18 Janeiro 2023
"Eles tentaram no dia 8 de janeiro de 2023, mais uma vez, impedir que o Brasil seja planejado para mais que 30% da sua população. O que viram subir a rampa do Palácio na tarde do dia 1º de janeiro, foi a realização de seu maior pesadelo: excluídos incluindo-se", escreve Severino Vicente da Silva, teólogo, historiador, mestre e doutor em História do Brasil pela Universidade Federal de Pernambuco, em artigo publicado por Biu Vicente, 12-01-2023.
Severino Vicente é autor dos livros Zumbi dos Palmares, A Igreja e a questão agrária no nordeste, A Igreja e o controle social nos sertões nordestinos (Edições paulinas), Festa de caboclo, (Editora Associação REVIVA). Entre o Tibre e o Capibaribe: os limites da igreja progressista na arquidiocese de Olinda e Recife (Editora da UFPE – REVIVA).
Pouco tempo após a eleição ser definida em favor do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, Eduardo Hoornaert escreveu em seu blog que a derrota do ex-presidente pouco dizia, uma vez que o bolsonarismo crescera e criara raízes nas diversas instâncias do Estado brasileiro, e na mente de muitos cidadãos. O mal estava instalado, era um elefante na sala (disponível aqui).
Enquanto isso o ano de 2023 começava com uma festa pelo retorno de Lula à sede do governo, com todos os simbolismo e promessas de um futuro mais próprio para a diversidade brasileira, gente comum representando gente comum subindo a rampa do palácio para, em gesto inusitado, colocar a faixa presidencial no novo governante. Parecia a realização do sonho de Darcy Ribeiro.
O antigo presidente recusara realizar o gesto que significaria mais um passo na direção de quebrar o monopólio do poder que esteve sempre, explicitamente, nas mão de um pequeno grupo; o antigo presidente sempre fez parte do grupo que pretende perpetuar o Estado baseado no projeto de fazer uma nação sem povo; após quatro anos no governo, ele e seus companheiros e seguidores, não conseguiam entender, como ainda não conseguem, porque razão havia sido rejeitado. De longe assistiram a posse dos novos/antigos adversários, a quem definiram como inimigos. Não muito distante dos festejos, continuaram a se fortalecer para, na semana seguinte tentar de surpresa mostrar a extensão de seu poder.
Enquanto os novos governantes ainda não se entendiam no todo e mostravam fragilidades desnecessárias, e uma confiança exagerada de que aqueles que garantiram a doutrinação para a aceitação do fortalecimento da estrutura que sempre pautou o comportamento da elite governante brasileira aceitassem ser parte secundária na política. Enganaram-se, pois os ninhos da seita estavam repletos e os filhotes eram alimentados nas átrios das pretendidas novas catedrais, como provavam as atitudes dos ‘cardeais’ que se recusaram a entregar o comando de suas tropas. Ali estava gritando o sinal da sublevação, da ignomínia e da traição à Constituição Cidadã. E então no oitavo dia do ano veio o dilúvio com o qual pretendiam afogar a democracia, a possibilidade de o povo brasileiro tentar apontar outro caminho para uma nação que ainda não se formou plenamente. Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 expõem que a elite econômica do Brasil, aliada aos militares, se recusa a ser protagonista de uma proposta social que acolha todos os ramos formadores da humanidade. A exclusão parece ser o afã de sua existência.
A existência humana não pode ser explicada apenas por uma tensão binária, tampouco a história dos homens. Jacques Monod explica que a ocorrência da vida teria sido um acaso, um acontecimento fortuito, mas, um vez instalada, é a necessidade de manter-se viva que permite a continuidade da vida. Falava-se que os portugueses teriam chegado a essa terra que denominamos Brasil, por acaso, no ano de 1500. Essa foi a primeira maneira de desqualificar um dos nossos antepassados, negando-lhes o reconhecimento de seus estudos para o domínio dos mares, na construção naval, no domínio das ciências, enfim.
Essa percepção negativa que foi construída sobre os portugueses e sua cultura, parece ter sido resultante das explicações proclamadas pelas nações da Europa Setentrional, que tardiamente seguiram os caminhos abertos pelos lusitanos, a partir de meados do século XVII, na demonização da cultura barroca católica em face de uma pretensa separação da religião protestante em relação ao Estado. Tal explicação levou gerações a acreditarem que todo o processo de destruição dos povos originários desse continente que hoje chamamos América, teria sido realizado pelos iberos.
Quando menino e adolescente, tive aulas nos cinemas para nos convencer que os matadores dos Dakotas, dos Chayenes, dos Pés-Pretos, dos Navajo eram heróis fundadores, enquanto os padres jesuítas eram vilões destruidores de nações. Só recentemente é que europeus não iberos começaram a ser vistos como comerciantes de africanos escravizados, eram mostrados apenas os criadores das ligas antiescravistas. Os europeus que, bem ou mal, mesclaram com indígenas ou africanos passaram a ser vistos como inferiores, assim como seus descendentes.
Foi com este preconceito contra si mesmo que o Brasil veio sendo construído desde a separação política de Portugal. E o ensinamento que os povos indígenas eram traidores, mentirosos, preguiçosos, antropófagos, etc. Dos negros africanos e seus descendentes diziam que eram lascivos, preguiçosos, só trabalhavam sob chibata, indolentes e sem religião, como diziam também dos povos indígenas. E aprendemos isso, e naturalizamos essa situação, nos livros, nas escolas, nas igrejas e nas delegacias. Por isso sempre pareceu tão fácil à elite dominar e manter seu poder. Mas estou pensando mais claramente na elite que se firmou especialmente após 1870, embranquecida pela chegada de europeus excluídos do sistema industrial, cuja inclusão foi bastante facilitada pelos que aqui já haviam se alojado.
Foi fácil para eles criar uma República excludente, como escreveu um dos seus líderes, os que não concordavam em algum ponto foram massacrados e depois elogiados como sendo “antes de tudo, um forte”; foi fácil convencer que o golpe de 1930 foi uma “revolução”; também foi fácil convencer várias gerações que o que seus avós lutaram para conseguir, foi um agrado dada por um estancieiro que governou o Brasil como dirigia a sua fazenda. Ainda há professores que ensinam que a CLT foi uma doação de Getúlio Vargas retirando o protagonismo de operários que construíram parte de São Paulo no início do século XX, depois vieram “os do Norte” e completaram o serviço.
Mas, como a dinâmica da História não é bipolar, as elites viram-se forçadas a permitir alguma participação do povo, aprovando o voto, desde que a pessoa fosse alfabetizada, assim se excluía 70% da população. Claro que não foram construídas escolas para o povo, mas o povo construiu escolas para si. E começaram a votar e indicar caminhos para o país, e esses caminhos foram sendo obstruídos. O Recife foi a última capital a eleger seu prefeito e, uma vez eleito, tomaram providência para impedir que ele atuasse. Em 1964, afastaram do poder um presidente eleito, conseguiram o golpe impedido em 1954 e 1961. Desde o tempo do primeiro imperador eles sempre querem um poder moderador, alguém que acima das leis represente aqueles que fazem leis para os favorecer e impedem a participação da maioria.
Eles tentaram no dia 8 de janeiro de 2023, mais uma vez, impedir que o Brasil seja planejado para mais que 30% da sua população. O que viram subir a rampa do Palácio na tarde do dia 1º de janeiro, foi a realização de seu maior pesadelo: excluídos incluindo-se. É que a vida, o desejo de viver, é assim pode vir por um acaso mas, depois que se instala começa o tempo da necessidade. Os que estão no reino da necessidade de comer, de vestir, de morar, precisam responder a essas necessidades, e a necessidade de participar. Falta muito, mas chegaremos lá, faremos a humanidade, diversa e colorida, incluir a todos. Como disse Sônia Guajajara: Sem nós nunca mais.
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Sem nós, nunca mais. Artigo de Severino Vicente da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU