20 Mai 2023
O cão ou o gato não são filhos nem crianças. Em vez disso, estão na direção dos antepassados, mais do que na dos descendentes.
A reflexão é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em seu blog Come Se Non, 16-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Il nous faudra suivre de plus près
ce passage du mond muet au mond parlant.”
(M. Merleau-Ponty, Le visible et l'invisible, p. 200)
O modo de dar as notícias, quando emergem de um contexto considerado de autoridade e, em todo o caso, posto sob o olhar da atenção pública, leva muitas vezes a uma distorção enorme e descontrolada: uma frase (infeliz, mas descontextualizada) do Papa Francisco sobre uma “bênção recusada” a um cachorrinho suscitou um grande embate entre posições polarizadas: o escândalo pela bênção e o escândalo pelo escândalo.
A reação relatada pelo papa diz respeito ao fato de uma senhora ter lhe pedido, en passant, para “abençoar seu menino”, que era um cachorrinho. E o papa, perdendo a paciência, respondeu: “Senhora, tantas crianças com fome, e a senhora com um cachorrinho...”.
A verdadeira questão é a confusão/oposição entre criança e cachorrinho, entre vida humana e vida animal. Esse é um ponto sobre o qual não é fácil pensar.
De fato, uma longa tradição usou o “gênero” do animal para definir – por contraste – aquilo que é específico do ser humano. Um início ilustre disso pode ser encontrado em Aristóteles, com a famosa definição do ser humano como “zòon lògon échon” (Política, 1253a: “animal que tem a palavra”).
Mas, ao longo dos séculos, tal abordagem encontrou múltiplas reelaborações, que se caracterizaram por uma substancial confirmação da compreensão dessa “diferença” entre ser humano e animal, identificada na “consciência”, no “pensamento” e na “palavra”. Seria a “interioridade” que distinguiria substancialmente o gênero humano do gênero animal.
Até mesmo Hegel, em sua dura crítica à filosofia da religião de Schleiermacher, confirma o modelo clássico da relação homem/animal, dizendo: “Se no ser humano a religião se fundamenta apenas no sentimento (...) então o cão é o melhor cristão”. A ausência no animal de “palavra” e de “pensamento” – ou seja, a falta da faculdade de representação no “logos” mediador e a redução da experiência animal à “vox” que expressa a imediaticidade do prazer-desprazer – cria a “diferença” decisiva em relação à qual o ser humano se define. A partir dessa diferença, nascem, somente no ser humano, a palavra, o pensamento, o tempo, a cultura.
No percurso do pensamento tardo-moderno, esse modelo clássico foi assumido ou invertido, mas nunca realmente contestado, nem mesmo pelo reducionismo positivista e evolucionista. A redução do ser humano a consciência “não mais animal” ou a “animal interessado na – e equipado para a – sobrevivência” procedem, no fundo, na mesma linha e com a mesma lógica. Criam uma absoluta descontinuidade – ou uma total continuidade – entre animal e ser humano, sem compreender a fundo a delicada relação entre animal e ser humano no nível da “relação simbólica com o ambiente”.
No pensamento do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, encontramos, por sua vez, uma tentativa ilustre de repensar tal relação em uma “comunidade natural” entre animal e ser humano que merece ser redescoberta, sem ceder aos novos reducionismos e monismos materialistas, mas também sem nenhuma fuga para ontologias ou metafísicas que pretendem resolver o problema a montante da própria pergunta.
Uma representação original estaria, neste caso, na base dessa “diferença” entre representação e sentimento, sancionando um “primado a priori da representação” que tornaria a própria distinção bastante frágil.
Em um texto de 1948, que reproduz sete transmissões radiofônicas, veiculadas entre outubro e novembro daquele ano para o segundo canal da Rádio Francesa – e que só foi publicado em 2002, tendo sido encontrado somente então na gaveta de sua escrivaninha, nunca tendo sido publicado antes – algumas das intuições que tomariam forma mais completa em 1958 são antecipadas, ainda que em um contexto “divulgativo” e “popular”.
Nesses sete capítulos, que delineiam uma rápida e intensa apresentação da fenomenologia, o capítulo IV é central e se intitula: “Exploração do mundo percebido: a animalidade”. Depois de ter falado de um “despertar do mundo percebido”, o autor acrescenta que esse fenômeno, típico da filosofia e da arte modernas, pode ser mais bem compreendido se levarmos em conta uma condição que ele expressa com uma dupla passagem:
“… aprendemos a ver de novo o mundo ao nosso redor do qual havíamos nos afastado na convicção de que os nossos sentidos não podiam nos ensinar nada de válido e que somente um saber rigorosamente objetivo merecia ser levado em consideração. [...] Em um mundo tão transformado, não estamos sozinhos e não estamos apenas entre seres humanos. Esse mundo se oferece também aos animais, às crianças, aos primitivos, aos loucos, que o habitam à sua maneira e com ele convivem.” (M. Merleau Ponty, Conversazioni, Milão, 2002, p. 43-44)
O tema do animal introduz mal a diferença de “mundos”: ao lado do “mundo adulto”, aparece aos nossos sentidos – restituídos à sua autoridade original – um “mundo animal”, um “mundo infantil”, um “mundo primitivo” e um “mundo louco”. Esses “mundos” convivem e, de algum modo, constituem o substrato e a articulação do mundo “adulto”.
Isso é ainda mais importante pelo fato de que o pensamento clássico não valorizou minimamente nenhum desses “sujeitos”: animais, crianças, primitivos e loucos são considerados como “diminuições do ser humano”, e não como seus componentes.
Por trás dessa redescoberta do animal e de seu “mundo”, evidencia-se uma crítica ao pensamento clássico e à sua “antropologia completa”: o animal não é simplesmente o outro de nós, mas é também, paradoxalmente, o “mesmo”.
O fato de os animais serem “desprovidos de mundo” é uma evidência antiga, que chega até Heidegger. Esta sofre a reação de uma nova atenção à “comunidade natural” entre animal e ser humano. Vida humana e vida animal não podem se contrapor, porque a primeira está incluída na segunda. No animal, descobrimos o nosso “fundo”, ao mesmo tempo límpido e obscuro. A diferença humana em relação a esse “fundo comum” não pode ser perdida, mesmo que deva ser pensada não como uma oposição, mas como um desenvolvimento interno de uma comunhão original.
O cão ou o gato não são filhos nem crianças. Em vez disso, estão na direção dos antepassados, mais do que na dos descendentes. No contexto de um discurso sobre a “desnatalidade”, a substituição filho pelo animal obviamente é problemática. Se a senhora tivesse dito “pode abençoar este nosso antepassado”, talvez ela teria obtido uma resposta diferente.
Por outro lado, as crianças, as de verdade, também não são aquilo do qual todos nós viemos? Os filhos não são para todos nós, talvez, não apenas o sinal do futuro, mas também símbolo insuperável do passado comum? Certamente, não está em questão a bênção do animal, mas sim a confusão entre o filhote de cachorro ou de gato e o filhote humano: o animal que é sem pecado pode sempre se iludir sobre a superioridade da ausência de liberdade. A perfeita aderência entre ser e dever, que o animal encarna inexorável e magicamente, consola e desorienta.
Portanto, não se pode duvidar sobre a diferença a ser preservada, sobretudo se o tema sobre o qual se pretende falar é a desnatalidade. Contanto que saibamos assegurar que a passagem entre o “mundo mudo” e o “mundo falante” não seja pensada nem como uma identidade simplista, nem como um salto sem continuidade, mas também não como uma preciosa diferença sem comunidade natural.
Para quem quiser aprofundar a questão, remeto a dois textos: ao livro que é fruto de um congresso organizado no Pontifício Ateneu Santo Anselmo (organizado por Ph. Nouzille), “L’animale” (Aracne, 2017) e o grande texto de J. Derrida, “O animal que logo sou” (Unesp, 2002).
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Sobre o animal: filho ou antepassado? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU