18 Janeiro 2023
"Um motivo arcaico ressurge, assim, no seio das sociedades contemporâneas: a morte como ocasião de recapitulação. Somente graças à reevocação dos momentos salientes da vida daqueles que não estão mais aqui, e que todos conhecemos, há uma maneira de recolocar a história pessoal em um tempo demasiado veloz e fragmentado", escreve Mauro Magatti, sociólogo e economista italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 17-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A participação popular nos grandes funerais ressalta o que corre o risco de se "perder" na sociedade hipertecnológica. As exéquias delineiam com precisão as características do "herói" do nosso tempo. Os casos da Rainha Elizabeth, do Papa Bento XVI e de Pelé.
Os grandes funerais públicos são momentos cada vez mais solenes de recomposição social. Temos a confirmação, mais uma vez, nos últimos tempos. Elizabeth, Rainha do Reino Unido por 70 anos, na Abadia de Westminster, no coração de Londres. Bento XVI, papa emérito na basílica de São Pedro em Roma. Edson Arantes do Nascimento, conhecido como Pelé, considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos, na Vila Belmiro, estádio do Santos, no Rio de Janeiro. Três vidas, três capitais, três lugares altamente simbólicos, três esferas de nossa vida social. Com dezenas de milhares de pessoas que decidem dar o último adeus ao corpo, mesmo suportando filas e desconfortos, enquanto o eco midiático chega a reunir centenas de milhões de pessoas em várias partes do mundo.
No cenário público ressurge o que removemos na vida privada: provavelmente é precisamente porque nas ruas das nossas cidades os funerais já não se veem mais, que a relevância desses grandes eventos públicos se torna ainda mais espetacular. E talvez porque cada vez mais frequentemente o corpo do falecido é escondido do olhar dos filhos e amigos que o rito da homenagem ao cadáver de outro ser humano cuja vida pública expressou um significado compartilhado torna-se um poderoso momento de identificação coletiva.
Um motivo arcaico ressurge, assim, no seio das sociedades contemporâneas: a morte como ocasião de recapitulação. Somente graças à reevocação dos momentos salientes da vida daqueles que não estão mais aqui, e que todos conhecemos, há uma maneira de recolocar a história pessoal em um tempo demasiado veloz e fragmentado. Participar de um funeral público permite que você se sinta parte de uma grande narrativa coletiva que ajuda a dar sentido às labutas diárias de cada um. Mas também para ler os eventos históricos, observando-os de uma perspectiva diferente daquela dos noticiários. Como sempre aconteceu, também hoje é a morte que introduz na vida coletiva aquela análise que permite que os seres vivos deem sentido ao que fazem.
Tudo isso é possibilitado pelo efeito-familiaridade que o sistema midiático produz em relação às grandes figuras públicas. Nenhuma das pessoas que entram numa fila por horas para se despedir do corpo ali presente, jamais conheceu a Rainha Elizabeth, o Papa Bento XVI ou Pelé. No entanto, todo mundo tem a sensação de tê-los conhecido pessoalmente. Como se fossem pessoas da família, que nos acompanharam durante grande parte de nossas vidas. Por causa disso, suas mortes são sentidas como uma perda dolorosa por parte de milhões de indivíduos. Um sentido de familiaridade tão profundo que leva muitos a querer estar presentes no momento da última despedida. Estar lá fisicamente, e estar lá juntos, lado a lado com muitos outros. E assim sentir-se dentro de uma comunidade imaginária, mas percebida como verdadeira e próxima. Unida pela profunda admiração, e até pela dívida, para com as personagens que são homenageadas.
Por fim, esses funerais delineiam com precisão as características do herói do nosso tempo. Onde o traço central é o da autenticidade, cânone indiscutido da consciência contemporânea. A rainha Elizabeth amada pelo povo porque conseguiu reger não só a coroa durante as tempestades políticas de meio século de história, mas sobretudo a sua própria vida, recompondo as bem mais mortíferas brigas familiares, começando pelo dramático caso de Lady Diana. O Papa Bento, certamente apreciado por seu refinamento de grande teólogo, mas amado por sua gentileza que transparecia até na tela e, acima de tudo, por ter aceitado lidar publicamente com sua própria fraqueza, chegando, com a renúncia, a ponto de quebrar um esquema milenar e assim fazer com que se percebesse todo o drama de um papel tão delicado como o do papa de uma igreja universal. E finalmente Pelé, o menino prodígio que, nascido em uma família muito pobre, chega ao ápice da celebridade mundial conseguindo manter aquele equilíbrio de vida que, ao contrário, não alcançou seu grande amigo-rival Maradona. Uma fábula magnífica que toca o coração de todos, porque dá conta de um dos grandes sonhos do nosso tempo: conseguir escalar toda a sociedade fazendo uso apenas do próprio talento.
Três histórias diferentes, cada uma com suas especificidades. Cada uma única e irrepetível, rica de sucessos, mas também atormentada pelas dificuldades. E não desprovida de fracassos. E que amamos justamente porque recolocam no centro o ser humano, com as suas fragilidades e as suas capacidades. Exatamente o que corre o risco de não ser mais reconhecido na sociedade hipertecnológica. Ao honrar o corpo das pessoas de quem nos despedimos, a grande participação popular quer assim reafirmar o frágil valor, mas inestimável, da vida de todo homem. Porque, acima de tudo, o que importa é a história particular – grande ou pequena — de cada um de nós.
Um sentimento reconfortante que serve para acalmar o medo latente de que a morte de qualquer forma ainda nos entrega. Mesmo que não seja suficiente para afastar outro temor que persiste depois aquela ponta de inveja em relação a essas figuras saudadas pelo mundo inteiro: haverá alguém que, quando chegar o momento, se dará conta da nossa morte ou estamos destinados ao esquecimento e à insignificância?
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Fábulas e mitos que reafirmam o valor de cada vida humana. Os funerais da Rainha Elizabeth, Pelé e Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU