27 Abril 2023
"A gente trabalha porque precisa, mas o patrão precisa de mim para ter a riqueza dele", diz Jaqueline Erthal, presidenta do Sindicato dos Sapateiros e Sapateiras de Novo Hamburgo/RS.
A entrevista é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 21-03-2023.
Novo Hamburgo, no Vale do Rio dos Sinos, 247.303 mil habitantes, foi e ainda é lembrada como a "Capital Nacional do Calçado". Foi a indústria que impulsionou o progresso da cidade, como lembra a presidenta do Sindicato dos Sapateiros e Sapateiras local, Jaqueline Erthal.
Com 90 anos de história, completados em fevereiro deste ano, o sindicato é o segundo mais antigo do município, alguns meses mais novo do que o da construção civil. Ao relembrar as nove décadas da categoria, Jaqueline destaca que, no auge da indústria, entre os anos 1970 até meados de 1990, havia 40 mil sapateiros na cidade e arredores. Hoje são apenas seis mil, mais de 60% mulheres.
Terceira mulher a comandar a representação de sapateiros e sapateiras, Jaqueline relata que o sindicato, desde a sua fundação, tem tido um papel fundamental nas relações de trabalho e na defesa de direitos. Como no caso envolvendo a fábrica de Calçados Zenglein, onde uma funcionária de 19 anos foi impedida de ir ao banheiro durante o seu horário de trabalho, o que fez com que urinasse nas calças. "Em pleno século 21 temos que brigar pelo básico: o direito de ir ao banheiro, que não é só para as mulheres, mas também para os homens", critica.
Nos conte um pouco dessa história de 90 anos do sindicato.
Nesses 90 anos tem muita história. Estou no movimento sindical há mais de 20 anos, então já vivi muitas coisas. Nos meados dos anos 1970/1980, Novo Hamburgo era a capital nacional do calçado. Assim como eu, migrante da agricultura familiar, pessoas vieram para essa terra dos sonhos, do emprego. Foi essa migração que deu esse nome para a cidade. Foi o calçado que impulsionou a cidade e que fez com que - mesmo hoje tendo menos empresas de calçado e a categoria sendo bem menor - mantenha o título.
Em meados dos anos 1980, éramos quase 40 mil sapateiros e sapateiras. Hoje estamos em seis mil. Isso por conta do mercado chinês. E muita coisa aconteceu no meio político. Muita facilidade para fechar fábricas e ir para outros lugares aonde tem isenção de impostos. Sabemos que o empresariado vai onde convém.
Mas a gente continua com as empresas firmes e fortes aqui. Temos nossa mão-de-obra que é de qualidade. Tem empresas muito antigas que ainda estão em pleno funcionamento.
Estamos sempre na porta da fábrica entregando material. O sindicato é uma ferramenta de luta. Quando tem a convenção coletiva - que muitos chamam de dissídio - no mês de agosto não brigamos só pelo percentual de aumento. Brigamos pela garantia dos direitos que é o auxílio-creche, o auxílio-estudante, o direito da mãe duas horas por dia poder amamentar seu filho até ele completar seis meses, o vale quinzenal que, por lei, o pagamento seria só no quinto dia útil, a estabilidade do pré-aposentado, quando faltam 18 meses para se aposentar e a empresa não pode demitir. Tem várias cláusulas que são conquistas da convenção coletiva, que é uma luta que fazemos. A maioria das pessoas só fica pensando no número do aumento, mas tem cláusulas que, às vezes, são tão importantes ou mais do que o próprio percentual.
E também há os pequenos ateliers em diversos bairros da cidade...
O nosso sindicato é o sindicato dos trabalhadores do calçado, componentes e partes para calçado. Hoje, se a gente for colocar na ponta do lápis, existem mais pequenas do que grandes empresas. Temos três ou quatro grandes. Mas a maioria mesmo dos sapateiros são esses ateliers, que geralmente terceirizam para as grandes.
Falastes em prejuízos e um deles foi a reforma trabalhista, não é?
A reforma trabalhista foi um golpe que nós, trabalhadores e trabalhadoras, sofremos muito forte. Esperamos que seja revista e que voltemos a ter minimamente nossos direitos. Uma das coisas que afetou profundamente o trabalhador é o ponto que desobriga as empresas a fazerem as demissões no sindicato. O trabalhador e a trabalhadora ficam completamente à mercê da não conferência (da situação do empregado) por parte do sindicato.
Mas estamos aqui e continuamos fazendo. As pessoas pedem, vamos até a empresa e fazemos. Porque as empresas não podem proibir o trabalhador de ter essa assistência. Mas aquela obrigatoriedade de vir até aqui não existe mais e isso lesa os trabalhadores no seu direito, férias não sendo pagas corretamente, trabalho frio onde não assinam a carteira, entre outros.
Já cheguei a ver o cúmulo de rescisões, onde o aviso prévio, que sempre foi de 30 dias, não existe. Ou as empresas pagarem proporcionalmente ao tempo de serviço, coisa que eu nunca tinha visto...
E como está a situação do trabalhador de calçado em Novo Hamburgo?
A categoria é formada por uma maioria de mulheres. Vivemos, digamos assim, na idade medieval, com casos de assédio moral, assédio sexual dentro das empresas. Uma violência muito grande. Temos muitos atendimentos no sindicato, acompanhamento com psicólogo, pessoas com tentativa de suicídio por não conseguirem mais frequentar o local de trabalho por serem assediadas, por serem perseguidas.
Em 2021, tivemos um caso que repercutiu muito onde uma trabalhadora grávida veio a se urinar no local de trabalho. Por três vezes, ela pediu para ir no banheiro. Ela não foi substituída, não teve a permissão para ir ao banheiro e veio a se urinar.
Depois da repercussão fizemos um acordo coletivo com essa empresa. Há poucas semanas, ela assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público e foi multada por isso.
Em pleno século 21 temos que brigar pelo básico: o direito de ir ao banheiro, que não é só para as mulheres, mas também para os homens. Mas nós, mulheres, menstruamos.
Temos outras particularidades que fazem com que a gente precise ir mais vezes ao banheiro. E para nós também não é tão simples. Não se usa mictórios como os homens (usam), que fazem xixi rapidinho e voltam. Demora um pouco mais.
Essa proibição, a meu ver, é um crime. É um direito básico que [restrito] afeta a saúde, o psicológico, afeta tudo. E o empresariado acha que isso é uma coisa normal. Temos esse acordo onde se garante que o trabalhador e a trabalhadora, a partir do momento que adentrou a empresa até o momento de sair, pode ir ao banheiro sendo substituído pelos curingas [substitutos].
Depois desse fato, já temos outras três empresas em que aconteceu o mesmo caso. Continua acontecendo, e estamos em cima. É uma luta para conseguir colocar isso na convenção coletiva, que seja respeitado esse direito de ir ao banheiro. Mas eles [os patrões] acham que não é necessário.
As mulheres são maioria na profissão. Fala um pouco mais dessa participação no mundo do calçado.
Não estamos dentro da fábrica, assim como não estamos em qualquer lugar, para enfeite. Estamos ali por merecimento, por realmente [saber] trabalhar. E a mulher tem aquela delicadeza, a mulher tem aquela coisa da perfeição. Temos isso, de sermos perfeccionistas sem desmerecer os trabalhadores homens.
Temos divulgação de materiais dizendo sobre as diversas violências, porque muitas mulheres não se veem como vítimas de assédio, por exemplo. Não se veem ou se culpam como a maioria da sociedade faz, quando acontece algum ato de violência. Sempre tentando culpar a vítima. A gente faz esse trabalho [para dizer] que não: a vítima é a vítima, quem comete o crime é que é o criminoso e não o contrário.
O nosso trabalho é constante para conscientizar essas mulheres. Porque o ato do feminicídio, ele acontece ali, mas nunca começa com um tiro, uma facada ou uma pedrada, como aconteceu aqui no bairro, onde uma mulher teve a cabeça esfacelada por pedradas pelo ex-companheiro por não aceitar o término da relação. Não começou ali. Já existia uma violência antes. Então, é esse cuidado. Uma pessoa violenta hoje te agride com palavras, com empurrão, de alguma forma e isso não é bom. Somos trabalhadoras, podemos nos sustentar. Nossa grande maioria é de mães solos, criaram seus filhos sozinhas, muitas mantedoras das casas e das famílias.
Neste sindicato começou uma luta, nos anos 1980, que foi a Luta Maria, uma organização de mulheres onde tinha médicas, advogadas, dirigentes sindicais, que se uniram, se reuniram e dali saiu a primeira delegacia de mulheres.
O mundo sindical, como ele é até hoje, assim como a sociedade, é machista. Sempre foi uma luta por espaço. Eu sou a terceira mulher presidenta deste sindicato e não pense que foi fácil ter uma mulher como presidenta. Porque sempre tem aquela hostilidade e tu tens que fazer o trabalho dobrado de um homem para mostrar. Só fazer o teu trabalho como o de um homem não basta. Tens que fazer o trabalho de um homem e mais um pouco para mostrar que tu podes.
Conta um pouco da tua experiência na fábrica.
Até há um ano e pouco atrás eu estava dentro da fábrica. Comecei com 13 anos, logo que a gente veio do interior. Naquela época, 13, 14 anos, se tu não estivesses trabalhando era um absurdo. Era idade de estar de carteira assinada. Muitas vezes, na esteira ali a gente não alcançava, e subia em cima de um caixote para alcançar.
Hoje tu queres que [o adolescente] estude, que se forme. Naquela época, a gente não teve essa oportunidade. Viemos do interior, pagando aluguel. Tinha que trabalhar para ajudar em casa. O sonho dos nossos pais era comprar o terreninho, fazer a sua casa e sair do aluguel.
Sempre tive o sentido de justiça presente. Na primeira empresa em que trabalhei, com seis meses de trabalho surgiu uma grande greve ali em 1987 e achava que a gente ganhava pouco porque eu trabalhava o dia inteiro. Chegava em casa, só dava tempo de tomar banho, comer qualquer coisa e ir para escola. Achava aquilo tudo muito injusto, muito errado, não podia ser assim. Então surgiu essa greve que durou 15 dias e, como tinha muitas coisas que aconteciam dentro da empresa com que não concordava, fui fazer a greve. Quando voltei fui demitida por justa causa. Minha primeira justa causa, meu primeiro emprego.
A minha mãe, na época: 'Não, porque tu não pode ser assim. A gente tem que trabalhar porque sempre vai ser assim'. Não, não vai ser sempre assim. Não concordo, as coisas não são assim, a gente trabalha porque precisa mas o patrão precisa de mim para ter a riqueza dele.
Não gosto de usar a expressão 'mão-de-obra' porque parece que só a tua mão é que está lá. Não. A tua mente, o teu corpo, o teu físico, teu psicológico tudo está ali. Não tem como só tu botar a tua mão ali. Precisa de todo o teu corpo, a tua força de trabalho. A gente vende a nossa força de trabalho, não a nossa dignidade.
Mesmo sem entender de lei, de direitos, porque recém tinha começado, achava aquilo muito errado. Vocês têm que botar na Justiça, isso não pode acontecer, como assim? E as pessoas botavam na Justiça e me chamavam para ir de testemunha e eu ia, mesmo trabalhando. Não pensava, tipo 'Vou perder meu emprego', como acontece hoje, das pessoas não irem com medo de perder o emprego. E assim foi. Até que um dia fui convidada para entrar no movimento sindical. Há uns 25. E aí foi formação, curso, para entender das coisas, o aprendizado, a consciência de classe. A gente não fala só do sapateiro e da sapateira. Fala daquele morador de rua, do porquê que ele está ali, porque parte da sociedade chama de vagabundo...
São coisas que a gente começa a pensar e a ver. Por exemplo, esses dias fiz um atendimento de uma pessoa com depressão profunda, se automedicando, com intenção de suicídio, por pressão psicológica. Ela sofreu um acidente no trabalho, ficou limitada, não pode mais fazer a função que ela sempre fez. E aí ficam jogando ela pra lá e pra cá, falando coisas, que não serve mais pra nada. Essa pessoa tem estabilidade no emprego, não pode ser demitida. Mas a pressão chegou a tal ponto que ela quer pedir demissão.
E aí, quando a pessoa te agradece por ter alguém que escute - geralmente as pessoas andam na correria e acabam não escutando o outro - esse agradecimento é uma coisa que te fortalece.
Há também a questão da valorização profissional...
Todo o bolo vai pro dono da empresa. O que acontece? Falam que não tem 'mão-de-obra'. Não, temos a mão-de-obra. O que não tem é respeito e valorização por esse trabalhador. Trabalhamos com qualidade e excelência e, muitas vezes, não temos poder aquisitivo para comprar aquele calçado que fizemos. Hoje tem um piso dos trabalhadores do calçado, graças a convenção coletiva. Senão, estaríamos ganhando salário mínimo ou o piso regional. Nosso piso é de R$ 1.584,00 mensal. Ninguém pode ganhar menos do que isso. Se não tivesse isso, com certeza eles pagariam menos. Temos que estar brigando pelo mínimo do mínimo.
Por conta da falta de valorização temos muito rodízio nas empresas. O jovem começa a trabalhar, fica um tempo e sai. Quem ganha mais eles demitem para contratar quem ganha menos. As pessoas vão onde conseguem sobreviver. Muitos trabalham em dois serviços. Muitos trabalham no turno da noite, se exaurindo porque tem o adicional noturno que dá um pouquinho mais.
Com valorização, o trabalhador e a trabalhadora satisfeitos produzem mais, adoecem menos. Não é só a questão de salário. É a questão do respeito. O sapato não foi sozinho pra caixinha. Passou por muitas famílias. Enquanto a gente não mudar a mentalidade desses empresários de sempre querer tirar lucro, tirar sangue e suor como a gente está vendo, no trabalho escravo que a gente viu aqui em Caxias, as coisas não vão mudar.
Com essa reforma trabalhista muita coisa piorou na nossa vida: trabalho insalubre, retirada de direitos, reforma da previdência onde estamos com pessoas adoecidas, já com uma idade mais avançada, e fazendo nove horas por dia numa linha de produção exaustiva. Muitos locais são insalubres, porque a grande maioria é com zinco, e onde muitas vezes a ventilação não dá conta.
A gente tem família, tem vida depois do horário em que sai dali, temos filhos para levar na creche, para buscar, e outras demandas. A gente tem vida fora disso e tem que estar ali todo dia, produzindo, porque se cair um pouquinho a produção, já tem quem cobra, aquela pressão psicológica, a questão financeira em casa. Acaba prejudicando muito o psicológico. Hoje, o grande mal é a depressão e esse grande empresário não se deu conta ainda de que a hora que não tiver trabalhador, eles também vão estar perdidos.
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‘‘O mundo sindical, assim como a sociedade, é machista’’, diz Jaqueline Erthal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU