11 Abril 2023
“A conjuntura contemporânea pode ser lida como um cenário semelhante ao que Polanyi definiu como um ‘contramovimento’: uma etapa em que uma fase de crescimento capitalista é seguida por um declínio que precipita respostas coletivas contra a voracidade da lógica do lucro e revela no processo o instinto de autoproteção da sociedade”, escreve Paolo Gerbaudo, em artigo publicado por Jacobin, 25-03-2023.
“Em termos teóricos, sua principal contribuição foi destacar a ficção por trás da noção liberal de mercado como uma estrutura social autônoma, independente e separada das instituições e dos vínculos sociais”, enfatiza Gerbaudo. A tradução é do Cepat.
Os paralelos entre os anos trinta do século XX e o momento presente estão na ordem do dia. Recuperemos, então, um dos teóricos da economia que melhor interpretou aqueles momentos para lançar luz sobre a situação atual.
Poucos teóricos da economia são tão relevantes para entender a conjuntura atual quanto Karl Polanyi. As ideias deste economista austro-húngaro, que viveu e tentou explicar a crise do capitalismo na primeira metade do século XX e o desencadeamento de movimentos fascistas que ela produziu, têm uma ressonância familiar no presente, marcado por uma economia estancada sujeita a perturbações dos mais diversos tipos, pela perspectiva de uma catástrofe climática e pelo medo do autoritarismo de direita. A conjuntura contemporânea pode ser lida como um cenário semelhante ao que Polanyi definiu como um “contramovimento”: uma etapa em que uma fase de crescimento capitalista é seguida por um declínio que precipita respostas coletivas contra a voracidade da lógica do lucro e revela no processo o instinto de autoproteção da sociedade. Considerando a relevância dessas ideias, alguns economistas definiram a situação atual como um novo “momento Polanyi”.
Notável figura intelectual que combinava conhecimentos de economia, história, sociedade, política e antropologia, Polanyi impulsionou fortemente o pensamento socialista mediante a reconstrução das premissas sociais do capitalismo moderno e da maneira como a sociedade reagiu ao seu desenvolvimento. Em termos teóricos, sua principal contribuição foi destacar a ficção por trás da noção liberal de mercado como uma estrutura social autônoma, independente e separada das instituições e dos vínculos sociais. De fato, como nas cidades medievais, o mercado sempre esteve incrustado nas relações sociais e regulado por instituições. Isso não implica conceber o funcionamento da sociedade como um apêndice do mercado: “em vez de a economia estar incrustada nas relações sociais, são as relações sociais que estão incrustadas no sistema econômico”.
Essa transformação da sociedade em uma sociedade de mercado fundada na ficção de um “mercado autorregulado” foi crucial para a concepção do mundo liberal, caracterizada por sua tentativa de separar os processos econômicos do resto, esvaziando-os, assim, de toda consideração social, cultural ou política. No entanto, essa noção acabou por ruir em momentos de crise, quando ficou claro que o mercado não era uma instituição separada da sociedade, mas uma parte da sociedade cuja sobrevivência dependia de uma variedade de instituições sociais que englobavam muito mais do que atividades econômicas.
Nos anos em que Polanyi começou a trabalhar em sua grande obra, A Grande Transformação, ele estava observando um daqueles momentos de explosão capitalista que tornam a lógica do lucro ainda mais brutal e aberta, justamente quando surgem as oportunidades de obtenção de benefícios. A prosperidade da Belle Époque, que permitiu a construção dos imponentes arranha-céus na ilha de Manhattan e o estilo de vida extravagante dos ricos dos grandes centros metropolitanos da Europa e dos Estados Unidos —bem retratados em muitos romances da época—, logo revelou-se estar alicerçada numa enorme bolha financeira que começou a dar sinais de esgotamento na Quinta-Feira Negra de 24 de outubro de 1929.
A sociedade entrou em pânico quando os bancos quebraram, as empresas fecharam suas portas e milhões de desempregados ficaram à deriva procurando maneiras de ganhar a vida. O crack expôs as duvidosas premissas sobre as quais repousava o liberalismo da globalização do início do século XX, com sua fé no espírito empreendedor, no enorme poder exercido pelos barões industriais e financeiros e no poder limitado do Estado, a quem o liberalismo atribuiu o papel de “vigia noturno”. No entanto, mesmo em meio ao caos, a especulação e a exploração continuaram, tornando-se ainda mais odiosas pela óbvia falência moral do capitalismo depois da crise.
Polanyi argumentou que, diante dessas condições, a sociedade exibia um instinto de autoproteção fundado em um princípio que “visa a conservação do homem e da natureza, bem como da organização produtiva, e que repousa no suporte variável dos elementos mais imediatamente afetados pela ação prejudicial do mercado”. Entre eles estavam “a legislação fabril, a seguridade social, o socialismo municipal, as atividades e práticas sindicais”, utilizados com o objetivo de reinserir o controle social e a solidariedade na economia, e “socialmente necessários para evitar a destruição da substância humana pela ação cega do automatismo de mercado”. Por trás dessas desesperadas tentativas humanas era possível encontrar a manifestação de formas de solidariedade que a lógica do lucro capitalista sempre tendeu a negar, pois não se encaixavam em sua perspectiva, mas que agiam de repente – às vezes com violência – quando a ganância capitalista atacava os mecanismos fundamentais de reprodução e sobrevivência da sociedade.
A intenção de Polanyi era resgatar o termo proteção de sua associação restrita com o protecionismo comercial e a economia política nacionalista de Friedrich List. Para Polanyi, a autoproteção da sociedade era uma tendência que poderia levar a resultados políticos muito diversos. Uma resposta foi o New Deal de Franklin Delano Roosevelt, que se serviu de uma extensa intervenção do Estado para impedir o colapso da economia e implementou enormes planos de desenvolvimento econômico. Desde a Autoridade do Vale do Tennessee até a Administração de Obras Públicas, os generosos investimentos estatais criaram empregos que beneficiaram milhões de pessoas que as gananciosas corporações capitalistas tinham abandonado. E a intervenção do Estado também criou condições férteis para o desenvolvimento dos sindicatos, capazes de negociar bons salários para seus filiados.
Uma resposta muito diferente foi a dos movimentos fascistas na Itália, Alemanha e Japão. O fascismo respondeu à crise criando o que Polanyi definiu como uma “sociedade crustácea” que buscava uma “soberania mais zelosa e absoluta do que qualquer outra conhecida até então”. Aplicou políticas autárquicas muitas vezes ligadas à defesa imperialista de mercados cativos e a uma corrida armamentista que preparou o terreno para a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, a única proteção que os movimentos fascistas tinham a oferecer era a projeção étnica e nacionalista do país como um todo, enquanto os salários e o bem-estar dos trabalhadores eram sacrificados em nome do interesse mais elevado da nação.
Nos últimos anos, muitos analistas (Yanis Varoufakis, por exemplo) traçaram paralelos entre os anos 1930 e o presente e, de forma mais ou menos explícita, entre as análises de Polanyi e a situação econômica contemporânea. Obviamente, também é necessário destacar as diferenças que existem entre os dois momentos, e evitar a tentação de ler de maneira muito simplista o perigo atual como sendo um retorno do fascismo na mesma forma que adotou há quase um século. Uma diferença fundamental entre o tempo presente e aquela época é que o fascismo foi possibilitado pela Primeira Guerra Mundial, o massacre de milhões de pessoas e a criação de exércitos de soldados mutilados e desempregados que eram facilmente recrutados por movimentos fascistas.
Felizmente, por enquanto não existe tal nível de desespero baseado na experiência direta da guerra. Além disso, as instituições capitalistas, apesar de seu continuado fanatismo pelo mercado, aprenderam algo sobre a necessidade de evitar a implosão da economia em meio à crise, embora isso signifique suspender sua crença no fato de que “o mercado é mais sábio”. No entanto, existem muitos pontos de contato entre o contexto histórico analisado por Polanyi e as condições atuais.
Como na época de Polanyi, estamos num mundo de extrema financeirização onde a motivação do lucro invade cada vez mais áreas, mesmo aquelas que, segundo o nosso autor, nunca deveriam ter sido transformadas em mercadoria, como a terra, o trabalho e o dinheiro. Pensemos nas tendências radicais de gentrificação e na inflação de ativos na chamada economia de ativos, que transformaram o capitalismo em um sistema rentista, onde importa mais o que herdamos do que o que ganhamos. Pensemos na maneira como o capitalismo trata o trabalho como se fosse uma mercadoria qualquer que pode ser comprada em frações através de contratos de zero hora ou fingindo que os trabalhadores do Uber ou das plataformas de entrega são autônomos. Ou pensemos na enorme especulação que está ocorrendo nos mercados financeiros, e especialmente em torno das criptomoedas, uma forma de “dinheiro” cuja única função é atuar como um instrumento de especulação.
Quando consideramos todas essas frentes simultaneamente, a imagem que temos é a de um capitalismo pervertido, que sequer faz o que os capitalistas deveriam fazer: fazer investimentos produtivos para colher benefícios. Mas os investimentos estão tão estagnados quanto a produtividade, e essa condição leva o capitalismo a uma lógica canibal. O capitalismo contemporâneo é canibal em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque faz com que algumas empresas devorem outras, em uma economia dominada por fortes tendências oligopolistas. Mas, em segundo lugar, porque o capitalismo contemporâneo pretende muitas vezes devorar as estruturas sociais de apoio que o tornam possível, como um animal que come pouco a pouco a árvore que garante a sua sobrevivência.
Outro elemento de forte semelhança reside no colapso da globalização. O que Polanyi observou foi o fim da globalização do final do século XIX e início do século XX, cuja existência foi questionada pelo desenvolvimento da concorrência imperialista entre potências mundiais que tentavam zelosamente defender seus próprios mercados aumentando tarifas e aplicando outras medidas protecionistas. Atualmente, vemos uma dinâmica semelhante em meio a um processo às vezes definido como “desglobalização”: muitos indicadores de interconectividade global estão estagnados ou em declínio, e a concorrência entre potências pressiona fortemente as cadeias de suprimentos. O mundo, que até recentemente era concebido como um mercado único, começa a se parecer cada vez mais com um espaço fragmentado ao longo das fronteiras entre diferentes blocos de poder, enquanto muitos países mostram uma preocupação crescente com o fornecimento de produtos básicos que possuem um valor estratégico mais gerais, especialmente a energia, os alimentos e a tecnologia.
O último elemento que remete à semelhança de nosso tempo com o cenário analisado por Polanyi é que, mais uma vez, observamos no Ocidente a ascensão e crescente popularidade de movimentos de extrema direita que possuem características semelhantes às dos movimentos fascistas que Polanyi descreveu, e que em muitos casos compartilham seus referenciais ideológicos. O Rassemblement National na França, os Fratelli d'Italia de Giorgia Meloni e a ala trumpista do Partido Republicano têm preocupantes reminiscências com os movimentos fascistas do passado. Da mesma forma como aconteceu na década de 1930, seu crescimento se baseia justamente na capacidade das pessoas de exigir proteção em meio a um capitalismo em colapso, que faz com que os cidadãos temam por sua própria sobrevivência e pela sobrevivência da sociedade. Daí o tom milenarista e apocalíptico que muitas dessas formações exibem e a forma como tematizam o medo do desaparecimento como consequência da baixa fecundidade, da imigração e das ameaças geopolíticas da China e de outros países.
Num mundo de instabilidade vertiginosa e de extremos políticos e sociais, de populistas de direita e empresários narcisistas, de políticos corruptos e instituições esclerosadas, tudo indica que enfrentamos dilemas muito semelhantes aos que Polanyi considerou. Essas semelhanças também destacam a relevância da estratégia política implícita do autor, a necessidade de uma política de proteção que emerja da esquerda como meio de dar aos cidadãos e aos trabalhadores um sentimento de segurança, ao mesmo tempo em que neutraliza o apelo da política de proteção da direita. Enquanto durante o período socialdemocrata o discurso dos partidos de centro-esquerda estava repleto de referências à proteção e à seguridade social, a virada individualista de nossa sociedade e a política que ela trouxe fazem com que esses termos – e as preocupações a eles associados – pareçam estranhos e pouco atraentes para muitos ativistas. No entanto, as condições atuais mostram que essas questões são novamente muito relevantes e que, em grande medida, a batalha contemporânea por consensos gira em torno de diferentes perspectivas de proteção, de diferentes formas de entender como, para quê e do que a sociedade quer se proteger.
Esta política de proteção não deveria ser concebida simplesmente como uma política de medo ou como uma política puramente negativa destinada a proteger contra as ameaças. Como sugere a análise de Polanyi, é também uma oportunidade democrática de assumir o controle sobre o curso da realidade e pensar em como reconstruir a sociedade e responder a necessidades que são universais e envolvem não apenas o bem-estar econômico, mas também a dignidade humana, um ambiente seguro e um sentido de solidariedade, comunidade e identidade. Em última análise, uma das tendências mais brutais do capitalismo é a precariedade existencial, que faz com que as pessoas se sintam permanentemente inseguras e frágeis, o que facilita sua exploração. Lutar pelo sentido de segurança significa também lutar pelas condições mínimas em que os indivíduos e as sociedades sejam capazes de escolher conscientemente os rumos do seu futuro, em vez de serem meras presas do curso arbitrário ditado pela pressão dos acontecimentos e das exigências do mercado.
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A (nova) grande transformação. Artigo de Paolo Gerbaudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU