21 Março 2023
Defensora Liseane Hartmann: 'Metade das mulheres assassinadas no RS não havia registrado ocorrência contra o agressor'.
A reportagem é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 20-03-2023.
A violência contra a mulher é expressão do patriarcado e tem como origem a construção desigual do lugar das mulheres e dos homens nas mais diversas sociedades.
O Brasil bateu seu recorde de feminicídios em 2022. Foram 1,4 mil mulheres que perderam sua vidas, de acordo com o Monitor da Violência, uma parceria entre o G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É o maior número registrado desde que a lei de feminicídio entrou em vigor em 2015. No ano passado, uma mulher foi morta no país a cada seis horas.
No Rio Grande do Sul, 106 mulheres acabaram assassinadas pelo simples fato de serem mulheres. A taxa de feminicídios no estado (1,8 por 100 mil habitantes) é a sexta maior do país. A média nacional é de 1,3. Desde o início deste ano, de acordo com a lupa feminista, foram 17 feminicídios, sendo duas pessoas trans. Além disso, uma mulher é agredida a cada 22 minutos no estado.
“Somos um povo conservador e machista”, comenta a defensora pública Liseane Hartmann. Também dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública/RS, nesta entrevista ao Brasil de Fato RS ela fala sobre o trabalho da Defensoria, sustenta que a violência de gênero não tem raça ou classe social, diz como é possível socorrer as mulheres ameaçadas e adverte que registrar a ocorrência contra o agressor pode salvar a vida de sua vítima.
O Rio Grande do Sul registrou em 2022, 106 feminicídios e 262 tentativas. Em 10 anos, esse é o segundo ano com o maior índice registrado, ficando atrás apenas de 2018, quando foram contabilizados 116 casos. Como se explica a presença do Rio Grande entre os estados com mais mortes de mulheres?
As agressões às mulheres e os feminicídios (na forma tentada ou consumada) possuem diferentes causas. A violência contra as mulheres é um problema nacional e multidimensional. Somos um povo conservador e machista, salientando-se que as desigualdades de gênero se alicerçam na existência de uma histórica e cultural hierarquia entre homens e mulheres, com primazia do masculino. Além disso, não se pode olvidar que o gaúcho possui uma cultura beligerante que, desde os primórdios da fundação do Estado, defende as fronteiras do território a partir das revoluções que por aqui aconteceram.
Para especialistas e profissionais que atuam no combate a esse tipo de crime, o isolamento social, em razão da pandemia de Covid-19, fez aumentar os delitos cometidos dentro de casa, como agressões, abusos sexuais e feminicídios. Isso teria ocorrido por causa de uma maior proximidade entre vítimas e agressores, além de uma maior dificuldade de realizar denúncias, considerando a dificuldade de sair da residência.
Ocorre que, justamente em razão desta circunstância (isolamento social), houve aumento da divulgação de atos/situações que caracterizam violência doméstica, além de facilitação e ampliação dos acessos para que a vítima e outras pessoas possam realizar a denúncia, como, por exemplo, a Delegacia Online da Mulher e a ampliação da atuação da Patrulha Maria da Penha no estado.
Se, por um lado, temos maior divulgação de notícias e canais de acesso para registro de ocorrências em crimes de violência doméstica, por outro, temos a constatação de que, das 106 vítimas de feminicídios em 2022, 80% não possuíam medida protetiva vigente, e metade delas sequer havia feito o registro de ocorrência contra o agressor. Observa-se, assim, a existência de subnotificação como aspecto a ser considerado na elaboração e execução de políticas públicas e ações que norteiam a atuação do Estado no combate à violência contra a mulher.
Registra-se que a tipificação do crime de feminicídio (ato de matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino por envolver ou violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher) ocorreu apenas em 2015. Só a partir de então, foi possível obter dados mais fidedignos a respeito das mortes contra mulheres.
Ademais, é possível perceber que o agravamento da crise econômica, o aumento do desemprego e da vulnerabilidade acabam ocasionando conflitos nos relacionamentos, aumento da tensão, influenciando também no aspecto psicológico, circunstâncias que possivelmente estão relacionadas ao aumento da violência.
No ano passado, o Rio Grande registrou 50.787 casos de violência contra as mulheres, entre ameaça, lesão corporal e estupro. Como esses números reverberaram no atendimento feito pela defensoria?
O aumento de casos de violência contra as mulheres acaba repercutindo no aumento da procura pelos serviços prestados pela instituição. A Defensoria Pública possui dentre suas atribuições o atendimento de mulheres vítimas das mais variadas formas de violência, buscando ter um olhar social e humanizado, contando com equipe composta por diversos profissionais, como defensores públicos, assistente social e psicóloga.
No ano de 2022, a Defensoria Pública realizou 10.648 atendimentos às vítimas de violência doméstica e familiar em todo o estado.
Além de acompanhar os processos que tramitam nas varas especializadas de violência doméstica, solicitando e fiscalizando o cumprimento de medidas protetivas de urgência, a Defensoria também realiza o ajuizamento de ações de divórcio, dissolução de união estável, alimentos, guarda e indenizatórias, entre outras, assim como encaminha mulheres para casas de abrigamento, quando necessário.
Realiza-se, ainda, trabalho extrajudicial, com projetos e palestras em educação em direitos que incentivam a reflexão com o agressor, a fim de evitar a reiteração de atos de violência. E também parcerias com instituições da sociedade civil e outros órgãos públicos, elaborando projetos e cursos que auxiliam as mulheres no ingresso no mercado de trabalho, além de oportunizar cursos de capacitação, buscando o empoderamento financeiro, considerando que a dependência financeira em relação ao agressor é o segundo principal motivo para o não rompimento do vínculo, o primeiro, é o medo do ofensor.
O papel da Defensoria é ouvir, orientar, incentivar e auxiliar as mulheres a realizar a denúncia, buscando medidas para que se mantenham afastadas do ofensor, contribuindo, assim, para a redução dos casos de violência.
Muitas vezes, a vítima quer desabafar mas para uma profissional que não seja do direito
Quem são as mulheres que procuram a Defensoria? É possível traçar um perfil das mulheres que sofrem violência no estado?
A vítima de violência doméstica não tem questão da raça, social. Independente da situação financeira, todas as mulheres podem ser vítimas de violência doméstica. Uma questão importante de destacar é que na Defensoria Pública trabalhamos com a questão do critério financeiro via de regra. Mas na questão da violência doméstica da vítima, o que se trabalha é a questão da vulnerabilidade.
Independente da situação financeira, a vítima vai ser atendida. Também contamos com o apoio de uma assistente social e duas psicólogas, que podem conversar com a vítima, ter esse primeiro contato. Muitas vezes, a vítima quer desabafar e contar da sua vida mas para uma profissional que não seja do direito. Então tem essa possibilidade. O que percebemos muito é a necessidade de empoderamento da vítima. Para ela se sentir em condições de lutar contra toda essa violência, e conseguir romper esse ciclo.
A que atribui a violência contra as mulheres e porque, apesar das campanhas, não se consegue diminuir os casos?
A violência contra a mulher é expressão do patriarcado e tem como origem a construção desigual do lugar das mulheres e dos homens nas mais diversas sociedades. A desigualdade de gênero é a base onde todas as formas de violência e privação contra mulheres estruturam-se e perpetuam-se.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) é um importante avanço no que se refere à proteção da mulher, cujo objetivo principal é coibir atos de violência doméstica contra a mulher e prever punição adequada ao ofensor.
Todavia, são necessárias políticas públicas que proporcionem às mulheres a segurança necessária para que possam realizar as denúncias e tenham o devido acolhimento após o registro da ocorrência, podendo contar com uma rede de apoio que compreenda atendimento psicológico, assistencial e jurídico.
Além disso, as mulheres precisam contar, se necessário, com casas para abrigamento que lhes proporcionem ambiente seguro para permanecer com seus filhos até que encontrem outro local para morar. Também precisamos pensar em proporcionar trabalho e profissionalização para que as mulheres possam alcançar independência financeira, de modo a fortalecê-la para que consiga romper o ciclo de violência.
A violência psicológica, que faz parte do dia a dia, as pessoas nem percebem.
Fizemos recentemente uma matéria sobre de onde vem a violência e as fontes destacaram também as questões do machismo e do patriarcado. Ano passado, em entrevista com a juíza Taís Culau, ela afirmou que “as mulheres continuam a ser mortas somente por serem mulheres”...
Sim, eu concordo em relação a situação de que nós temos a questão patriarcal, a questão do machismo, mas também o que eu percebo é a necessidade de a vítima identificar esse agressor porque muitas vezes convivemos com isso. Nossas famílias culturalmente já assimilaram que isso, digamos, seria uma relação “normal”, uma situação corriqueira que pode acontecer, quando, na verdade, muitas situações acabam caracterizando a violência. E há sim uma situação de violência doméstica e familiar.
Temos diversos tipos de violência. A violência psicológica que, muitas vezes, acaba fazendo parte do dia a dia, as pessoas nem percebem, a violência física, a violência sexual. A questão do relacionamento, da relação sexual consentida e que seja realmente o desejo da vítima, que não seja nada forçado, a violência patrimonial. São diversos tipos de violência, e penso que há necessidade sim de a vítima conseguir identificar a pessoa com quem ela tem um relacionamento, e aí perceber se ela está diante de uma situação de violência ou não.
Uma outra questão é em relação as medidas protetivas. De acordo com a delegada Cristiane Ramos, de cada 10 mulheres que morrem, oito não têm a medida protetiva...
A Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas que podem auxiliar essa mulher durante esse período da violência. É importante que a mulher faça esse pedido, seja na delegacia de polícia, seja em delegacia especializada à mulher ou não, nas delegacias online, na Defensoria Pública.
Não há necessidade de fazer o registro de ocorrência, não há obrigatoriedade do registro para que se solicite uma medida protetiva, mas que a mulher faça essa solicitação para que ela possa estar amparada. O juiz analisa esse pedido e decide em prazo máximo de 48 horas.
Essa vítima tem que saber que está protegida, que pode procurar uma casa de abrigo, um auxílio, e também fazer com que essa medida se cumpra. E, ela fazendo a comunicação, se eventualmente o agressor se aproxima ou descumpre uma medida protetiva, pode ocasionar a sua prisão. É necessário que ela também informe a defensoria, informe o poder judiciário, para que possa se resguardar.
Não é apenas a questão de conceder a medida. É fazer com que ela continue vigente durante o período em que for necessário. Não há na legislação um período máximo de vigência, mas sim enquanto a situação perdurar.
A maior causa que mantém a vítima sob a violência é o medo. E a segunda é a dependência financeira.
Há também medo da mulher fazer a denúncia...
Sim, e aí nós destacamos a importância de incentivar a mulher a fazer a denúncia. É com isso que vamos saber o que realmente está acontecendo e quais são as medidas a serem tomadas.
Aí vem a importância também de se ter uma rede de proteção ativa. Para que essas mulheres possam tomar essa decisão, que é muito difícil para elas, e possam manter esse propósito de ficarem afastadas do agressor.
A maior causa que faz com que a vítima se mantenha (sob) a violência é o medo do agressor. E a segunda maior causa é a dependência financeira. Essa questão de dependência, tanto ela quanto os filhos, muitas vezes faz com que ela não consiga sair desse relacionamento.
A Defensoria Pública trabalha com a questão de buscar oportunizar, e com isso fazer termos de compromisso com a sociedade e instituições, no sentido de proporcionar um trabalho para a vítima, uma renda, para que possa ter independência financeira.
Agora estamos trabalhando com um projeto, que se der certo, terá bom êxito. Vai proporcionar cursos técnicos profissionalizantes para as vítimas. Para que possam conseguir essa tão almejada independência, para que possam então se sentirem mais seguras em relação a vida em geral. Estamos ainda na parte da documentação.
Essa questão da rede proteção é um ponto que os movimentos sociais destacam: o enfraquecimento e desmantelamento da mesma.
Solicitei uma pesquisa para verificar todas as casas de abrigo do estado. Sabemos que as casas de abrigamento são temporárias para que se possa minimamente estruturar a vítima. Para que ela ou saia da residência ou consiga, junto a parentes ou amigos, afastar-se do agressor.
Aí também vem a questão do trabalho multidisciplinar. Essa vítima precisa de apoio psicológico para que possa se estruturar, conseguir resistir aos constantes contatos do agressor. Porque sabemos que, muitas vezes, não basta a primeira negativa por parte da vítima. Ela tem que manter aquele propósito de ficar afastada. Daí a importância do acompanhamento psicológico, a importância da assistente social também se fazer presente para poder ajudá-la com benefícios assistenciais. E a rede de proteção: contar com o atendimento jurídico da Defensoria, do Ministério Público, enfim, toda a rede organizada.
E também tem a questão do financiamento, que é outro gargalo.
Todo esse trabalho depende da questão financeira. De destinar recursos para que essa rede de proteção se mantenha. E sabemos da questão da dificuldade financeira como um todo. Vemos o trabalho de alguns setores, de alguns poderes, que buscam incentivar, criar incentivos e benefícios para as vítimas de violência. Mas com certeza é necessário um investimento maior nessa área.
Falando em projetos há, tanto em nível federal quanto estadual, os que tratam, sobre os órfãos do feminicídio, que é outro ponto também...
Sim, é outro ponto. Trabalhamos a questão do prejuízo imediato, prejuízo direto, e também do prejuízo indireto, mas mais amplo. A Defensoria também pretende com o projeto que, possivelmente nos próximos meses, já estará vigente, criar um centro de atendimento junto ao fórum central aqui em Porto Alegre, para atender os órfãos dessas mulheres que infelizmente vieram a falecer. Para entrar com variadas ações, buscar, se for o caso, ações indenizatórias, e outras ações relacionadas ao direito de família.
Vemos um prejuízo que vai muito além da vítima. Envolve todo o círculo familiar, os filhos diretamente atingidos, muitos filhos menores que dependiam dessa vítima. É necessário esse olhar mais amplo sobre a questão.
Quando falamos da violência contra as mulheres, ela vai muito além da doméstica...
Além das violências previstas na Lei Maria da Penha, temos a violência institucional que, muitas vezes, ocorre no serviço público praticada e, muitas vezes, (praticada) por um agente público.
Como Defensoria, temos o núcleo de execução penal, o Nudep, onde procuramos identificar se ocorre alguma situação inclusive em presídios ou em unidades de internação. Também temos a questão de outras unidades onde as pessoas estão recolhidas, presas ou em cumprimento de medida socioeducativa. Em todas essas situações pode ocorre a violência institucional.
E temos a violência obstétrica. A Defensoria foi bastante consultada sobre a situação em que as vítimas procuravam o hospital para o parto e não podiam ter o direito ao acompanhante. Não era observado o direito ao acompanhante. Fizemos uma recomendação para que se observasse, dentro do possível, a garantia dos direitos mínimos para que a mulher possa ter um acompanhante durante o parto, logo após o parto.
Faça contato conosco e, cada vez mais, busque romper esse silêncio.
Como e quando a mulher tem que procurar a defensoria?
Pedimos que, nos primeiros sinais de violência, ela procure esse apoio. Ela pode contar com o apoio da Defensoria Pública pelo Núcleo de Defesa da Mulher, que é o Nudem. Pode contatar conosco pelo telefone (51) 3210-9376. Também pode enviar um e-mail para o endereço Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
Em todo o estado a Defensoria conta com agentes com atuação em todas as comarcas. É possível, através do site da Defensoria, acessar, colocar o local onde a vítima se encontra e buscar qual o defensor ou a defensora que pode atendê-la. Também tem o Núcleo dos Direitos Humanos que também é uma forma de contato.
Uma mensagem final?
A mensagem que eu gostaria de deixar é no sentido de que sabemos das dificuldades que a mulher enfrenta, dessa cultura machista e de desigualdade. Mas que ela realmente busque apoio, que se sinta acolhida, que consiga perceber a violência que está acontecendo. E que conte com o apoio de amigos, parentes e conte com o apoio da Defensoria Pública. Faça contato conosco e, cada vez mais, busque romper esse silêncio. Que faça com que essa notícia chegue às pessoas que possam auxiliá-la. Evitar que o mal aconteça no início do problema. E não deixar que a situação acabe se agravando e, aí, fique mais difícil o rompimento desse ciclo.
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80% das 106 vítimas de feminicídios no RS não tinham medida protetiva em 2022, diz defensora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU