa sociedade líquida, instantânea e fugaz do presente?
Eu acredito que não, mas, aqui, há um debate muito interessante: se pode haver ciência em uma ditadura. A questão está no porquê a ciência surgiu, quando e onde. Bem, começa na época de Descartes. A ciência é basicamente um método, as pessoas a idealizam muito, como se fosse uma coisa quase religiosa. Surgiu na Europa, no contexto do barroco do século XVII. Então, há polêmica sobre se a ciência pode ser desenvolvida em uma ditadura.
Qual é a sua opinião?
Que não. Darwin escreveu que a Espanha era uma potência e, de repente, deixou de ter ciência por culpa da Inquisição. Eu tenho exemplos do retrocesso que a União Soviética experimentou na genética, por exemplo, em que por razões ideológicas os mendelistas foram colocados na prisão. E foi estabelecida uma doutrina genética que satisfazia o ditador da época, que era Stalin, mas que fez com que a genética na Rússia sofresse um atraso de meio século. Pode haver desenvolvimento tecnológico nesses países, nessas ditaduras? Também tenho minhas dúvidas.
De armamentos, talvez.
Nem isso. Temos o exemplo da Alemanha nazista, onde fabricaram as bombas voadoras. Pode haver um certo desenvolvimento? Sim, mas a grande ciência alemã é anterior a Hitler. Mas, esse é um debate bonito, interessante, porque produz novas perguntas.
Em resumo, na minha opinião, não pode haver ciência porque a ciência é incômoda. Ou seja, a verdadeira ciência é uma coisa incômoda porque sempre é subversiva, no sentido de que se faz as perguntas incômodas. Eu acredito que nenhum avanço importante na ciência, até o momento, poderia ter ocorrido em uma sociedade fechada.
A grande contribuição de Descartes é essa ideia de diferenciar corpo e mente. Por qual contribuição você gostaria de ser lembrado?
Encontrei um campo que era o da evolução humana, que estava excessivamente especializado. A ciência pode cair em um defeito que é o da ideia de especialização, que acaba trabalhando só em coisas muito específicas. Existe uma frase que usamos muito que diz que um especialista é uma pessoa que buscando saber cada vez mais de menos, acaba sabendo tudo sobre nada. Este é um risco da especialização.
Eu tenho contribuído para oferecer uma visão da evolução humana que tem muito mais sentido biológico, que é a da espécie humana como parte da natureza. Havia um dualismo que era homem e planeta. O grande avanço da segunda metade do século XX é descobrir que tudo está conectado.
E, então, minha perspectiva é voar um pouco mais alto. E a minha contribuição na divulgação, como na pesquisa, é tentar ver as coisas de uma altura maior, ter uma visão mais ampla e, sobretudo, ver o ser humano como parte de um ecossistema e relacioná-lo com o clima, com as mudanças nas plantas, nas comunidades.
Ou seja, uma ideia muito mais ecológica da espécie humana, que agora é mais necessária do que nunca. A evolução era como um drama, como uma peça de teatro em que os personagens eram os humanos, como diferentes etapas da história, e o planeta era como um pano de fundo.
E agora interage com ele.
Claro, agora, não se entende a evolução humana, caso as mudanças no planeta não sejam compreendidas. Então, a grande revolução que ainda não assimilamos é que tudo está relacionado e tudo está conectado.