12 Mai 2023
"A rememoração não consiste na simples reprodução do que já aconteceu, mas na reconstrução inédita da própria história. A lástima, portanto, não é a única maneira de entrar em relação com o nosso passado. Devemos contrapor a ela a gratidão".
A opinião é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, publicada por La Stampa, 11-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pode-se acolher o que foi como uma nova possibilidade e não como uma maldição. Precisamos ser gratos às gerações anteriores e ao que vivemos. O passado é uma corrente que impede nossa liberdade? É uma maldição que impõe a repetição inexorável do mesmo trauma? Não é por acaso que Nietzsche o definiu como "o maior peso". O que vivemos se deposita às nossas costas encurtando e condicionando impiedosamente o tempo das nossas vidas. Somos todos filhos do “poder de ontem”, como diria Jung.
Ninguém pode agir sobre o que já foi, mas apenas sofrê-lo.
Mas a situação é realmente assim? Sabemos bem que existe um passado que não podemos esquecer. É um ensinamento da clínica psicanalítica: a nossa memória – como a nossa própria vida – fica pendurada aos traumas que a marcaram indelevelmente. Trata-se de um passado que não pode ser ordenado num arquivo, catalogado num álbum ou num cemitério de memórias, mas que volta de forma espectral impondo sua repetição à nossa vida. Nesse sentido, não somos nós que decidimos recordar o passado, mas é o passado que se impõe à nossa decisão de lembrar. É uma um fato garantido: nunca conseguimos lembrar como gostaríamos o que foi e não conseguimos deixar de lembrar o que gostaríamos de esquecer do passado. Isso significa que há algo sempre de vivo no nosso passado. A memória não pode ser nem o arquivo, nem o álbum, nem o cemitério das memórias. Em vez disso, como Freud bem mostrou, somos perseguidos, atormentados, assomados por nosso passado mais traumático: aquele que já foi insiste em se repetir, não cessa de nos perseguir e condicionar a nossa vida.
Acontece de forma marcante no filme "O Franco-atirador de Cimino", onde um dos protagonistas não pode deixar de repetir ao longo de sua vida o trauma da roleta russa a que foi submetido durante a Guerra do Vietnã, quando foi feito prisioneiro pelos vietcongues. Nesse caso, como nos transtornos que o DSM classifica como pós-traumáticos, o passado retorna de forma espectral aprisionando a vida em um "eterno retorno ao mesmo". A depressão também resulta de um vínculo tóxico com o passado. Para o deprimido, tudo já aconteceu, tudo já acabou, tudo já foi e o futuro só pode ser cinzas.
Por isso sua inclinação é sempre a de lamentar o que foi e não é mais: o vigor do próprio corpo, os entusiasmos dos primeiros amores, uma carreira profissional brilhante, uma infância feliz... A lástima é, na verdade, uma forma de entrar em relação com o passado que, ao mesmo tempo que o idealiza, o torna por isso insuperável. Se tudo o que brilha se perdeu, se afundou na escuridão de um passado irrecuperável, se minha vida se perde junto com o que se perdeu, então não temos mais futuro porque até o futuro é sugado para trás, arrastado para o passado.
Mas a lástima não é a única possibilidade que temos de entrar em relação com o passado. O grande ensinamento da psicanálise, que neste ponto herda a reflexão de Nietzsche sobre o tempo histórico, consiste em mostrar que é apenas a nossa leitura atual do passado que define seu sentido. Assim temos sempre a possibilidade de dar uma nova significação ao que já aconteceu. A concepção linear e causal do tempo se modifica profundamente: não é mais o "antes" que determina inexoravelmente o "depois", mas exatamente o contrário. É o "depois", o que ainda está por vir, que determina o que já foi.
Parece um pensamento contraintuitivo, mas na realidade é um pensamento que até os historiadores conhecem bem. É só o desenvolvimento posterior dos fatos que conseguiu, por exemplo, traduzir a tomada da Bastilha num acontecimento que nós podemos reconhecer como histórico e não como uma revolta qualquer. O mesmo deve ser dito sobre o trauma incalculável do Holocausto. Hoje somos nós que guardamos a realidade daquele acontecimento. E isso só se consegue se no tempo presente aquele trauma continuar a existir e a ensinar. Portanto, não se trata de relembrar o que aconteceu, mas de reescrever a história fazendo com que o sentido do que aconteceu exista hoje.
É o mesmo que acontece numa experiência de terapia: o paciente não se limita a rememorar seu próprio passado, mas reconstrói seu sentido de forma absolutamente inédita. Isso é o que Nietzsche entendia quando afirmava que é necessário "dar-se um passado a posteriori". A rememoração não consiste na simples reprodução do que já aconteceu, mas na reconstrução inédita da própria história. A lástima, portanto, não é a única maneira de entrar em relação com o nosso passado. Devemos contrapor a ela a gratidão.
Ao contrário da lástima, ela acolhe o que foi como uma nova possibilidade e não como uma maldição. Nesse sentido, na gratidão, o passado nunca está totalmente morto. Não aparece como um peso no pescoço que arrasta a vida para baixo, mas como uma nova seiva: um lugar de ensinamento, de uma verdade, de um acontecimento que ainda está vivo. Ser gratos às gerações que nos precederam e a tudo o que vivemos (o bom e o mal, o bom e o mau encontro, a alegria e a dor), significa não se deixar engolir pelo passado, não ceder à tentação da nostalgia como lástima, mas resgatá-lo, redimi-lo precisamente por continuar a se reescrever através de nossa vida atual e futura. É apenas na gratidão que a memória permanece realmente viva.
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Um grande passado às nossas costas: apenas a gratidão supera a lástima. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU