25 Março 2023
Neste artigo publicado em 2018, com a aproximação do então 5º aniversário de pontificado de Francisco, o jornalista e vaticanista italiano Marco Politi afirma que o papa podia se orgulhar de algumas reformas impressionantes. Mas, para consolidá-las, deveria vencer a guerra civil dentro da Igreja.
O artigo foi publicado por The Tablet, 06-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No segundo aniversário de sua eleição, o Papa Francisco refletiu: “Tenho a sensação de que meu pontificado será curto. Quatro ou cinco anos...”. Daqui a algumas semanas, em 13 de março de 2018, cinco anos terão se passado – mas ele não tem nenhuma intenção de renunciar.
Francisco está determinado a renunciar no dia em que sentir que suas forças diminuírem significativamente; enquanto isso, seus apoiadores na Cúria Romana e nas Igrejas locais em todo o mundo o encorajam a permanecer o máximo que puder.
Sua visão da Igreja como uma comunidade, e não como uma monarquia; sua reformulação das conferências dos bispos e do Colégio dos Cardeais; suas várias reformas do modo como a Igreja é governada – tais impulsos e iniciativas precisam de tempo para se consolidarem.
Mas, mais do que mudanças de estruturas ou de direito canônico ou mesmo de pessoal, Francisco procura fomentar uma nova mentalidade e atitude entre os fiéis. O papa que escolheu o nome do pobre São Francisco de Assis está chamando os católicos a serem testemunhas ativas do Evangelho, não apenas fiéis passivos.
O que ele precisa mais do que tudo para permitir que a nova forma de pensar crie raízes e cresça é tempo. E o tempo – como bem sabem seus aliados e seus oponentes – está se esgotando.
É um trabalho difícil liderar uma comunidade de 1,3 bilhão de homens e mulheres. Durante sua recente viagem a Mianmar, Francisco teve que tirar quase um dia inteiro de repouso ao chegar a Yangon, interrompido por apenas uma reunião de 15 minutos com o chefe das Forças Armadas. No mês passado, o papa argentino celebrou seu 81º aniversário.
Aos 82 anos de idade, o Papa Bento XVI estava planejando renunciar; aos 83, havia abandonado o palácio apostólico.
No entanto, Francisco está mais dinâmico do que nunca. O Sínodo sobre a Juventude em outubro deste ano é um dos temas mais importantes de sua agenda. Uma viagem à Índia está prevista. Em maio, ele receberá em Roma o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I. Em agosto, está prevista uma rápida viagem à Irlanda. E, mais ao longe, está a grande questão da China: as negociações com Pequim avançam “devagar e com paciência”, como sublinha o papa. A segunda metade do pontificado está começando.
Olhando para trás, para a primeira parte de seu papado, alguns resultados impressionantes foram alcançados. A reforma da Cúria continua, e o governo central da Igreja tornou-se um pouco mais enxuto. Essa foi uma das principais questões que os cardeais levantaram durante suas reuniões oficiais pré-conclave, antes da eleição de Francisco.
Seis antigos conselhos pontifícios (Leigos, Família, Justiça e Paz, Cor Unum, Migrantes, Agentes de Saúde) foram fundidos em dois dicastérios: um para os Leigos, a Família e a Vida, sob a liderança do cardeal Kevin Farrell, e outro para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, sob a liderança do cardeal Peter Turkson. Isso significa uma Cúria Romana com menos “príncipes” purpurados.
Enquanto isso, começou uma descentralização cautelosa. Os bispos locais agora têm o direito, em algumas circunstâncias, de declarar um matrimônio nulo sem precisar da aprovação de Roma. As conferências episcopais têm o direito de revisar os textos litúrgicos sem esperar pela aprovação formal (recognitio) de Roma: uma ratificação (confirmatio) é suficiente. E, no rastro do Jubileu da Misericórdia, os padres de todo o mundo – não apenas os escolhidos pelos bispos locais – estão autorizados agora a conceder a absolvição a quem confessar que fez um aborto: incluindo até os clérigos cismáticos da Fraternidade São Pio X.
As mulheres – embora ainda muito poucas – passaram para os altos escalões da Cúria. Gabriella Gambino, professora de bioética, e a juíza Linfa Ghisoni foram nomeadas em novembro como subsecretárias do novo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. A acadêmica e ex-embaixadora dos Estados Unidos junto à Santa Sé Mary Ann Glendon é membro do conselho do banco do Vaticano. A teórica social britânica Margaret Archer, é presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais. A comissão sobre mulheres diáconas enviou silenciosamente suas conclusões ao papa; ele está atualmente as estudando.
Francisco também agiu para implementar os desejos dos cardeais eleitores em relação ao Instituto para as Obras de Religião (IOR), mais conhecido como banco do Vaticano. Cada uma de suas aproximadamente 18.000 contas foi examinada por uma agência independente. Todas as chamadas “contas externas” controladas por políticos ou empresários que não têm nada a ver com as atividades da Igreja foram bloqueadas ou fechadas.
A Moneyval, a agência antilavagem de dinheiro do Conselho da Europa, concluiu que o Vaticano já resolveu a maioria das deficiências em sua estrutura legal e regulatória. A Santa Sé adotou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção; e o Vaticano finalmente assinou acordos de cooperação com vários países a fim de processar conjuntamente crimes financeiros.
O papado de Francisco trouxe uma nova atmosfera à vida pastoral das Igrejas locais. A Igreja afrouxou sua secular obsessão em relação às questões da moral sexual. A pílula anticoncepcional, a coabitação antes do casamento, o divórcio e as relações homossexuais não aparecem mais na paisagem como princípios fixos e inegociáveis. Os párocos se sentem aliviados: já não são mais forçados a situações pastorais impossíveis.
A Igreja não é uma “alfândega”, disse Francisco, mas sim um hospital de campanha. E a Eucaristia não é para os perfeitos, mas sim para os pecadores em busca do caminho certo. Suas palavras e gestos refrescaram a vida do povo de Deus com mais eficácia do que suas encíclicas e levaram a mensagem da misericórdia de Deus para muito além das fronteiras da Igreja.
No entanto, enquanto se inicia o segundo ato do papado de Francisco, podemos ver que ele está sobrecarregado com sérias dificuldades e problemas.
O ano passado trouxe uma reação em um campo delicado: o sistema financeiro do Vaticano. O cardeal George Pell, prefeito da Secretaria de Economia, abandonou Roma precipitadamente em junho para voltar à sua Austrália natal, para se defender de acusações históricas de delitos sexuais. Em dois meses, ele está convocado a participar de uma audiência em Melbourne que pode durar várias semanas.
Em Roma, o “Ranger” (apelido de Pell, criado pelo Papa Francisco) era conhecido por sua determinação incansável para lançar luz sobre o emaranhado feudal dos diferentes orçamentos e despesas domésticas dos múltiplos dicastérios e administrações do Vaticano. Foi Pell quem revelou que várias centenas de milhões de euros estavam “escondidas” nas contas das administrações vaticanas sem estarem registradas no orçamento oficial da Santa Sé.
Pell era odiado pela burocracia da Cúria e seus barões. Ninguém agora está dando continuidade a seus esforços. Nenhum vice-prefeito foi nomeado pelo papa na ausência de Pell, e ninguém em Roma está apostando na volta de Pell. Esse vazio não é um bom sinal.
Enquanto isso, quase ao mesmo tempo, Libero Milone, o primeiro auditor-geral da história do Estado do Vaticano, foi demitido. Alegou-se que ele havia “contratado ilegalmente uma empresa externa para conduzir atividades de investigação sobre a vida privada dos empregados da Santa Sé”.
O fato de um profissional altamente respeitado ter sido expulso de seu cargo central sem que nenhuma evidência tenha se tornado pública parece um retrocesso na batalha pela transparência nas finanças vaticanas. Meses se passaram, e novamente nenhuma substituição foi anunciada. Então, em novembro passado, o vice-diretor do banco do Vaticano, Giulio Mattietti, foi demitido, novamente com explicações mínimas. Esses também são maus sinais.
Em outra área de preocupação, a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores não parece estar em sua melhor forma. Ela perdeu dois membros renomados, os únicos que também eram sobreviventes de abusos sexuais clericais: Marie Collins e Peter Saunders.
Collins renunciou após acusar o cardeal Gerhard Müller (então ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé) de “falta de cooperação”. Em 2015, o papa havia aceitado uma proposta feita pela comissão para instituir um tribunal especial que levaria a julgamento os bispos acusados de terem sido “negligentes” em casos de abuso sexual. No ano passado, descobriu-se que o cardeal Müller – com outros membros da Cúria – havia sabotado o projeto.
Não há dúvidas sobre a política de “tolerância zero” de Francisco em relação aos abusos clericais, mas também não há dúvida sobre a resistência passiva de muitas conferências episcopais em todo o mundo a essa linha. Ainda não se aceita em todos os países que um bispo seja obrigado a denunciar incidentes de abuso sexual clerical às autoridades civis. Francisco, ao se dirigir pessoalmente à comissão em setembro passado, prometeu que, no futuro, todos os padres condenados por abuso serão laicizados.
Os índices de aprovação do pontífice argentino continuam muito altos, e não apenas entre os católicos. Muito além das fronteiras confessionais, ele é reconhecido como uma autoridade moral e um líder geopolítico. Sua posição sobre migração, refugiados, a crescente desigualdade entre ricos e pobres, tráfico sexual e a “nova escravidão” que explora milhões de trabalhadores, e sua repetida ênfase na estreita ligação entre a deterioração ambiental e a crescente injustiça social teve um amplo impacto no público.
Dentro da Igreja, enquanto isso, uma espécie de guerra civil está em andamento. Os opositores dizem que Francisco é comunista, feminista, populista ou está tão apegado ao espírito dos tempos que espremeu dramaticamente a sacralidade do papado, traindo a tradição e a lei divina.
Seria um erro considerar a Cúria Romana o principal ou o único centro de oposição. Na verdade, o aparato curial está parcialmente frustrado e consternado, pois sente que sob Francisco está perdendo sua aura quase militar como chefe de gabinete do catolicismo. Mas a ampla resistência a Francisco tem raízes em todo o mundo nas Igrejas locais.
“Nenhum papa nos últimos 100 anos teve que enfrentar tamanha oposição entre os bispos e o clero”, disse Andrea Riccardi, historiador da Igreja e fundador da Comunidade de Santo Egídio. Durante os dois Sínodos sobre a Família, em 2014 e 2015, ficou claro que uma maioria dos bispos – a grande maioria dos quais foram escolhidos nas últimas três décadas por João Paulo II ou Bento XVI por sua inquestionável obediência a Roma – não estava preparada para apoiar uma estratégia clara de reforma. E, no fim das contas, os reformadores eram uma minoria.
Há muitas razões para a resistência às reformas de Francisco. Alguns bispos são simplesmente conservadores teológicos comprometidos, e outros se apegam à tradição devido a uma preferência temperamental pelo modelo “sempre se fez assim”; eles estão intrigados com as rápidas mudanças na sociedade e se sentem mais seguros seguindo o caminho que já conhecem.
O mesmo vale para o clero mais jovem. Os padres jovens costumam ser os mais firmes em sua determinação de resistir às reformas de Francisco. Juntos, esses bispos e padres criam uma espécie de pântano, dificultando o progresso do papa e retardando o trabalho dos novos bispos que ele nomeia.
Em seu encontro anual antes do Natal com os membros da Cúria Romana em 2016, Francisco lamentou as “resistências ocultas, que nascem dos corações assustados ou endurecidos, que se alimentam das palavras vazias da hipocrisia espiritual, de quem, da boca para fora, se diz pronto para a mudança, mas quer que tudo permaneça como antes”. Ainda mais incisivamente, ele denunciou as “resistências malévolas, que germinam em mentes distorcidas e se apresentam quando o demônio inspira más intenções (muitas vezes ‘em pele de cordeiro’)”.
No mês passado, em seu encontro com eles em 2017, ele falou da existência dentro da Cúria de uma “lógica desequilibrada e degenerada dos complôs ou dos pequenos círculos”, de um verdadeiro “câncer” que leva ao egocentrismo. Além disso, enfatizou o perigo dos traidores, pessoas escolhidas para apoiar e implementar reformas que, ao invés disso, “se deixam corromper pela ambição ou pela vanglória”. Suas palavras duras foram recebidas por uma taciturna demonstração de obediência.
Quanto à oposição radical a Francisco, ela escolheu o caminho de uma escalada imprudente de hostilidade ao papa, usando a exortação pós-sinodal Amoris laetitia como sua plataforma. Foram organizados abaixo-assinados ao Colégio dos Cardeais, os dubia (“dúvidas teológicas”) assinadas por quatro cardeais – Raymond Burke, Walter Brandmüller, Carlo Caffarra e Joachim Meisner, os dois últimos já falecidos –, um falso L’Osservatore Romano debochando de Bergoglio e cartazes zombando dele, que foram colados nos muros do centro de Roma, onde foram vistos por milhares de turistas e romanos. E houve uma implacável guerra contra ele em sites ultraconservadores.
O papa nunca concordou em se encontrar com os quatro cardeais dos dubia. Isso pode ter sido um erro: permitiu que seus críticos na Cúria dissessem que sua porta está aberta para todos – exceto para quem se atreve a criticá-lo.
E, agora, a hostilidade, aberta e disfarçada, está crescendo. O cardeal Burke quer “corrigi-lo”. A última “correção filial”, originalmente assinada por 62 estudiosos católicos leigos e clérigos, acusa-o de levar os católicos à heresia. Um novo e-book, “The Dictator Pope”, critica Bergoglio por governar “por meio de uma teia de mentiras, intrigas, espionagem, desconfiança e medo”.
Essa é uma técnica que lembra o Tea Party nos Estados Unidos. Esse movimento não conseguiu derrubar o presidente Barack Obama, mas exerceu uma grande influência nas eleições presidenciais seguintes.
Da mesma forma, os radicais anti-Francisco visam a deslegitimar seu papado dia após dia, impossibilitando que seu sucessor continue sua estratégia de reforma. Não haverá lugar para um Francisco II!
O sucesso da segunda metade do papado de Francisco dependerá do sucesso de suas reformas, incluindo o progresso na reformulação da hierarquia da Igreja e o resultado das manobras em torno da sucessão, que estão silenciosamente começando nos bastidores.
Por essa razão, seus apoiadores estão gentilmente pressionando o papa a iniciar uma reorganização completa da Cúria Romana após a demissão do cardeal Gerhard Müller da Congregação para a Doutrina da Fé. Francisco nunca gostou do “apadrinhamento”, mas parece urgente que uma equipe comprometida com a reforma esteja instalada no topo da Igreja, onde metade das pessoas ainda pertence à era Ratzinger.
Agora, insistem seus apoiadores, é necessário que ele nomeie bispos e cardeais realmente comprometidos com sua abordagem à doutrina e à tradição para todas as posições-chave.
A “tradição”, disse Francisco ao cientista da comunicação francês Dominique Wolton em 2016, “não é uma conta bancária imutável. É a doutrina que avança... O essencial não muda, mas cresce e se desenvolve”. E como a tradição cresce? “Cresce como uma pessoa”, enfatizou Francisco, “por meio do diálogo, que é como o leite para o bebê... O diálogo com o mundo ao nosso redor... Se não entramos em diálogo, não conseguimos crescer, ficamos parados, permanecemos pequenos”.
Este novo ano será vital para ver até que ponto Francisco consegue conduzir a barca de Pedro por essa rota.
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Águas agitadas para a barca de São Pedro. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU