25 Novembro 2007
Com o dólar em constante desvalorização, o mercado exportador de calçados do Vale do Rio dos Sinos continua em crise. Além disso, concorrer com a produção massificada de calçados chineses agravou ainda mais a situação. No entanto, as empresas que também focavam no mercado interno cresceram, aumentaram sua produtividade, seus lucros e investimentos, incluindo aí a contratação de mão-de-obra especializada. O Rio Grande do Sul é conhecido pela qualidade e criatividade e por agregar o valor moda aos seus calçados, mas isso não assegurou que as indústrias calçadistas se desenvolvessem aqui. Muitas seguiram para o Nordeste do País, a fim de encontrarem mão-de-obra diferenciada, massificando também a produção. “Quanto mais a indústria do calçado puder levar a fábrica para o interior, melhor”, conta Ênio Klein, diretor da Abicalçados, na entrevista à IHU On-Line, realizada pessoalmente.
Ênio Erni Klein, atualmente, é diretor executivo e consultor de inteligência comercial da Abicalçados, órgão que tem como objetivo a defesa das políticas do setor calçadista nacional. Com larga experiência no setor calçadista nacional, é membro do “Leather Panel” da UNIDO - Organização das Nações Unidas para Desenvolvimento Industrial, com participação em reuniões técnicas em países como Áustria, Egito, Hungria, Itália e México. É autor de obras como Mercado Internacional para Calçados (Brasília: AEB, 1972) e Competitividad en la Industria de Calzados (Santiago: CEPAL, 1991).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o panorama atual da indústria de calçados brasileira?
Ênio Klein – A indústria brasileira e os fundamentos da nossa indústria de calçados são muitos bons. Tanto é verdade que nós temos mais de mil profissionais do Vale do Rio dos Sinos trabalhando na China. Então, nós temos os fundamentos, a base. A escola de curtimento que existe em Estância Velha é do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e tem quase 50 anos. A escola do calçado, em Novo Hamburgo, já tem 60 anos. Essas escolas vêm sendo aprimoradas e passaram a agregar o fator design e moda à técnica. Eu estive, recentemente, na China, em Beijing. Fui visitar uma escola do calçado, e os trabalhadores queriam saber o que nós fazíamos na nossa escola, como nós ensinávamos moda aos nossos alunos. Porque isso eles não têm; eles só produzem para grandes grifes estrangeiras. Então, esse é o nosso nicho para vender sapato.
IHU On-Line – A indústria do calçado voltou a crescer. A crise, causada pelo câmbio do dólar, acabou?
Ênio Klein – O problema com o câmbio afeta aquela empresa que apenas exporta. Se não fosse o câmbio, nós estaríamos com muito mais produção e exportação, sem dúvida alguma. A crise ainda não acabou porque ainda há algumas empresas em que a exportação representa de 40 a 60% da sua produção. A crise realmente existiu, é forte e ela continua naquelas empresas que ainda não fizeram uma reconversão. Porque o ideal, isso inclusive poderia ser dito não apenas em relação ao setor calçadista, é nunca se concentrar apenas em um só mercado. Teoricamente, em termos de comércio internacional, principalmente considerando o enorme potencial do mercado brasileiro, o ideal também seria que as fábricas não exportassem mais do que 25% da sua produção. Claro que isso não se define assim tão simplesmente. Afinal, cada fábrica tem o seu caso e pode aproveitar oportunidades. Por exemplo, o câmbio pode melhorar, e a fábrica ganha mais dinheiro na exportação. O que acontece é realmente a busca da rentabilidade. Se o câmbio está favorável e a fábrica recebe mais reais pelos dólares, ela vai se dedicar mais à exportação. Por que não? Cada um precisa buscar a sua rentabilidade. Então, o que nós estamos assistindo hoje é realmente uma dificuldade, porque não é tanto o real que se fortaleceu, mas sim se agravou a crise do dólar, como moeda internacional de troca. Esse dado está muito forte ainda nos jornais, ontem e hoje, com a crise internacional, em que até os países produtores de petróleo não desejam mais vender o petróleo em dólar, mas em outra moeda. Os bancos centrais do mundo, que têm as suas reservais em dólar, estão querendo transferir parte das suas reservas para outras moedas fortes. Então, na verdade, essa crise monetária afeta principalmente a empresa que exporta mais.
Nós temos empresas que apresentam dificuldade, mas compensam essa perda de rentabilidade, de ganho no mercado externo, com o mercado interno, que este ano está bom. O mercado brasileiro de calçados deve aumentar esse ano de 2007 em relação ao ano passado, ou seja, no momento em que o País aumenta sua renda. Nesse ano, o Brasil deve chegar a um PIB (Produto Interno Bruto) perto de 5%, aumentando também o consumo de calçados. Isso é também um fenômeno de que os economistas chamam de elasticidade, demanda renda, ou seja, a renda aumenta e com isso a venda de certos produtos também, e as pessoas passam a comprar mais. É claro que isso chega a um certo ponto em que não é pelo fato de a pessoa ganhar mais que ela irá comprar mais sapatos. Esse ponto se nivela mais ou menos em seis pares por habitante por ano, que é o nível dos países ricos. O Brasil está na faixa de três pares por habitante por ano.
À medida que aumentar a renda brasileira, nós temos chance de aumentar o consumo per capita de cada brasileiro. Isso é o que aconteceu nesse ano de 2007, em que possivelmente nós passemos a um consumo de 3,1%, somado pela população de 184 milhões de pessoas. Ou seja, isso representa um aumento na produção de pares. O mercado interno deve absorver aí uns 600 milhões de pares, o que é bom em termos mundiais. Esse consumo nacional é que fortalece a nossa indústria, dá força para inclusive vender sapatos no exterior. E as fábricas do Vale do Rio dos Sinos que estão melhor posicionadas são aquelas que têm uma boa distribuição, ou seja, vendem 70% no mercado brasileiro, 15% na América Latina e, pelo menos um pouquinho, nos países árabes. Essa ampliação de mercado foi muito importante nos últimos cinco anos. Quer dizer, nós estamos perdendo exportação nos Estados Unidos e distribuindo por todo o mundo, vendendo um produto com design, um look brasileiro, uma idéia, uma criação própria, aliada a uma marca. Então, trata-se de um produto aliado a uma nova distribuição em que se procura vender direto ao lojista, sem um intermediário, como era o modelo anterior de exportação feito só para os Estados Unidos.
IHU On-Line – Qual foi a diferença de investimento e de foco das empresas que cresceram neste ano e das empresas que realmente quebraram?
Ênio Klein – O investimento justamente é a parte mais difícil. Ele envolve a passagem relacionada ao crescimento no mundo hoje dos valores intangíveis, que é a moda, a marca. Desse modo, a partir de um certo momento, o sujeito precisa deixar de ser sapateiro para ser empresário; de empresário ele tem que passar a ser um homem de marketing, de mercado. Assim sendo, os investimentos são muito maiores naquilo que nós vemos pela rua, como os outdoors, do que propriamente numa máquina, ou seja, é preciso saber dosar. Quando tal característica aumenta, como a indústria de perfumes, que gasta até 15% dos seu faturamento com publicidade, ela, inevitavelmente, começa a atingir o setor calçadista. Cada vez mais, é destinado um valor para a distribuição, para atingir o consumidor, para atingir o mercado e criar aquilo que se chama o valor da marca, ou seja, o valor que ela apresenta no mercado e para a qual os calçadistas aqui da região, e do Brasil como um todo, têm conseguido dar atenção e fazer investimentos. É claro que se trata de um investimento muito difícil de se avaliar, porque nunca se sabe exatamente qual é a promoção que deu certo. Para isso, é vital expertise. É preciso também preparar o pessoal e, por isso, nós trabalhamos essa questão interdisciplinarmente. O sujeito agora entende de mercado, do consumidor, de psicologia. Todos esses elementos mostram uma complexidade do mundo contemporâneo que toma conta também do setor de calçados.
IHU On-Line – Como é relacionamento entre o fabricante e sua equipe de trabalho, no Rio Grande do Sul e em outros países?
Ênio Klein – A produção em massa, a tradicional conseqüência da Revolução Industrial, é aquela imagem que temos do final do século XVIII ao início do século XIX, que é a imagem da exploração do homem, de contratar as pessoas, assim como se compra matéria-prima, sem nenhum relacionamento. Cada vez mais, essa característica aumenta. Aqui no Vale do Rio dos Sinos, em geral, há um bom relacionamento entre o fabricante e a sua equipe de trabalho. Coisa que não acontece na China, onde simplesmente há uma contratação de milhares de operários para produzir em massa, não havendo uma identificação. O próprio dono da fábrica não tem identificação nem com o cliente, pois ele simplesmente produz para um terceiro: ele é um terceirizado, um empreiteiro de mão-de-obra. Como nós chegamos a ter na década de 1980, os estadunidenses vieram com tantos pedidos que a empresa simplesmente ia comprando mais máquinas, colocando na fábrica e empregando mais pessoas. E isso foi o que causou a primeira crise.
Esses mesmos estadunidenses que compravam aqui se transferiram para a China. Como a indústria de calçados é uma indústria de manufatura leve, acaba empregando muita mão-de-obra e as máquinas não são caras, pois há uma sucessão delas. Isso aconteceu ao longo dos anos, da Europa do Norte foi para a Europa do Sul, da Europa do Sul foi para a África do Norte, e, então, para a China. Nós aqui estamos nesse processo. Houve transferência de produção para o Nordeste. Se olharmos hoje, temos fábricas, marcas, empresas que deixaram de produzir no Estado e passaram a produzir no Nordeste, tanto que o Ceará é o segundo maior exportador brasileiro de calçados. O que, do ponto de vista social, talvez não seja ruim que tenha acontecido, porque nós teríamos tido um problema de urbanização muito grave.
No início dos anos 1990, por exemplo, houve um momento em que o prefeito de Novo Hamburgo chegou a ir à televisão e pediu para que não viessem mais trabalhadores da Serra Gaúcha para se estabelecer na periferia da cidade. Realmente, se a exportação tivesse continuado como foi nos anos 1970, 1980, nós teríamos uma crise com favelas, ocasionando um problema populacional urbano. Com a formação desses núcleos urbanos, Novo Hamburgo teria hoje não 250 mil habitantes, mas em torno de 600 mil, o que seria um grave problema. Então, até foi bom dar uma estancada nessa vinda de trabalhadores de fora.
IHU On-Line – Então, a saída é em busca por um outro tipo de mão-de-obra?
Ênio Klein – Eles foram em busca mesmo de mais mão-de-obra, sobretudo do interior, porque a fabricação de calçados é muito intensiva. Nesse sentido, é preciso muita mão-de-obra, porque existem certas operações que são impossíveis de mecanizar ou automatizar. É preciso cortar, costurar, juntar as partes. Então, nunca houve possibilidade de eliminar totalmente a mão-de-obra na produção de calçado, diferentemente do que acontece, por exemplo, com a indústria de automóvel. Então, sempre há essa busca de uma mão-de-obra laboriosa. A melhor para o calçado é daquele sujeito que deixou do cabo da enxada e foi trabalhar numa fábrica, porque, para ele, isso é uma grande promoção, assim como na China. As moças de lá que estão trabalhando nas fábricas estão muito satisfeitas, porque deixaram de ficar o dia todo com água até a cintura plantando arroz para ficarem trabalhando numa máquina de costura. Então, para elas, essa mudança representa uma promoção. Se nós olharmos a configuração do Brasil, nós vamos verificar que o antigo colono alemão foi o primeiro trabalhador na indústria do calçado. Lá em Franca, era o cara que colhia café e foi fazer calçado. Em Birigui, é o sujeito que deixa de plantar cana-de-açúcar e vai para dentro de uma fábrica de calçado. No Nordeste, é o sujeito que morava no interior plantando algodão.
Está é a melhor mão-de-obra para a indústria de calçados. Isso é universal, porque a indústria de calçados não oferece uma oportunidade de ascensão como profissional ao trabalhador urbano que tem mais ambição. Se a pessoa entra numa fábrica de calçados, ela será costureira. A tendência é que, ao longo de todo tempo que estiver lá, ela será sempre costureira, a não ser que seja contra-mestre da costura, recebendo uma promoção. A pessoa que trabalha na indústria de calçados não têm, dentro da fábrica, uma oportunidade de realização como ser humano. Então, ela precisa se realizar fora, na comunidade, na igreja, no grupo de bocha, no coral, no futebol, numa hortinha, criando galinhas. Outra característica também é que, na indústria de calçados, o trabalhador não pode perder muito tempo, porque tudo é intensivo. Nesse sentido, é preciso prestar muita atenção nos detalhes, e a concentração, conseqüentemente, precisa ser grande. Então, não pode pegar um ônibus que leva uma hora e meia para aí chegar para trabalhar. Por isso, esse profissional da indústria do calçado é aquele que vai a pé, de bicicleta. Desse modo, as fábricas se localizam em cidades, em núcleo no interior, onde o trabalhador vive muito perto delas. Ele não pode pegar um ônibus no bairro de Canudos e ir trabalhar no centro de Novo Hamburgo. Isso não existe. Por isso, a indústria do calçado se desloca para o interior, sempre em busca de grandes contingentes de mão-de- obra.
IHU On-Line – A Azaléia, que produz um produto mais popular, seguiu para o Nordeste e para a China, mas, ao mesmo tempo, temos empresas que continuaram aqui no Estado, como a Arezzo, West Coast, que são conhecidas por um produto de mais qualidade, mais moda...
Ênio Klein – Olha, eu acredito que deve ser mais ou menos igual. Mas os produtos que exigem moda são feitos aqui no Rio Grande do Sul. Os produtos mais standard, que não sofrem tanta variação, como o tênis, são feitos na Bahia, porque o modelo dura o ano todo, diferente de uma sandalinha feminina, que muda constantemente, conforme a estação. Eles adaptam, procuram adequar essa questão de produzir no Nordeste e produzir no Vale do Rio dos Sinos em função de moda e tipo de modelo. Toda a produção da Arezzo é feita aqui porque é sabido que nós temos a mão-de-obra mais refinada, que conhece melhor o produto. Seguramente, aqui os pagamentos feitos são melhores, nossas costureiras têm níveis de salário mais altos do que as de outros lugares. E o próprio conceito de produção e de inovação das linhas, da modelagem, tem mais qualidade aqui no Vale. A Alpargatas, que fez aqui na Scharlau (bairro da cidade de São Leopoldo) o seu centro de desenvolvimento, é um exemplo disso. Ela produz tudo lá na Paraíba, mas o desenvolvimento de produto e toda a inovação são feitos aqui no Vale do Rio dos Sinos.
IHU On-Line – Qual é o papel das universidades daqui da região nesse segmento de moda para o calçado?
Ênio Klein – Ele é muito importante. As universidades não têm algo específico para o calçado. Mas os cursos de Comércio Exterior, de Administração, de Publicidade e Propaganda e de Engenharia de Produção contribuem para o desenvolvimento da indústria. Já em São Paulo, no ano passado, em Jaú, pela primeira vez uma universidade pública criou um curso de Gestão de Produção de Calçados. E a área do design é outra muito importante. Está crescendo, aliás, a formação nessa área no Brasil. Sem dúvida, isso irá contribuir, pois sempre se precisa de novos talentos, porque a segunda geração precisa estar em condições como a primeira. E o calçado é um produto que exige paixão para ser produzido. Nesse sentido, todos - donos de fábrica ou modelistas - precisam gostar de criar algo.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a atuação dos sindicatos durante essa crise mais recente?
Ênio Klein – Foi muito positivo, principalmente a informação que eles têm sobre a China e a consciência de que não poderiam fazer uma reivindicação absurda, porque estariam provocando mais crise ainda. Então, tenho a impressão de que os aumentos salariais, os dissídios, têm sido feito dentro de um clima de cordialidade. Acredito que já houve momentos mais difíceis de relacionamento. Existe, portanto, no momento, a compreensão dos sindicatos de que não podem exigir um aumento exagerado acima da inflação, à medida que isso iria apenar agravar, a médio e a longo prazo, a situação do setor. É claro que os aumentos precisam ser propiciados pelo aumento da produtividade. O Vale do Rio dos Sinos, do ponto de vista de gestão de fábrica, na produção de calçados do Brasil, tem uma das melhores do mundo, sobretudo no que se refere à questão de produção.
IHU On-Line – As empresas que focavam na exportação, tiveram problemas e, com isso, demitiram pessoas, fizeram o desemprego, na região do Vale do Sinos, aumentar. Mas o mercado interno cresceu. Como está o desemprego na região hoje? Qual é a previsão de emprego no setor calçadista no ano que vem?
Ênio Klein – O mercado interno absorveu bastante. Os funcionários demitidos após a crise da Reichert foram reacomodados em outras empresas. Eu acredito que o próximo ano traga muitos empregos. É claro que aumentará, com isso, também o número de oportunidades na indústria de componentes e afins para o setor. Há uma oportunidade de ampliação no setor de empregos que são melhor remunerados. Isso tudo tem provocado uma estabilidade no Vale dos Sinos. Se houver uma reversão, outras regiões irão acompanhar e crescer mais do que aqui, porque o Vale não tem muito espaço, isto é, núcleos habitacionais para crescer. Um crescimento novo e forte, como tivemos nos anos 1980, precisaria ser acompanhado pelo poder público, no sentido de oferecer espaços de moradia mais compatíveis, a fim de que o pessoal que fosse trabalhar na indústria de calçados não ficasse mal alojado.
IHU On-Line – O Vale, então, não tem mais como crescer?
Ênio Klein – Crescer sempre precisa ser nosso objetivo. Mas o crescimento pode significar que se continue com a fábrica aqui no Vale, mas se aumente o número de filiais, ou seja, tentando manter o homem perto da sua moradia. Essa é a grande contribuição que a indústria do calçado pode dar ao desenvolvimento do País, pois ela evita que as pessoas saiam do interior, por exemplo, de Frederico Westphalen, e venham para Novo Hamburgo. Se fizer isso, ela perde contato com a sua comunidade, com a sua igreja, com seus amigos, com seus vizinhos e vem morar mal na cidade, em condições precárias. Em suma, a pessoa fica desenraizada. Portanto, quanto mais a indústria do calçado puder levar a fábrica para o interior, melhor.
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A crise da indústria calçadista do Vale do Rio dos Sinos acabou? Entrevista especial com Ênio Klein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU