“O Brasil tem uma tradição autoritária, com surtos de liberalidade”. Entrevista especial com Maria Elizabeth Rocha

Segundo a ministra-presidente do Supremo Tribunal Militar, o país necessita de vigilância constante

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Por: Elstor Hanzen e Patricia Fachin | 13 Mai 2025

A herança da ditadura militar no Brasil faz com que a atuação de militares na política não seja bem-vista por inúmeros setores da sociedade, apesar de ter sido reivindicada na história recente do país. “Política e Forças Armadas”, assegura Maria Elizabeth Rocha, “são como azeite e água, não se misturam. Eu costumo dizer que quando a política entra nos quartéis, a hierarquia e a disciplina saem pela janela”.

Para a magistrada, primeira mulher a presidir o Superior Tribunal Militar (STM), fazer campanha eleitoral dentro das Forças Armadas é considerado um ato grave e “conspirar contra o Estado democrático, então, é mais que grave. É inconcebível”. As afirmações aludem à condenação de um major do Exército, condenado pela Justiça Militar da União (JMU), em Fortaleza/CE, a mais de dois anos de prisão por desobediência à proibição de manifestações político-partidárias e à intimação do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se tornou réu no Supremo Tribunal Federal (STF) pelos crimes de golpe de Estado e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito.

De acordo com Maria Elizabeth Rocha, o Brasil tem uma tradição autoritária, mas isso “não significa que essa tradição tenha necessariamente que ser a do golpismo”. Segundo ela, a democracia, em qualquer lugar do mundo, “é um processo inacabado, e ela tem que ser permanentemente aprimorada, cultivada, observada, vigiada, para que não pereça”.

Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a ministra também comenta o significado de sua eleição para a presidência do STM e os desafios da instituição. “A minha eleição representa uma vitória do feminismo e do feminino. E é isso que eu vou buscar na minha gestão como presidente do STM, priorizar segmentos minoritários”, pontua.

Maria Elizabeth Rocha (Foto: Marcos Oliveira | Agência Senado)

Maria Elizabeth Rocha é presidente da corte militar desde 2025 e ministra do STM desde 2007. É graduada em Direito, com especialização em Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), mestre pela Universidade Católica Portuguesa e doutora pela Universidade de Minas Gerais (UFMG).

Confira a entrevista.

IHU – A senhora é a primeira mulher a assumir a presidência do STM em mais de dois séculos. O que a nomeação de uma mulher representa para a instituição?

Maria Elizabeth Rocha – É a ascensão das mulheres. Foi uma vitória de todas as mulheres que ainda têm muitas dificuldades em ocupar espaços de poder. Eu costumo dizer que quebrei o teto de vidro. Mas não é um teto, é uma casa inteira. São paredes, janelas, portas que são colocadas a nós, mulheres, que dificultam nosso ingresso em espaços ocupados prioritariamente pelos homens. Então, nesse sentido, a minha eleição representa uma vitória do feminismo e do feminino. E é isso que eu vou buscar na minha gestão como presidente do STM, priorizar segmentos minoritários.

IHU – Que marca pretende deixar na sua gestão?

Maria Elizabeth Rocha – Eu tenho muitas ideias, muitos projetos. O principal deles é inserir a Justiça Militar da União no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nós nos submetemos às decisões, às resoluções do CNJ, no entanto, não temos assento naquele órgão. Não é justo que estejamos fora deste órgão de controle. Precisamos, então, de aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Ou seja, dependemos do Poder Legislativo. Mas quero também dar visibilidade à justiça militar que, a despeito de ser a mais antiga do Brasil, é desconhecida do grande público. E desejo muito promover e discutir com segmentos da sociedade políticas e práticas de inclusão e equidade.

IHU – Assim como a carreira militar, a jurídica também tem poucas mulheres em postos de poder. Como avalia essa realidade?

Maria Elizabeth Rocha – Eu sou a única mulher da corte em 218 anos. Outras poderiam ter vindo e não vieram, porque não foram indicadas. Então, eu procuro, como sempre digo, ser a voz não apenas das mulheres, mas das minorias que ainda são invisibilizadas e silenciadas dentro de um Estado androcêntrico e patriarcal. Na minha gestão, pretendo adotar políticas que incentivem a ampliação de mulheres nos espaços de poder.

IHU – Qual a importância das mulheres e da diversidade no meio militar e no Judiciário?

Maria Elizabeth Rocha – É preciso que o princípio da isonomia se efetive em todos os setores. A ideia da equidade, prevista na Carta Política, é uma garantia que está apenas formalizada na letra da lei. Não tem se efetivado nem se concretizado na prática, inclusive no Poder Judiciário. Então, é fundamental pelo menos que se preserve os assentos femininos que já existiam — porque a ideia seria aumentá-los. O que nós estamos vendo, lamentavelmente, é que eles estão cada vez mais diminuindo. Não reflete a pluralidade da sociedade brasileira.

IHU – A senhora já disse que é feminista e tem orgulho de ser mulher. Qual o impacto disso no ambiente em que atua e sua implicância?

Maria Elizabeth Rocha – A magistratura ainda é um ambiente patriarcalista, misógino e sexista. Só para ilustrar, eu esperei 18 anos para me tornar a presidente eleita desta Casa. E quando chegou a minha vez de disputar uma eleição, que praticamente é um referendo em todos os tribunais, porque a tradição é a antiguidade, comigo essa regra não prevaleceu. Estou aqui lutando pela nova geração de mulheres, por aquelas que virão depois de nós, porque, afinal, eu tenho certeza de que as minorias continuarão lutando, mas que as lutas sejam outras. Não é possível que as lutas que eu estou lutando hoje sejam as mesmas que as jovens mulheres lutarão no futuro.

IHU – Que contribuições as mulheres trazem e podem trazer para o ambiente jurídico?

Maria Elizabeth Rocha – Um estudo estatístico indica que o Poder Judiciário pátrio é formado majoritariamente por homens, brancos, heterossexuais, de classe média. Esse é o perfil da magistratura brasileira. Esse perfil vai mudar quando mais mulheres ocuparem espaços de poder, mais mulheres tiverem voz e forem ouvidas. A nossa presença, cada vez maior, é que garantirá, no futuro, um ambiente jurídico mais democrático, mais plural e com mais equidade, como determina a nossa Constituição. Essa é a nossa contribuição.

IHU – Considerando a tentativa de golpe no 08-01-2023, o planejamento dos atos golpistas com a participação de militares, o Brasil chegou perto de voltar à ditadura?

Maria Elizabeth Rocha – O Brasil não é um país golpista, mas é um país que não conhece o liberalismo da forma como deveria. O Brasil, lamentavelmente, tem surtos liberalizantes, tem episódios institucionais corretos, legítimos, e outros nem tanto. Temos uma tradição autoritária. Não significa que essa tradição tenha necessariamente que ser a do golpismo. Sobre os atos perpetrados no 8 de janeiro e os desdobramentos que os antecederam, vimos que a democracia correu riscos, sim. Mas as instituições democráticas venceram.

IHU – O Brasil e a América Latina ainda têm uma democracia frágil? Por quê?

Maria Elizabeth Rocha – A democracia, aqui e em qualquer lugar, é um processo inacabado, e ela tem que ser permanentemente aprimorada, cultivada, observada, vigiada, para que não pereça. Como disse, o Brasil tem uma tradição autoritária, com surtos de liberalidade. Por isso, é necessária a vigilância constante.

IHU – Como vê e analisa a atuação de militares na política?

Maria Elizabeth RochaPolítica e Forças Armadas são como azeite e água, não se misturam. Eu costumo dizer que quando a política entra nos quartéis, a hierarquia e a disciplina saem pela janela. Recentemente, um militar da ativa foi julgado no nosso tribunal e condenado à perda de posto e patente por ter feito campanha eleitoral pelas redes sociais. Isso já é grave. Conspirar contra o Estado democrático, então, é mais que grave. É inconcebível.

IHU – As Forças Armadas estão em uma fase de desgaste acelerado desde 2019 e com baixa na popularidade. O que se pode e se deve fazer para reverter este cenário?

Maria Elizabeth Rocha – As Forças Armadas são instituições de Estado que defendem a soberania nacional, que cumprem um papel belo junto às populações ribeirinhas e hipossuficientes, aos refugiados, aos vulneráveis. Elas não podem ser comprometidas e nem a sua credibilidade manchada pelo desvio de alguns. É a mesma coisa que querer acusar o Judiciário pela corrupção de alguns magistrados. Existem desvios em todas as instituições e, dentro de um Estado democrático de direito, os desvios são apurados, julgados e punidos. É assim que funciona. 

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