10 Abril 2023
Padre de Milwaukee, nos Estados Unidos, é punido após defender que a Igreja Católica permite que padres denunciem pessoas que confessam abuso infantil.
A reportagem é de Brian Fraga, publicada por National Catholic Reporter, 03-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde janeiro de 2019, Pe. Jim Connell, da Arquidiocese de Milwaukee, tem instado os legisladores estaduais de todo o país a revogarem o privilégio clérigo-penitente nas leis de denúncia obrigatória, que isenta os padres católicos de notificarem as autoridades sobre qualquer abuso sexual que ouvirem no confessionário.
O arcebispo de Milwaukee, Jerome Listecki, suspendeu as faculdades de Connell para ouvir confissões e conceder a absolvição, citando sua defesa “da remoção da proteção legal do sigilo da confissão, sugerindo que há situações em que é permitido violá-lo”.
Listecki disse em uma declaração de 22 de março que as “falsas alegações” de Connell de que o sigilo da confissão não deveria se aplicar em algumas situações causaram “agitação compreensível e generalizada” entre os católicos.
“Proteger a criança é mais importante do que se preocupar se o governo vai nos dizer como praticar a nossa religião”, disse Connell, padre aposentado e advogado canônico que atuou como vice-chanceler da Arquidiocese de Milwaukee de 1994 a 2012.
Connell ainda tem a permissão para celebrar a missa e se apresentar como padre.
Ele disse que pretende continuar sua defesa e trabalhar com legisladores em Estados como Utah, Delaware e Vermont, onde os projetos de lei fechariam a chamada “lacuna” entre clérigos e penitentes nas leis que exigem que pessoas em certas profissões denunciem o abuso sexual infantil. Trinta e três Estados atualmente têm isenções de clérigos e penitentes.
“Não serei silenciado e não ficarei quieto”, disse Connell, que em 1995 foi designado para investigar o caso do falecido Pe. Lawrence Murphy, um notório predador que usava o confessionário para se aproximar e preparar suas vítimas e para pedir favores sexuais.
Murphy foi nomeado diretor da St. John School for the Deaf em 1963, e em 1973 um abuso foi denunciado pela primeira vez ao Departamento de Polícia de Milwaukee, de acordo com uma lista de abusadores clericais no site da arquidiocese. No verão de 1974, Murphy foi removido de todas as suas funções na escola.
Ele enfrentou inúmeras acusações de abuso ao longo dos anos, de acordo com a lista online da diocese. Em 1993 – dois anos antes de Connell começar sua investigação – Murphy autodenunciou seu contato sexual com estudantes da St. John entre 1952 e 1974. Ele morreu em 1998.
Connell disse ao NCR que sua revisão dos arquivos de Murphy – solicitada pelo então arcebispo de Milwaukee, Rembert Weakland – “pode ter plantado uma semente” que “floresceu anos depois”, quando ele passou a ver o sigilo da confissão como problemático em alguns casos.
“Eu vejo [o sigilo da confissão] como uma lei da Igreja, e somente o papa tem autoridade legislativa para mudar a lei universal da Igreja”, disse ele.
Mas os críticos dizem que seus esforços minam a santidade do confessionário e sugerem uma mudança no ensino da Igreja.
Alguns canonistas, teólogos sacramentais e padres que apoiam o desejo de Connell de proteger as crianças e os adultos vulneráveis, no entanto, dizem que o papa não pode alterar a lei canônica para exigir que os padres denunciem o abuso sexual que ouviram em confissão.
“O padre nunca pode dizer nada a ninguém, jamais, sobre uma confissão”, disse Mons. Kevin Irwin, teólogo sacramental e ex-reitor da Universidade Católica da América. “O sigilo é a confiança mais sagrada que os padres devem manter e na qual os penitentes devem poder confiar.”
O padre jesuíta Bruce Morrill, teólogo litúrgico e sacramental que atua como decano de Estudos Católicos Romanos na Universidade de Vanderbilt, disse ao NCR que poucos conceitos na teologia católica são tão absolutos e de uma gravidade tão séria quanto o sigilo da confissão, mesmo no caso de alguém confessar uma ofensa grave, como o abuso sexual de uma criança.
“A Igreja vê sua missão como um agente do julgamento e da misericórdia de Deus para fazer tudo o que puder para salvar almas”, disse ele. “A responsabilidade da Igreja é tornar tudo isso tão disponível quanto possível, para que uma alma seja salva. Se o Estado exigir essa divulgação, isso basicamente inibe ou torna muito difícil que as pessoas confiem que podem confessar isso e, nesse processo, fazer o que puderem para sua salvação.”
Defensores das pessoas sobreviventes de abuso sexual clerical e advogados civis que processaram a Igreja Católica em nome de milhares de vítimas disseram ao NCR que os bispos que denunciaram os projetos de lei como ataques à liberdade religiosa ignoram uma história de décadas de padres e lideranças da Igreja abusadores, que usaram o sigilo da confissão para atacar crianças e adultos vulneráveis e para proteger padres abusadores de suas responsabilidades.
“Eu acredito que parte da razão pela qual a confissão é tão proeminente nas histórias de abuso [sexual] é que o poder do sacramento não é reconhecido, até mesmo ou talvez especialmente pela Igreja”, disse Terence McKiernan, cofundador e presidente da BishopAccountability.org, que rastreia o abuso sexual clerical em todo o mundo.
McKiernan está estudando o papel da confissão na crise dos abusos sexuais clericais como parte de um projeto de pesquisa em andamento no Centro Cushwa para o Estudo do Catolicismo Estadunidense da Universidade de Notre Dame. McKiernan disse ao NCR que até agora documentou 207 casos nos Estados Unidos e 115 na Austrália de padres que exploraram o sacramento para atacar, aliciar e abusar de pessoas vulneráveis.
“Esses números são a ponta do iceberg”, disse McKiernan.
Uma revisão dos relatórios do grande júri, de memorandos internos da Igreja, de depoimentos de testemunhas, de declarações de vítimas e de transcrições de julgamentos em nove casos compartilhados pela BishopAccountability.org ilustra como alguns padres abusadores ao longo de décadas foram acusados de terem usado o sacramento da confissão para molestar e estuprar vítimas, e manter seus crimes em segredo.
Em dois casos analisados pelo NCR, padres abusadores disseram às vítimas para confessar seu próprio abuso.
Nos anos 1960, de acordo com a declaração juramentada de um sobrevivente de abuso sexual clerical, três padres em Iowa que abusaram de menores se confessavam e davam a absolvição uns aos outros.
“Encontrei muitas vítimas de abuso sexual clerical na infância que foram abusadas sexualmente no confessionário, quando o padre estava ouvindo a chamada confissão”, disse Mitchell Garabedian, advogado de Boston que representou dezenas de vítimas de abuso sexual clerical desde os anos 1990.
Garabedian disse ao NCR que um ex-cliente contou que foi forçado a realizar um ato sexual com um padre enquanto ele ouvia a confissão de outra pessoa. Ele disse que outros clientes relataram que foram abusados sexualmente pelos padres que ouviram suas confissões.
Em uma declaração juramentada de 2003, uma vítima de abuso sexual clerical em Massachusetts escreveu que o falecido cardeal Bernard Law, ex-arcebispo de Boston, invocou o sigilo da confissão durante uma conversa privada para impedir que a vítima contasse a alguém sobre um padre que havia abusado sexualmente dele.
A vítima disse que Law lhe falou: “Eu o obrigo pelo poder do confessionário a não falar com mais ninguém sobre isso. Não queremos destruir a reputação do ministério desse bom homem”.
Um porta-voz da Arquidiocese de Boston disse ao jornal The Boston Globe em 2002 que Law, falecido em 2017, tinha “uma vaga lembrança” dessa conversa, mas não se lembrava das palavras trocadas e achava “inconcebível” que ele tivesse aconselhado alguém a não falar do que havia sofrido.
Law renunciou em desgraça em dezembro de 2002, depois que o Boston Globe revelou a dimensão dos abusos sexuais clericais e o encobrimento institucional na Arquidiocese de Boston.
“O privilégio clérigo-penitente está sendo usado como uma fachada pela Igreja Católica para evitar a transparência sobre os abusos sexuais clericais”, disse Garabedian.
Em sua investigação sobre Murphy, Connell descobriu que o padre foi acusado de usar a confissão para identificar vítimas em potencial e atacá-las sexualmente, às vezes durante o próprio sacramento. Murphy foi acusado de abusar de até 200 meninos em uma escola para surdos em Milwaukee.
“Esse foi o pior caso de abuso do confessionário em Milwaukee e um dos piores casos conhecidos na história do catolicismo”, disse McKiernan.
McKiernan acusou Listecki de tentar silenciar um denunciante ao suspender algumas das faculdades de Connell.
Donna Doucette, diretora executiva do Voice of the Faithful, um grupo reformista fundado após a reportagem de 2002 sobre os abusos sexuais clericais e os encobrimentos na Arquidiocese de Boston, disse ao NCR que a ação de Listecki foi “um pouco exagerada”.
“Esperamos que todos aqueles que respeitam e apoiam o trabalho que [Connell] fez ao longo dos anos para ajudar os sobreviventes a obter justiça o apoiem pessoalmente nisso, quaisquer que sejam seus sentimentos sobre o sigilo da confissão”, disse Doucette.
Em uma declaração enviada ao NCR, o Pe. Nathan Reesman, vigário para o clero da Arquidiocese de Milwaukee, disse que a arquidiocese tem uma “política de tolerância zero” em relação ao abuso sexual de menores e que as “rigorosas medidas de prevenção de abuso da arquidiocese levaram a mais de 12 anos sem nenhuma acusação comprovada de abuso sexual de menor contra um padre arquidiocesano”.
Reesman disse: “Qualquer implicação de que a decisão de remover a permissão do Pe. Connell de ouvir confissões transmite uma falta de compromisso da Igreja em proteger contra os abusos é falsa e enganosa. A questão em jogo é a correta compreensão do sigilo da confissão”.
Em sua declaração, Listecki disse que a arquidiocese está “totalmente comprometida com a proteção de todas as pessoas contra atos de abuso e negligência”. O bispo acrescentou, porém, que esse compromisso “de forma alguma nos permite endossar ou defender qualquer prática, política ou ação legislativa que ameace a natureza inviolável do sigilo da confissão e o privilégio clérigo-penitente”.
Outros bispos nas últimas semanas fizeram a mesma observação. No dia 3 de março, o bispo Christopher Coyne, de Burlington, Vermont, testemunhou perante a Comissão Judiciária do Senado do Estado contra um projeto de lei que removeria o privilégio clérigo-penitente da lei de denúncia obrigatória de Vermont.
O projeto de lei, testemunhou Coyne, “atravessa um elemento de proteção constitucional da nossa fé religiosa: o direito de culto do modo como acharmos adequado”. Os bispos católicos em Utah e Delaware, onde projetos de lei semelhantes estão pendentes, fizeram declarações similares.
“Eu entendo o que os bispos estão dizendo. Mas eu não concordo com eles”, disse Connell, que escreveu um artigo no News Journal, um jornal de Delaware, no dia 13 de março, defendendo o projeto de lei de lá para remover o privilégio clérigo-penitente.
Observando que todos os 50 Estados, incluindo Washington e os territórios federais, promulgaram leis que exigem que pessoas em determinadas profissões denunciem o abuso sexual infantil, Connell argumenta que a sociedade reconheceu o direito fundamental de uma criança de ser protegida contra o abuso e a negligência. Esse direito, argumenta Connell, supera o direito ao livre exercício religioso, que é protegido pela Primeira Emenda.
“Minha esperança é que [os projetos de lei pendentes] se mantenham quando os advogados começarem a discutir sobre a constitucionalidade deles”, disse ele.
Douglas Laycock, professor da Faculdade de Direito da Universidade da Virgínia que estuda casos de liberdade religiosa, disse ao NCR por e-mail que ambos os lados têm bons argumentos. Ele disse que prevenir o abuso infantil é “obviamente um interesse convincente”.
“Alguns juízes apoiariam [os projetos de lei]. Acho que a atual Suprema Corte os derrubaria”, disse Laycock.
David Finkelhor, professor de sociologia da Universidade de New Hampshire e diretor do Centro de Pesquisa de Crimes contra Crianças da mesma universidade, disse ao NCR por e-mail que os debates sobre denúncias obrigatórias incluíam profissionais com reivindicações de confidencialidade institucionalizadas, como médicos e psicoterapeutas.
Disse Finkelhor: “Em um nível, é um conflito de valores: o que merece mais prioridade, a confidencialidade do denunciante ou a segurança da criança em perigo? Em outro nível, há um debate sobre a eficácia: o ministro/médico/terapeuta pode fazer um trabalho melhor para proteger a criança do que a agência que recebe as denúncias e que conduziria a investigação?”.
Finkelhor disse não ter conhecimento de nenhuma pesquisa que mostre qual abordagem oferece melhores resultados para a segurança infantil. Mas sugeriu que várias considerações fazem a balança pender em favor das denúncias obrigatórias.
“É muito fácil para os profissionais não fazerem nada por contra própria quando não há responsabilização”, disse. “Alguns profissionais demonstraram ter usado seus privilégios de confidencialidade para encobrir situações que todos os observadores acreditam não merecer privilégio e deveriam ter sido denunciadas. Isso inclui o tipo de situação como, por exemplo, quando o clero toma conhecimento de abusos fora do confessionário, como nos ambientes escolares”.
Connell disse esperar que, se alguns Estados removerem as isenções clérigo-penitente, isso forçaria a Igreja a reavaliar sua posição sobre o sigilo da confissão, que ele argumenta ser uma questão de lei canônica, e não de lei divina. Ele observou que os primeiros cristãos, durante séculos, muitas vezes se submeteram à penitência pública antes que a Igreja codificasse a confissão privada durante a era medieval.
Ele disse que o direito canônico pode ser alterado para criar uma exceção no sigilo da confissão para casos de alguém que abusou sexualmente de uma criança ou pessoa vulnerável.
Mas o Mons. Liam Bergin, do Boston College, teólogo sacramental, disse ao NCR que o sigilo da confissão é intrínseco ao sacramento.
“O sigilo da confissão existe para salvaguardar ou para assegurar às pessoas a absoluta confidencialidade do sacramento, para que tenham confiança em se apresentar para celebrá-lo, a fim de conhecerem a misericórdia de Deus”, disse Bergin.
Nicholas Cafardi, advogado civil e canônico, disse ao NCR que o sigilo é uma “qualidade constitutiva” do sacramento e uma disciplina “instituída por Deus”, que “simplesmente não é suscetível a mudanças”.
“Em outras palavras, é da essência do próprio sacramento”, disse Cafardi. “Essa é uma questão de lei divina, e não de lei da Igreja. O papa não pode mudar a lei divina.”
O Pe. Stephen Newton, que atua como diretor executivo da Associação de Padres Católicos dos Estados Unidos, disse ao NCR que, mesmo que considere possível a criação de uma isenção no sigilo, isso minaria o sacramento.
“As pessoas não seriam capazes de confiar no sacramento”, disse ele. “Elas poderiam não confiar no fato de que não haveria um efeito bola de neve.”
Os padres que ficam sabendo do abuso sexual durante uma confissão podem encorajar o penitente a se entregar à polícia ou sugerir a alguém que revelou o abuso que se encontre com ele fora do sacramento.
O padre também pode reter a absolvição se tiver fortes razões para acreditar que o penitente não está arrependido e não tem nenhuma intenção de mudar seu comportamento. Mas os teólogos dizem que o padre não pode exigir que os penitentes se entreguem às forças da lei como penitência.
“O padre pode sugerir [ao penitente] que a penitência mais útil para ele seria ir ao encontro das autoridades, mas, se a pessoa disser que não pode fazer isso ou é incapaz disso, então [o padre] não pode realmente exigir isso”, disse Morrill, teólogo sacramental da Vanderbilt University.
“Eu não posso impor uma penitência que uma pessoa não possa fazer, porque isso seria impiedoso e injusto”, disse Morrill.
Newton enfatizou que, mesmo que um padre retenha a absolvição durante o sacramento, ele ainda não pode quebrar o sigilo da confissão.
“As pessoas têm que perceber que o padre está disposto a ir para a cadeia ao invés de violar o sigilo”, disse Newton.
Apesar de ter suas faculdades confessionais suspensas por seu arcebispo, Connell disse que mantém sua opinião. “Nós, como Igreja, precisamos chegar ao ponto em que a confidencialidade seja menos importante do que a proteção das crianças”, disse ele.
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Padre defende a remoção do sigilo da confissão em casos de abuso para punir abusadores e proteger vítimas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU