06 Abril 2023
Quais são as consequências da extinção de certos alimentos para o planeta e o que implica para a humanidade um sistema alimentar que aniquila a diversidade em prol das monoculturas?
Em seu livro Eating to Extinction. The World’s Rarest Foods and Why We Need To Save Them (Macmillan), Dan Saladino explica muitas das falhas em nosso sistema: por que o consumo mundial de produtos lácteos se baseia na vaca Holstein, o que acontece quando 4 corporações controlam todo o mercado de sementes do mundo e como é possível que comamos apenas um tipo de banana, quando existem mais de 1.500 variedades.
No marco das jornadas Diálogos de Cozinha, organizadas pelo Basque Culinary Center, conversamos com o jornalista britânico para discutir as consequências ambientais, culturais e políticas do atual sistema alimentar.
A entrevista é de Carmen Gómez-Cotta, publicada por Ethic, 04-04-2023. A tradução é do Cepat.
Vamos começar com uma pergunta básica, mas fundamental: por que a diversidade de alimentos é essencial para o nosso futuro?
A diversidade é essencial para a saúde, pois nos dá resiliência e é importante por razões culturais e de identidade. Vivemos em um mundo com grande diversidade (natural, geográfica e histórica) e cada vez mais tendemos a ouvir a mesma música, usar a mesma roupa, assistir aos mesmos filmes e desenvolver um mesmo tipo de agricultura - com cultivos idênticos - que nos faz comer a mesma comida.
Um bom exemplo é a história da banana Cavendish. Desde os anos 1950, cultivamos e comercializamos apenas um tipo, e todas as bananas que comemos são clones desse tipo. E essa uniformidade no sistema alimentar é problemática, porque está repleta de riscos. O que acontece se um vírus afeta um tipo de alimento [como está acontecendo agora com o fungo TR4 que ataca as bananas]? Estamos colocando todos os ovos na mesma cesta.
A diversidade é a história da humanidade e como produziu alimentos em diferentes ambientes, alguns extremos, para sobreviver: do alto dos Andes, onde domesticaram um tipo de batata, ao crescente fértil [região do Oriente Médio compreendida entre Irã, Iraque e Síria], onde cultivaram várias culturas, passando pelas zonas costeiras que aproveitavam o que o mar lhes oferecia.
Cita cultura, identidade, conhecimento e herança. Conceitos que moldam a alimentação, e até mesmo o contrário, porque estão tão interrelacionados que se extinguimos alguns, acabamos com os outros. Que risco de extinção corre uma cultura, se um determinado tipo de alimento desaparece?
Há pouco, falava com um fotógrafo que viaja por regiões em guerra e me contava que para onde quer que viajasse, não importava o que as pessoas tinham perdido no conflito, que a sua cultura gastronômica continuava sendo algo a que se apegavam. Pessoas que no Afeganistão estão dispostas a cruzar um posto de controle do ISIS para buscar tomates em uma área específica da Síria e retornar ao acampamento de refugiados.
É um pequeno exemplo que ilustra muito bem como as pessoas se apegam a memórias de familiares e de lugares que podem ter sido perdidos, mas com os quais voltam a se conectar através da comida. Se você vai a esses lugares do mundo onde existem comunidades de imigrantes, como Chinatown ou um bairro italiano na América, muitos deles possivelmente nunca tenham visitado seu país de origem e, inclusive, até perderam o idioma e muito da conexão com esse lugar de onde procedem seus ancestrais. E mesmo assim, podemos ver essa identidade que se expressa através da comida.
É um vínculo verdadeiramente forte, uma forma poderosa de expressar quem são. Porque para além da segurança alimentar, dos alimentos que estão desaparecendo ou dos riscos a que nos expomos com a falta de diversidade, trata-se também da conexão que existe com a identidade e a cultura.
Você mencionou o tema da segurança alimentar. Qual a importância da diversidade na segurança alimentar?
Antes da Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos alimentos dependia de cultivos e pecuária que tinham se adaptado a tipos específicos de ambientes. Contudo, no século XX, começaram a surgir certas tecnologias que nos permitiram ir controlando cada vez mais a natureza, como a produção em larga escala de fertilizantes e o melhoramento de plantas [que dá origem a uma nova diversidade de cultivos a partir do cruzamento entre espécies].
Muito rapidamente, nós, seres humanos, começamos a assumir o controle da natureza, o que significou que, de repente, já não dependêssemos mais desses cultivos adaptados, mas que pudéssemos criar novas genéticas, em diferentes partes do mundo, graças ao controle dos sistemas de irrigação e ao uso de insumos químicos. Isso deu origem a um sistema no qual começamos a produzir cada vez mais alimentos e mais calorias, um sistema alimentar distorcido, cujas consequências ainda não somos nem sequer capazes de entender.
Em inícios do século XX, o maior cultivo em grande parte da Europa foi a aveia, com a qual se alimentava os animais que puxavam os instrumentos da lavoura. Quando os veículos motorizados começaram a ser usados, passou-se para a cevada e quando aconteceu a Revolução Verde [cujo objetivo era aumentar a ingestão de calorias de uma população em risco de fome, após a Segunda Guerra Mundial], passamos ao trigo, um cereal que acabou monopolizando a maior parte dos cultivos.
Esta Revolução Verde teve tanto sucesso que começamos a alimentar os animais com estes cereais inicialmente destinados ao consumo humano. A expansão em massa da pecuária é produto dessa nova forma de cultivar cereais.
Como você diz, foi há mais de 100 anos que determinada homogeneidade começou a se estabelecer. Como continua se espalhando, hoje?
Junto com esse avanço da ciência, o desenvolvimento das novas tecnologias e o sistema de monoculturas imperante, paralelamente, há uma ascensão de um reduzido número de corporações que controlam tudo. A história das sementes serve de exemplo: a maior parte das sementes do mundo é produzida e comercializada por quatro companhias. Todas começaram como empresas de produtos químicos que depois passaram a comprar outras de sementes, porque assim tinham o pacote completo: os insumos químicos essenciais para esses novos tipos de cultivo, assim como o germe do processo.
É o que se vê em muitas outras partes do sistema alimentar, como com as cervejas: 1 em cada 4 cervejas consumidas no mundo é controlada por uma única companhia, mesmo que posteriormente tenha várias marcas sob seu guarda-chuva. É um processo que começa a se desenvolver nos anos 1960, com a Revolução Verde, e continua até os dias atuais.
Levando em consideração o enorme poder das poucas corporações que controlam o sistema alimentar, o que pode ser feito para reformular esse paradigma? Ao longo do livro, você menciona que mudar o sistema alimentar é o primeiro passo para devolver a diversidade ao mundo.
É preciso considerar que a questão não se restringe apenas às corporações. Os subsídios também desempenham um papel importante na sobrevivência e continuidade do sistema. Estamos falando de grandes orçamentos governamentais destinados a uma forma específica de agricultura e pecuária.
Na COP15, realizada em Montreal, no Canadá, em dezembro de 2022, um dos objetivos traçados foi mudar o sistema de subsídios para salvar a diversidade. Penso que reconhecer oficialmente que isso só vai mudar se mudarmos a questão dos subsídios foi verdadeiramente importante. Não sei quando e como a mudança vai acontecer, mas o mero fato de ouvir que isto foi levantado como um dos objetivos da COP já é uma conquista e tanto.
Então, esses subsídios que as corporações recebem dos governos ajudam a preservar esse sistema alimentar distorcido. Trata-se, sobretudo, de uma questão política?
Exato. De certa forma, essa Revolução Verde que começou a mudar o sistema alimentar em todo o mundo, nos anos 1960, levando ao declínio da diversidade, é um exemplo de que se pudemos mudar o sistema uma vez, podemos fazer o mesmo novamente. Uma das outras coisas que tentei fazer com o livro é explicar que a ciência nos dá cada vez mais razões para querer mudá-la, incluindo a ideia de que a complexidade e a diversidade são importantes para nossa saúde.
Existem muitas formas de explicar a sua importância: através da microbiota intestinal [todos esses microrganismos presentes em nosso intestino], a agricultura regenerativa (com a qual se pode conseguir que a natureza reduza a sua dependência de insumos químicos e fertilizantes) e os sistemas de rotação de culturas que, ainda que antigos, agora estão ressurgindo.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia [em fevereiro de 2022] e os preços dos fertilizantes aumentaram, houve uma grande mudança em várias partes da Europa e os agricultores que dependiam desses fertilizantes começaram a ver se podiam mudar para sistemas de rotação de culturas para reduzir sua dependência. No Reino Unido, por exemplo, aprovou-se uma verba de 50 milhões de libras, através do Conselho de Pesquisa em Biotecnologia e Ciências Biológicas, que financia estudos de pesquisa científica para encontrar formas alternativas de cultivos e produção de alimentos para o futuro.
Você menciona a rotação de culturas, uma das alternativas fomentadas nos últimos anos para melhorar a saúde do solo. Quais são os impactos dos diferentes sistemas de cultivo em nosso planeta?
Desde as emissões de dióxido de carbono da agricultura e a pecuária ao uso de combustíveis fósseis, passando pelo desmatamento, a degradação dos solos, o desaparecimento de aquíferos e as secas.
No ano passado, a Índia registrou uma das mais altas temperaturas de sua história, o que provocou grandes secas e perdas de colheitas. Entre outas coisas, deve-se ao Império Britânico e o colonialismo: muitos cultivos indígenas da Índia foram então substituídos por vastas extensões de trigo altamente dependentes dos aquíferos.
Hoje, a Índia enfrenta um grave problema em termos de abastecimento de água e, em muitas partes do país, a situação é tão desesperadora que o Governo indiano pressionou a Organização das Nações Unidas para que anime os agricultores a voltarem para formas de cultivo mais tradicionais, especialmente o milheto, um cultivo que pode ser produzido com muito menos água e continua sendo muito nutritivo.
Além disso, a Índia tem muitas variedades desse grão. Então, 2023 é o ano do milheto. É fascinante comprovar como muitos dos problemas ambientais que enfrentamos podem ser resolvidos através dos alimentos.
Nós nos concentramos em determinados cultivos, fomentando as monoculturas a ponto de muitos de nossos alimentos e bebidas se tornarem “commodities” (trigo, café e mesmo a água). Levando em consideração o controle exercido pelos mercados financeiros, como podemos deter os cultivos de tais alimentos?
É interessante pensar como certos capitais privados de investidores de todas as partes do mundo formam a base do sistema. E de certa forma fazem isto, mas não completamente. É necessário olhar como o capital privado está se deslocando para alimentos alternativos e novos cultivos, muitos deles para alimentos à base de plantas.
Tive a oportunidade de falar com pessoas que controlam muito dinheiro que agora veem o sistema atual como um risco, motivo pelo qual o dinheiro começa a se mover, por exemplo, longe da indústria da pecuária, devido às regulamentações de muitos governos e o surto de certas doenças.
Basta lembrar o exemplo da China, em 2016, quando sofreu o surto da peste suína africana e quase a metade da população mundial de suínos foi aniquilada. Ou, mais recentemente, a gripe aviária na Europa. Este é um risco para os investidores e um motivo de mudança nos mercados financeiros.
Contudo, outro motor de mudança são as cidades através da contratação pública. Copenhague é, provavelmente, o exemplo mais conhecido do poder dessa prática com os itens orçamentários que destina à alimentação nas escolas e hospitais e com a recompensa financeira aos agricultores em função da diversidade de maçãs que podem fornecer.
Não estou dizendo que os alimentos que menciono no livro sejam os que temos que resgatar ou evitar que se extingam para tornar este mundo melhor. Mas, sim, sei que nosso mundo melhoraria se agirmos: a diversidade é essencial para a segurança alimentar e nossa saúde, para nossa cultura e identidade. Há um motivo pelo qual as monoculturas não existem na natureza.
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“A diversidade é essencial para a segurança alimentar e nossa saúde”. Entrevista com Dan Saladino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU