13 Abril 2023
Neurocientista, agora no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, afirma: sistema opressor produz doenças mentais. Ao ampliar plasticidade do cérebro, certas drogas abrem avenidas terapêuticas. Há que quebrar preconceitos.
A entrevista é de Eliane Bardanachvili, publicada por Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz - CEE, 10-04-2023.
A base da saúde mental é sono, alimentação e exercício físico de qualidade, indica o neurocientista Sidarta Ribeiro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – onde foi um dos fundadores do Instituto do Cérebro – e o mais novo integrante da equipe de pesquisadores do CEE-Fiocruz, no projeto integrado de Saúde Mental do Centro, coordenado pelo pesquisador Paulo Amarante.
A receita apontada por Sidarta reúne três componentes de uma rotina que ainda é para poucos no país. “Quem consegue, hoje, no Brasil, dormir bem e sonhar, se alimentar bem?”, indaga, nesta entrevista ao blog do CEE. “Vivemos em uma sociedade que produz doença mental; o capitalismo produz doença mental. E existe uma indústria farmacêutica que se alimenta da saúde mental”, analisa.
Sidarta pesquisa e defende os saberes ancestrais, indígenas, africanos, e, nesse caminho, no cuidado aos transtornos psíquicos, o uso de substâncias psicodélicas, como LSD, mescalina, psilocibina, DMT e MDMA, além da maconha – que, para ele, está para a medicina do século XXI como os antibióticos estiveram para a medicina do século XX. São substâncias que atuam na plasticidade dos neurônios, conforme observa, promovendo novas conexões, novas sinapses, no nível celular, tornando-se poderosas para tratar problemas como depressão e doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson.
“Hoje, entendendo melhor os mecanismos celulares dessas drogas, percebemos que, por algumas horas de uso, o cérebro fica extremamente plástico, ou seja, maleável”, explica. “Estamos falando de uma medicina muito poderosa. A gente precisa olhar para os psicodélicos com muito respeito, com muita atenção, como estão fazendo Estados Unidos, Israel, Alemanha”, alerta. Para Sidarta, produzir e pesquisar as substâncias psicodélicas, não há qualquer dificuldade a não ser a legislação.
Outro foco de estudo do neurocientista – que, em 2019, lançou o livro O oráculo da noite – são os sonhos, “nosso ambiente de simulação de possibilidades”, como define. “Os sonhos mandam recados e podem até alertar sobre uma doença”, afirma o neurocientista, observando que nossa sociedade capitalista pouco abre espaço para que os sonhos sejam valorizados e relatados, e, nesse sentido, defendendo uma medicina que privilegie o contato humano.
A necessidade de buscarmos viver melhor, nos mais diversos aspectos, por sinal, está na base das reflexões de Sidarta, que propõe “uma discussão mais profunda” sobre modelo de sociedade. “Se todo mundo do planeta puder morar direito, dormir direito, sonhar e compartilhar seus sonhos, fazer exercício físico, comer comida sem veneno, tendo os robôs fazendo trabalho para nós, isso aqui vai ficar muito bom!”.
Sidarta Ribeiro. (Foto: reprodução)
Como podemos nos preparar para enfrentar uma realidade em que, de acordo com a OMS, a saúde mental é a principal causa de incapacidade no mundo? Relatório divulgado em junho de 2022 aponta que 280 milhões de pessoas sofriam com depressão, uma das principais causas dos 700 mil suicídios registrados anualmente – cenário que piorou com a pandemia de Covid-19.
Esses são dados muito assustadores, mas muito esclarecedores. Saúde mental, para a maior parte da população, tem mais a ver com ambiente do que com genética; tem a ver com o biológico, mas existe um componente social inegável, que diz respeito a questões como desigualdade, racismo, homofobia… Vivemos em uma sociedade que produz doença mental; o capitalismo produz doença mental. E existe uma indústria farmacêutica que se alimenta da saúde mental.
De um lado, precisamos, sim, buscar na Medicina outros tratamentos e práticas de bem viver, mas temos também que entender a questão estrutural, relacionada a como se organiza o Estado – no caso do Brasil, um Estado que passou vários anos sem investir no povo brasileiro.
A pessoa não tem emprego ou tem um emprego muito ruim, acorda cedo para trabalhar, fica o dia inteiro fora, volta tarde para casa… Isso produz adoecimento e é preciso pensar nisso agora, porque o mundo está passando por grandes transformações, com a chegada das inteligências artificiais, dos robôs, que podem vir para facilitar muito a concentração de capital.
E o que vamos fazer nessa transição? Se quisermos investir em saúde mental, não tenho dúvida de que precisamos, em primeiro lugar, instituir uma renda básica universal bacana, que dê conta de garantir o bem-estar das pessoas e de manter a economia funcionando.
Ao falarmos em saúde mental, então, estamos automaticamente falando em qualidade de vida, em redução de desigualdades? É disso que se trata?
Esse é um componente fundamental. A base da saúde mental é sono, alimentação de qualidade e exercício físico de qualidade. Quando a pessoa faz essas coisas bem-feitas e mantém relações saudáveis, tende a ter boa saúde mental. Claro que há questões genéticas, eventos dramáticos na vida, em que esse curso vai ser alterado, mas a base da saúde são essas atividades cotidianas, corriqueiras que, ainda assim, são um privilégio de poucos. Quem consegue, hoje, no Brasil dormir bem e sonhar, se alimentar bem? Mesmo as pessoas materialmente ricas se alimentam mal, ingerem pesticidas, antibióticos, metais pesados.
Como trazer isso para as macropolíticas sociais, de modo que as iniciativas de comer bem, fazer exercícios físicos etc. não dependam apenas do indivíduo? Como o Estado pode prover esse tipo de condição?
Felizmente, temos hoje um governo que investe no povo brasileiro. Acabou de acontecer um movimento muito importante de retomada e melhoria do Bolsa Família, da volta dos condicionantes do programa – criança na escola, vacinação. Isso é fundamental para o país se desenvolver. O Estado tem que investir nas pessoas, na formação, na ideia de que a melhor condição é aquela em que a doença é evitada. Isso não significa negar que existem fármacos necessários que podem ajudar no tratamento de determinados sintomas. Apenas não podemos achar que as substâncias vão resolver tudo. Existe um componente conservador que consiste em medicar uma pessoa para que ela continue trabalhando.
Como você vê nosso olhar sobre a saúde mental e sobre os transtornos mentais de diferentes naturezas, no que diz respeito a preconceito e estigma em relação a problemas aos quais todos nós podemos estar sujeitos? O que é preciso fazer, individualmente e como poder público, para lidarmos de forma adequada com o universo da saúde mental?
Uma pessoa pode ter predisposição genética a surtos psicóticos, depois diagnosticados como esquizofrenia. Na visão convencional da Medicina, temos hoje, 1% a 2% de pessoas com esse tipo de quadro. Posso usar essa etiqueta para falar também de outras doenças ou transtornos sobre os quais há estigma. Temos que olhar para pessoas que têm epilepsia, esquizofrenia, algum autismo como pessoas com as quais temos que ter capacidade de conviver, de compartilhar saúde, educação, cidadania. Para além dessas diferenças biológicas, a vida para a maior parte das pessoas, em especial nas cidades, nas megalópoles, é muito difícil, de muito sofrimento.
Essa dificuldade extrema do sobreviver, em que as pessoas entregam sua força de trabalho para que poucas pessoas acumulem muito, evidentemente, produz doença mental de outro tipo, o entristecimento, a depressão, a ansiedade, o déficit de atenção, que podem levar a pessoa até mesmo ao suicídio. O sistema está construído para que os laços pessoais sejam enfraquecidos, inclusive os familiares. Precisamos cuidar melhor uns dos outros e de nós mesmos. O Brasil tem coisas maravilhosas, únicas, para oferecer ao mundo. Mas, antes temos que oferecer a nós mesmos, construir um país de bem-estar, de reparação em relação à estrutura patriarcal escravagista ainda vigente.
Você estuda e defende os saberes ancestrais, indígenas, africanos, no cuidado aos transtornos mentais e, nesse caminho, o uso de substâncias psicodélicas, como LSD, mescalina, psilocibina, DMT, MDMA, e afirma que a maconha está para a medicina do século XXI como os antibióticos estiveram para a medicina do século XX. De que forma essas substâncias agem e como inseri-las em uma rotina de cuidado no SUS?
A cannabis – a maconha –, com suas centenas de substâncias de interesse, como canabinoides, flavonoides, terpenos, é uma farmacopeia inteira, que apenas está começando a ser mapeada pela ciência, nos últimos quarenta, cinquenta anos. Por outro lado, temos os psicodélicos clássicos, que são semelhantes à serotonina que produzimos no cérebro – LSD [dietilamida do ácido lisérgico], psilocibina [extraída de cogumelos], DMT [dimetiltriptamina, substância psicoativa presente na ayahuasca], mescalina [extraída de alguns tipos de cactos], o MDMA [droga sintética conhecida como Ecstasy], que é um pouco diferente, pois produz menos alteração de percepção e fluxo de pensamento, mas também faz parte dessa família – são substâncias de uso ancestral, pelos povos originários ou mesmo sintetizadas em laboratório, mas semelhantes a essas que foram extraídas de plantas, animais ou fungos.
Essas substâncias, que foram demonizadas ao longo do século XX, vêm entrando novamente na Biomedicina pela porta da frente. Um artigo incrível publicado há pouco na revista Science aborda o modo de ação dos psicodélicos, mostrando que podem atuar não só nos receptores situados na membrana das células, como naqueles que estão dentro das células. É uma revolução científica acontecendo neste momento, sobretudo em países do primeiro mundo.
E no Brasil?
As pesquisas com canabinoides são muito difíceis de serem feitas no Brasil. São realizadas em ótimo nível, mas há muita dificuldade. É praticamente impossível, no país, comprar agonistas – as substâncias que ativam os receptores de canabinoides no organismo. Nos Estados Unidos e Europa, os pesquisadores pedem hoje e, no dia seguinte, isso já está no laboratório. Com psicodélicos também, mas o país tem conquistado muito espaço lá fora.
A Folha de S. Paulo publicou matéria mostrando que o Brasil ocupa hoje o terceiro lugar no mundo entre os países que mais produzem estudos de impacto sobre psicodélicos. Os estudos tomaram como foco a ayahuasca no tratamento da depressão. Isso tem a ver com fato de que a ayahuasca é legal no Brasil desde os anos 1980. E seu uso vem de povos ribeirinhos que aprenderam, por sua vez, com os povos indígenas. Estamos falando de uma medicina da floresta, muito poderosa e de um poderosíssimo antidepressivo, muito útil e importante para ajudar pessoas a saírem de quadros de ruminação, de sofrimento psíquico. Hoje existe muito interesse das farmacêuticas sobre a ayahuasca, inclusive com tentativa de patentear e transformar isso em remédio que fica nas prateleiras para a pessoa pedir a pílula e usar, o que é um equívoco.
Por que não é suficiente fabricar uma pílula e botar nas prateleiras das farmácias?
O efeito das substâncias psicodélicas tem a ver tanto com a dose ministrada quanto com as condições em que a pessoa que está tomando aquela substância, o contexto social e imediato em que a experiência se dá. São substâncias que alteram muito a percepção de tempo, espaço, fluxo de pensamento por certo período, de minutos a horas – dependendo da substância, da dose e da via de administração – e é muito importante cuidar desse contexto. Aquilo que os pajés, e, agora, as majés – as mulheres que realizam essa função, em nova tradição que vem se fortalecendo – e os xamãs fazem muito bem, que é controlar aspectos como a música tocada no momento da experiência, o tipo de luz, o uso de óleos essenciais, a necessidade de colete de proteção, tudo que tem séculos e, em algumas culturas, milênios de acúmulo cultural, gerando impactos que a ciência biomédica não mapeia. O contexto de uso dessas substâncias influencia o desfecho que se vai alcançar.
As pessoas têm a sensação de que estão amparadas pela ciência no uso crônico de antidepressivos e não estão. E não há experimentos mostrando o que acontece depois de um uso prolongado; os estudos vão até oito semanas de uso. Existe toda uma indústria por trás disso, para levar a pessoa a tomar aquela pílula todos os dias. Sabe-se que reduz a variância, evitando vales de depressão, mas ao mesmo tempo não promove picos de alegria. Enfim, é possível fazer uma crítica extensa a esse respeito, vide os estudos do professor Paulo Amarante [pesquisador da Ensp/Fiocruz, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e coordenador do projeto de pesquisa em Saúde Mental do CEE-Fiocruz]. Uma rede de pesquisadores no planeta vem nos mostrando que há algo muito errado aí.
Como são administrados os psicodélicos, no que diz respeito à periodicidade, e quais os efeitos esperados?
Vamos pensar nos efeitos antidepressivos da ayahuasca, por exemplo, que duram quinze dias, medidos em laboratório. Uma pessoa que faz uso da ayahuasca – sempre num ritual – vai tomar, portanto, a substância duas vezes por mês, bem diferente de tomar uma medicação diariamente. A psilocibina, que vem dos cogumelos, o BNT puro, inalado, e o LSD agem em quantidades ínfimas; estamos falando de substâncias que produzem efeitos intensos, em doses de alguns miligramas para uma pessoa adulta, ou microgramas, no caso do LSD. Doses muito baixas e com utilização bastante esparsa.
Existem pessoas que advogam o uso de microdoses todos os dias, mas, nesse caso, não há clareza ainda no campo biomédico quanto aos efeitos serem de fato das substâncias ou um efeito placebo. Já no caso da dose, os efeitos dessas substâncias são mesmo poderosos. Promovem novas conexões, novas sinapses, no nível celular, uma propriedade super útil para tratar depressão e doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson. Existe grande esperança nessa direção. O THC [tetrahidrocanabinol], por exemplo, um dos principais constituintes da cannabis, promove neurogênese e sinaptogênese, novas células e novas conexões. Por isso tenho sido tão enfático em dizer que a gente precisa olhar para os psicodélicos com muito respeito, com muita atenção, como estão fazendo Estados Unidos, Israel, Alemanha.
Como está a experiência nesses países? É possível observar como a entrada dessas substâncias nos sistemas de saúde pode se dar na prática? Como se daria seu uso rotineiro e controlado para uso terapêutico?
O uso da substância psicodélica no contexto terapêutico requer um guia, orientação, alguém tomando conta, ao lado. Nos Estados Unidos, onde estão fazendo a passagem da proibição para a legalização, os psicodélicos são administrados sob a orientação de pessoas treinadas, capacitadas para isso, chamadas de sitters, pessoas que sentam ao lado. Pode ser um psicólogo, uma psicóloga, um psiquiatra, algum outro de profissional da saúde ou pessoa interessada em saúde mental, mas precisa passar por formação específica. Então, está havendo um movimento de transformação. Há dez anos, não havia medicamento à base de cannabis nas farmácias. Há seis anos, já havia, mas não havia médicos prescritores. A escola médica não sabia nem mesmo sobre o nosso sistema endocanabinoide – o sistema que produz canabinoides no nosso próprio corpo, uma descoberta que começou a ser feita no final dos anos 1980, mas não chegou à formação básica. Hoje, a demanda por médicos/médicas prescritores vem sendo satisfeita, porque ficou mais claro que a cannabis é uma medicina muito segura. O Brasil está atrasado, mas caminhando nessa direção. Hoje, estima-se que haja mais de 100 mil pessoas no país se tratando com óleo de cannabis produzido por associações de pacientes, ou, com habeas corpus, plantando em casa.
A cannabis vai entrar no SUS?
Vamos discutir acesso. Que a maconha está legalizada no Brasil, está, porque há seis anos temos remédio a base de maconha na farmácia em spray para comprar, mas… custa R$ 2,4 mil! Então, a maconha está legalizada no Brasil… para os ricos. A classe média usa, hoje, o óleo de cannabis que compra de associações.
No Rio tem a Apepi (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal); em São Paulo, tem a Cultive (Associação de Cannabis e Saúde); na Paraíba, a Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), que é a maior delas, entre outras. Cada estado tem a sua ou várias associações, e isso está crescendo, as associações estão produzindo o óleo.
O que vemos, então, é um amplo movimento social, feito por pacientes, mães de pacientes, pais de pacientes, tios, tias, avós, avôs, para que exista esse tratamento. E por que isso não chegou ao SUS? Porque ainda existe extrema relutância e, até o governo passado, uma suposta ojeriza a esse tipo de medicina – digo suposta, porque o governo passado atuou para que houvesse um monopólio no Brasil, dando a uma única empresa o direito de produzir.
Isso não vingou, porque é impossível vingar, num país como o Brasil, tão grande, onde as pessoas precisam tanto. Uma empresa só? Temos que ter um ecossistema diverso, em que muitas empresas possam atuar, muitas associações possam atuar, em que o SUS tenha isso na farmácia viva e possa fornecer óleo feito no Brasil a preço baixíssimo, porque é, basicamente, um extrato de planta! E, na minha opinião, as pessoas devem poder plantar em casa. É uma planta!
As pessoas têm que ter direito de plantar e fazer seu chá, da flor, da folha. É uma utilização milenar, trata-se de uma planta cultivada há 9 mil anos! Maconha não é plutônio, não é veneno de jararaca. A maconha está para as plantas como o cachorro está para os animais. É uma invenção humana para satisfazer necessidades humanas. E há muitos tipos diferentes de maconha, uma que pode levar à euforia, outra que vai levar ao sono, outra que vai dar disposição para trabalhar. Tem tantos tipos de maconha quanto tipos de cachorro.
Pessoas com propensão à psicose não devem fazer uso de cannabis, mas de qual cannabis? Aquela com THC. Se a predominância for de canabidiol (CBD), os efeitos são opostos – um óleo de cannabis rico em CBD tem efeitos antipsicóticos, como mostram estudos de mais de 20 anos de grupos de pesquisa da USP de Ribeirão Preto, publicados e reconhecidos internacionalmente.
A gente tem que se tocar de que proibiu uma planta sagrada, uma planta que ajudou a Humanidade por milênios. Toda substância tem algum tipo de risco. Tem gente que, se comer camarão, morre. E não se proíbe camarão. Então, tem que parar o pânico moral.
O MDMA, por exemplo, está sendo pesquisado, em especial, nos Estados Unidos, para tratamento do transtorno de estresse pós-traumático. A pesquisa já passou pela fase três e está indo para aprovação pelo FDA como um fármaco utilizado para lidar com aquela memória extremamente traumática, que prejudica a vida da pessoa por dias, semanas, meses, anos, décadas. O trauma de uma chacina policial do Rio de Janeiro, por exemplo, é uma memória que produz sofrimento, produz doença. O MDMA é uma revolução para lidar com isso. É incrível o que vimos nos últimos dez anos, em termos de chancelamento científico do uso do MDMA para lidar com situações para as quais a psiquiatria convencional não tem boa resposta. Agora, é panaceia? Não! Também tem riscos, toda substância tem. Não existe substância de Deus nem do diabo. Tudo merece avaliação isonômica, científica, para que a gente possa estimar danos, benefícios potenciais, doses, contextos de uso, grupos para os quais há e não há indicação.
Sejam os psicodélicos, sejam os antidepressivos ou outros medicamentos psiquiátricos que encontramos nas farmácias, todos nos mostram que, muitas vezes, é necessária uma intervenção com algum tipo de substância no cuidado à saúde mental… O acolhimento por meio de psicoterapia apenas, sem intervenção medicamentosa, nem sempre é suficiente?
Esse é um ótimo caminho na nossa conversa. As substâncias psicodélicas têm que ser tomadas num contexto de terapia; a pessoa tem que estar vindo de terapia e indo para a terapia. Os protocolos publicados mais bem-sucedidos são aqueles em que a pessoa faz várias sessões de psicoterapia, em seguida, faz uma, duas ou três sessões assistidas por psicodélico e depois continua com psicoterapia, para integrar toda essa experiência. Hoje, entendendo melhor os mecanismos celulares, moleculares dessas drogas, percebemos que, por algumas horas de uso de psicodélicos, o cérebro fica extremamente plástico, ou seja, maleável, produzindo novas conexões. A pessoa tem, então, algumas horas para que tente dar um grande salto à frente. Por isso, é importante que aquele que está acompanhando o processo saiba muito bem o que está fazendo. Em poucas horas, você pode trilhar um grande caminho psicológico, chegar a conclusões muito diferentes das anteriores, porque está com seus caminhos neurais, digamos assim, florescendo. Isso tem tudo a ver com o tratamento da depressão. A solução proposta nos últimos quarenta anos é: “você precisa disso aqui [um medicamento], senão você não vive”. A pessoa toma, se sente menos pior e consegue trabalhar. Para o sistema está bom assim: ela consome, ela trabalha, ela compra remédio.
Com os psicodélicos, estamos propondo outro caminho: a pessoa vem de uma psicoterapia, que pode ser feita com um profissional da psiquiatria ou da psicologia, um pajé ou uma majé, o que fizer mais sentido para ela, até o momento em que recebe o sacramento – aquela substância sagrada para tantos povos e para a qual a medicina tem que olhar com muito respeito –, em um contexto ritual, dos povos originários, ou um contexto de religiões sincréticas [que congrega três religiões derivadas de ribeirinhos que tiveram contato com a ayahuasca: Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV)], ou um contexto médico, hospitalar. São substâncias que produzem muita mudança sináptica de forma muito rápida; a pessoa fica muito aberta. Por isso é importante ser bem-feito o processo. Se for mal feito, pode atrapalhar em vez de ajudar. Tem toda uma tecnologia sobre isso que a Biomedicina entende mal e que os povos originários e certas organizações religiosas entendem muito melhor.
Como prover o acesso aos psicodélicos a todos os brasileiros e brasileiras, de forma soberana, com produção nacional, à margem dos interesses da indústria farmacêutica, levando-se em conta o Complexo Econômico-Industrial da Saúde?
Essa é uma pergunta muito boa e oportuna. O Brasil passou tantos anos afundando e, agora que começou a se elevar de novo, temos que ir rápido. Precisamos de uma transformação no panorama – e a Fiocruz tem papel estratégico nisso. Não existe qualquer dificuldade para que essas substâncias sejam produzidas e pesquisadas no Brasil, a não ser a legislação. Temos que olhar para isso, discutir isso com parlamentares, com órgãos e institutos de pesquisa. Há uma revolução científica acontecendo e a gente cheia de freios e amarras. Isso pode chegar ao grande público muito fácil, se o poder público se articular com quem originou esse conhecimento, ou seja, uma articulação com povos indígenas e também com as igrejas sincréticas. Não vejo sentido em reinventar a roda, quando ela já está rodando. A ciência acadêmica se apropria frequentemente de conhecimentos indígenas, com pouco ou nenhum benefício a essas comunidades, com pouco ou nenhum respeito a quem detém, de fato, a propriedade intelectual de várias substâncias – de origem animal, vegetal, fungos –, descobertas por esses povos e que acabam nas prateleiras das farmácias. Se conseguirmos uma integração da ciência acadêmica com a ciência dos povos originários em função de uma regeneração do meio ambiente e de uma vida melhor para as pessoas… Pesquisa, por exemplo, da professora Fernanda Palhano [pesquisadora da UFRN, especializada em imagens cerebrais], conduzida sob orientação do professor Draulio Araújo, no Instituto do Cérebro da UFRN, demonstrou claramente que, no contexto hospitalar, a ayahuasca é um antidepressivo. Um modelo possível para se trazer para o grande público. No alinhamento com os povos originários, eles vão dizer: “é melhor fazer isso no hospital, ou fazer na cachoeira, no meio na mata, na beira da praia”… O Brasil está num processo de tomar consciência de quem ele é: um país mestiço. Então, tem que se aquilombar, tem que se aldear.
Como, na prática, pode se dar essa articulação com os povos originários?
Seria muito interessante, neste início de governo, um alinhamento da equipe ministerial da Saúde, da ministra Nísia [Trindade Lima], com a equipe ministerial dos povos originários, dos povos indígenas, da ministra Sonia Guajajara. E podiam chamar a ministra Marina Silva [do Meio Ambiente e Mudança do Clima] também! Conversar, pensar como podemos transformar isso num jogo de ganha-ganha. O Brasil é signatário do Protocolo de Nagoia [acordo criado durante a COP 10, em 2010, na cidade japonesa de Nagoia, regulamentando o acesso a recursos genéticos], que legisla planetariamente, sobre como deve ser feita a repartição dos benefícios e sobre os fundamentos da Biomedicina que têm que estar alinhados com os fundamentos dessas ciências indígenas, para que seja um jogo de ganha-ganha. E, aí, poderemos ver uma população brasileira que é, em sua maioria, preta ou parda, descendente de africanos ou indígenas, se beneficiar de algo tão maravilhoso – no caso da cannabis, trazido por africanos que a usavam como remédio, e, no caso desses psicodélicos, trazidos da floresta, descobertos e desenvolvidos por essas culturas ameríndias.
Você pesquisa não só o sono no cuidado à saúde, como os sonhos. Em uma sociedade em que se dorme pouco, como priorizar os sonhos de forma estrutural em uma política pública de saúde?
O sono é uma das grandes vítimas do mundo urbano industrial e pós-industrial capitalista. Interessa ao sistema que as pessoas durmam pouco e trabalhem muito. Na verdade, a falta de sono está ligada a todo tipo de problema de saúde. Isso foi medido. Se você persiste com déficit de sono, dormindo poucas horas ou de maneira fragmentada, seja porque trabalha longe demais e por horas demais, seja porque não sai das telas, ou por outras razões, no médio prazo, fica em risco para depressão, para transtornos alimentares, obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares e, no longo prazo, mal de Alzheimer. Então, a gente precisa olhar para o estilo de vida, e o estilo de vida, evidentemente, tem a ver com condições laborais, com o sistema educacional e, evidentemente, com o sistema público de saúde. Dormir com qualidade é uma necessidade, e temos que olhar para isso nas escolas e no ambiente de trabalho. A pessoa que está com muito sono deve ter direito de dormir em qualquer lugar e deve ter um lugar para poder dormir. Pedir que um profissional execute sua tarefa com muito sono ou pedir que uma criança, um jovem, um adolescente continuem tentando aprender alguma coisa com muito sono não faz o menor sentido do ponto de vista do cérebro e do ponto de vista do indivíduo. Deveríamos fazer com o sono o mesmo que fazemos com a necessidade de ir ao banheiro periodicamente: é uma decisão da pessoa, ela sabe quando é necessário e tem que ter direito de fazer isso. Uma pessoa que dormiu muito mal está intoxicada com seus próprios metabólicos. O sono permite que a gente se desintoxique.
E é preciso dormir para sonhar…
O sonho é tão espontâneo quanto dormir ou respirar. Só que a gente pode ficar sem ele, e achar que está tudo bem, por muito mais tempo. Mas, na verdade, estamos perdendo uma dimensão da existência que foi muito importante ao longo da história humana. Estamos numa sociedade que não tem tempo para dormir e que sonha muito mal. Estamos, com isso, rompendo com o passado de maneira perigosa, porque os sonhos são o nosso ambiente de simulação de possibilidades. A pessoa que não está dormindo bem, que está sonhando mal, nem se lembra e não compartilha o que sonha, está voando sem radar. Sonhos permitem que a gente se posicione no ambiente social e no ambiente natural. Ailton Krenak diz muito bem que as pessoas sonham muito quando vão para a floresta. No ambiente da floresta – passei por isso nos últimos meses e verifiquei que é verdade –, os sonhos tendem a chegar com muita força, a lembrança deles fica muito vívida, e isso tem a ver com o fato de que na floresta tudo pode acontecer. Nossos ancestrais, no paleolítico, tinham que conviver com muitas espécies de animais e com muitas entidades imaginárias, e havia toda uma ecologia mental que passava pelo sonho.
Na nossa sociedade capitalista, não existe espaço, nem na vida pública, nem na vida privada, para que os sonhos sejam valorizados. Na nossa cultura, a valorização dos sonhos se perdeu; as pessoas não perguntam o que você sonhou e você não se sente à vontade para contar. É importante a pessoa ter uma relação com os sonhos mais consciente, trazê-los, anotá-los, tentar entender que eles dizem respeito à navegação da vida. Os sonhos mandam recados e podem até te alertar sobre uma doença. Como isso é possível? A gente não sabe direito. Sabemos que os sonhos são a integração de uma série de estímulos subliminares, que não passam isoladamente para a consciência e se integram numa imagem, numa cena que pode revelar o que está acontecendo.
Isso tem a ver com interpretação de sonhos, não? Quem faz e como fazer essa leitura no que diz respeito ao cuidado à saúde, de modo a beneficiar aquele que sonhou?
Existem muitos métodos de interpretação de sonhos, em diferentes culturas. No âmbito da ciência acadêmica universitária, inclusive, existem décadas de pesquisa sobre isso, muitas maneiras de medir aspectos dos sonhos, inclusive automáticos, quantitativos. No meu grupo de pesquisa, a gente tem se dedicado a esse tipo de coisa. Demonstramos que, para diagnosticar um quadro psicótico como proveniente da esquizofrenia, a pergunta sobre um sonho recente na primeira entrevista com a pessoa traz como resposta um relato de sonho com estrutura matemática extremamente informativa sobre diagnóstico de esquizofrenia seis meses depois. E se perguntarmos sobre outras coisas, como o dia anterior da pessoa, uma memória mais antiga, ou pedir para ela contar uma história a partir de uma imagem, nenhum desses tipos de narrativa tem tanta informação sobre o estado psiquiátrico da pessoa quanto o sonho. Por quê? A gente não sabe direito, talvez porque seja um objeto mental muito pessoal, muito íntimo. Precisamos do retorno a uma medicina com mais anamnese, com mais olho no olho, com mais tempo para a consulta. Muito do que o médico fazia antigamente a máquina já faz. O que sobra? O contato humano, que é terapêutico, permite ao médico fazer melhores escolhas e permite ao paciente se comunicar melhor com o médico, ter uma relação mais horizontal. Existe um caminho possível, de uma medicina mais humana, assistida por máquinas, mas profundamente integrada com práticas ancestrais, que vão desde dormir bem e sonhar bem até, eventualmente, em períodos específicos, fazer uso de psicodélicos.
Como analisa nossa sociedade tecnológica em que as redes sociais e o mundo regido por telas acabam por moldar nossos comportamentos?
As telas são a maior maravilha e a maior desgraça do século XXI. São sensacionais, capturam a nossa atenção, mas estamos nos desconectando uns dos outros e das outras e tomando todo o nosso tempo com um tipo muito específico de interação. Estamos, todas, todos, dependentes de telas – e estou me incluindo. Estamos lidando com isso na linha do abuso, do uso problemático. A OMS vem alertando para limites: crianças muito pequenas não devem ter acesso; crianças um pouco maiores, um acesso bastante limitado com muita curadoria. E, à medida que vem a pré-adolescência e adolescência, esse tempo vai crescendo. Temos que descobrir como utilizar esse aparelhinho tão poderoso, com o qual podemos fazer muitas coisas diferentes e que nos conecta com o mundo inteiro, da melhor forma. Geralmente, quando descobrimos uma coisa nova, no começo, fazemos coisa errada com aquilo. Fico pensando na descoberta das substâncias radioativas: as pessoas que estavam pesquisando essas substâncias morreram de câncer causado por sua própria pesquisa.
De acordo com a OMS, os casos de depressão e ansiedade aumentaram 25% só no primeiro ano da pandemia de Covid-19. Como vai ser o mundo pós-pandêmico do ponto de vista da saúde mental?
A pandemia foi muito ruim para a saúde mental da maior parte das pessoas, porque levou a um isolamento social totalmente inédito, e nós somos seres sociais, precisamos uns dos outros, umas das outras. E fomos todos lembrados de que a morte está aí. Isso gerou muita ansiedade, muita angústia existencial. Estamos vivendo agora o rebote disso, as sequelas. E falo tanto das sequelas biológicas da Covid longa e das sequelas econômicas, das pessoas que perderam seus empregos ou perderam seus negócios, quanto das sequelas dessa crise existencial. Como volto para a minha vida, sendo que fui lembrado de que a morte está tão perto? Vamos precisar evoluir para uma outra relação com isso. Mas é importante pensar também por que que a pandemia aconteceu e por que a gente lidou tão mal com ela. Por que o planeta inteiro não teve um plano de vacinação único, homogêneo, rápido? Em grande parte, por questões políticas, porque, naquele momento, estavam no poder Trump, Bolsonaro. Se fosse Lula, Obama, teria sido diferente – mas, ainda assim, os bilionários do planeta não iriam, provavelmente, se coçar para financiar essa vacinação. As pessoas mais ricas do planeta ficaram ainda mais ricas com a pandemia. Formalmente, a pandemia nem acabou e outras pandemias podem vir, dado nosso modelo predatório de contato com a natureza, dada nossa forma de aglomeração urbana, de nos alimentarmos, de produzirmos proteína animal em grande escala, de forma completamente desumana. Nosso modelo de viver está em xeque.
Gosto muito de conversar com Ailton Krenak, porque ele abala nossa confiança cega na ciência. A ciência é fonte de muitas soluções, mas é também causadora de muitos problemas, porque muitas vezes está alinhada com o capital. Assim como tem gente pesquisando vacina para imunizar a população, tem gente produzindo pesticidas. Temos que fazer uma discussão mais profunda sobre modelo de sociedade. O que a gente pode fazer para viver melhor de modo que, daqui a 50 anos, nossos descendentes estejam numa boa? Porque, neste momento, não estamos. Mesmo para as pessoas materialmente mais ricas, tem muita coisa errada: elas estão comendo microplástico e metal pesado, têm depressão e tomam tarja preta. E também cometem suicídio. Se todo mundo do planeta puder morar direito, dormir direito, sonhar e compartilhar seus sonhos, fazer exercício físico, comer comida sem veneno, tendo os robôs fazendo trabalho para nós, isso aqui vai ficar muito bom! O que nos impede de chegar lá? Em grande parte, é a inércia da noção de que o forte tem que engolir o fraco. A inércia da predação, da competição. Como se essa fosse a lei da natureza. É verdade que isso sempre existiu, mas também sempre existiu a cooperação e a colaboração. Temos que fazer esse lado ficar mais forte e o outro, mais fraco.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sidarta: Os psicoativos na saúde do século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU