01 Abril 2023
No Brasil do século XXI, torturadores, apoiadores e mandantes da tortura ainda dormem tranquilos.
O artigo é de Marcelo Guimarães Lima, artista plástico, pesquisador, escritor e professor de filosofia, publicado por A Terra é Redonda, 29-03-2023.
Eis o artigo.
Em 1973, eu estudava filosofia na USP, nos barracões improvisados como salas de aulas enquanto o novo prédio da FFLCH no campus não saia do papel. Era meu segundo ano de estudos e naquele semestre eu frequentava o curso noturno. Naquela noite, início das aulas, alguém avisou pelo corredor do barracão do curso de filosofia sobre a prisão do estudante de geologia, Alexandre Vannucchi. Houve uma pequena movimentação entre os alunos, discreta pois o clima era de muita tensão.
Eu me dirigi para a entrada da vizinha Escola de Comunicações, cujo diretor era tido como pessoa de alguma forma ligada ao regime e, portanto, à repressão. Havia ali uma pequena concentração de estudantes de várias unidades. Em grupos, comunicavam e discutiam muito discretamente sobre a prisão. A própria concentração era já uma “manifestação silenciosa”, isto é, um protesto evitando discursos, cartazes, palavras de ordem, etc., mas significativo dentro do clima de terror imposto pela ditadura empresarial militar. Um protesto solidário contra a prisão do estudante e contra a inação, e mesmo o que se apontava como cumplicidade de determinadas autoridades universitárias.
Eu não conhecia pessoalmente Alexandre Vannucchi, mas sabia algo da sua atuação no movimento e na representação estudantil dentro da universidade. Motivo suficiente para prestar minha solidariedade e para protestar da forma possível, ou impossível nas circunstâncias, contra a maldita ditadura, seus políticos, seus empresários apoiadores da repressão, seus vários cúmplices, seus assassinos torturadores e seus militares lesa-pátria.
Nossa mera presença frente ao prédio universitário naquela noite sombria, sem estrelas, num campus anoitecido e adormecido, era já um desafio ao terrorismo do Estado policial militar brasileiro no espaço da universidade. Esperávamos a repressão policial a qualquer momento, o preço a pagar por nosso inconformismo e protesto. A repressão afinal não veio naquela noite, teriam talvez tarefas mais urgentes, ocupados em seviciar um estudante encarcerado por suas opções políticas, um jovem sem defesas diante da covardia inominável de torturadores profissionais. Todo torturador é um covarde, como são covardes seus mandantes e apoiadores.
A repressão não veio nos dispersar naquela noite no campus da USP. A justiça também faltou naquele momento, faltou para Alexandre Vannucchi, para todos os opositores da ditadura empresarial militar e para o país. Como falta até hoje. A justiça falhou no Brasil e continua a falhar. Até quando?
No Brasil do século XXI, torturadores, apoiadores e mandantes da tortura ainda dormem tranquilos. Assim como, dormem tranquilos todos os que facilitaram e lucraram com a ditadura. Entre eles, como um dos fatores importantes do período ditatorial, os grandes grupos da mídia comercial brasileira. Os mesmos que promoveram o golpe de 2016, e que hoje ensaiam novos golpes contra o governo popular de Lula da Silva.
De nosso lado, temos a memória, isto é, a lembrança permanente do valor e da coragem de nossos mortos como Alexandre Vannucchi e tantos outros. Ela nos guia no caos produzido e administrado pelos que lucram com a opressão e a miséria material e moral do nosso povo. Em nós vive a indignação de Alexandre Vannucchi contra a miséria e a opressão imposta aos brasileiros, em nós permanecem a indignação e coragem de todos os caídos nas lutas contra a tirania, a mentira, a violência, a covardia e hipocrisia dos opressores no Brasil ontem e hoje.
Leia mais
- Torturado até a morte há 50 anos, Alexandre Vannucchi Leme deu nome ao DCE Livre da USP em 1976
- Alexandre Vannucchi Leme. 40 anos depois. Entrevista especial com Aldo Vannucchi
- Anistia, Memória e Justiça. Revista IHU On-Line Nº. 358
- 1964. Um golpe civil-militar. Impactos, (des)caminhos, processos. Revista IHU On-Line Nº. 437
- 1964-2004. Hora de passar o Brasil a limpo. Revista IHU On-Line N°. 95
- 50 anos do golpe. Investigação das Forças Armadas: ‘É primeiro passo para profunda revisão histórica’
- Nos 50 anos do golpe, SP vai às ruas contra "lei antiterror"
- 50 anos do golpe de 1964. Um depoimento
- 50 anos do golpe. "Um apavorante susto"
- 50 anos do golpe. Uma ferida que sangra sempre
- 50 anos do golpe. De um torturador para uma jovem: “Você vai sofrer como Jesus Cristo”
- Desejo de lembrança. Filme reforça o debate sobre os 50 anos do Golpe Militar de 1964
- A morte dos direitos humanos na ditadura militar
- Alta taxa de homicídios no Brasil impede reflexão sobre crimes na ditadura, diz historiador
- Mataram um estudante, ele podia ser seu filho. Há 50 anos, um assassinato comoveu o Brasil. E se fosse hoje?
- Foto de Herzog alimentou luta interna
- Tortura, modelo exportação. Livro desvenda conexão entre adido militar e os porões da ditadura
- Documentos mostram evangélicos nos porões da ditadura
- Mais de 80 empresas colaboraram com a ditadura militar no Brasil
- Entre a história e a memória, a atuação dos bispos católicos durante a ditadura civil-militar brasileira
- Comandantes evitam lembrar à tropa aniversário do golpe de 64
- 11 filmes para entender a Ditadura Militar no Brasil
- Golpe de 1964: de como a burguesia industrial se articula em uma classe para a tomada do poder político
- Golpe 50 anos. Silvio Tendler recupera história do golpe de 64
- 50 anos do Golpe de 64. Impactos, (des)caminhos, processos
- A conspiração para o golpe de 64 começou na Embaixada dos EUA
- Golpe de 1964. Desmemórias
- Civis e militares agiam em sintoniia fina no Dops
- Por que Rubens Paiva foi morto
- Justiça terá mais uma chance de acertar as contas com a história por assassinato de Vladimir Herzog
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Alexandre Vannucchi Leme - Instituto Humanitas Unisinos - IHU