"Se o Desmatamento Zero vai colocar Lula em enfrentamento com o agronegócio, o Fome Zero arrisca de ter o mesmo efeito. Não se pode pedir aos agricultores familiares a solução da oferta de alimentos para os milhões que passam fome, não a curto prazo. Eles poderão ter um papel importante, mas quem pode responder rapidamente ao aumento de demanda de alimentos é o agronegócio", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-1971), fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASPTA), membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
Quais as decisões mais importantes para que o novo governo cumpra o seu papel possível? Vou elencar algumas delas e discutir as dificuldades prováveis.
A primeira promessa do Lula não foi só para os brasileiros, mas para o mundo: o desmatamento zero em todos os biomas, promessa feita, ao lado de Marina Silva, em Sharm-el-Sheik, no Egito, dias após a eleição. É algo de fundamental para nós e para o futuro da humanidade, no esforço de conter o aquecimento global. Depois de anos de queimadas e desmatamentos em escala gigante, vai ser um duro enfrentamento conter a fúria destruidora do agronegócio. Em vários biomas isto pode ser conseguido por medidas de controle administrativo, mas vai ser necessário alterar algumas das legislações vigentes para eliminar o desmatamento e queimadas que são admitidos legalmente. Estas mudanças legais vão encontrar uma forte resistência no Congresso, onde a bancada ruralista tem o maior peso. Por outro lado, vai ser preciso estabelecer restrições ao acesso a crédito público aos desmatadores e isto está ao alcance do executivo. As pressões internacionais limitando as compras de produtos oriundos de áreas desmatadas vai colaborar, inclusive a nova legislação a respeito votada no Parlamento Europeu e em processo de ser ratificada em cada um dos países membro.
Mas há uma área onde estas medidas não serão suficientes e esta é uma área simbolicamente da maior importância: a Amazônia. E, na Amazônia há uma área particularmente crítica: o vale do rio Javari, onde foram mortos os ambientalistas Dom Phillips e Bruno Pereira. Neste amplo espaço (85 mil quilômetros quadrados, duas Suíças) ainda muito florestado e com comunicações difíceis, quase sempre pelos rios, estamos diante de um verdadeiro vácuo dos poderes do Estado. Formou-se um quisto institucional, onde prefeitos, delegados e policiais, juízes e ministério público são todos cúmplices da economia ilegal de madeira, de peixes e de minérios e da grilagem de terras públicas e das reservas indígenas. Ali não funciona a pressão dos créditos bancários ou do controle das vendas pois um e outro estão nas mãos do tráfico e do contrabando. Vai ser preciso adotar mecanismos de repressão que não dependam das instituições locais.
Que forças do governo federal poderão fazer este difícil controle? O Ibama pode identificar os locais onde opera a economia ilegal, mas quem vai lá para prender os desmatadores, garimpeiros, grileiros e pescadores ilegais? São dezenas ou mesmo centenas de milhares de trabalhadores controlados por este esquema e que dependem destas atividades para viver. Além disso, trata-se de gente armada pelas facilidades oferecidas pela legislação relaxada do energúmeno e pelos próprios traficantes que os financiam e enquadram. A polícia federal não tem força suficiente para dar conta deste serviço, mesmo supondo que se empenhe na tarefa. O Lula vai mandar uma Força Nacional composta por militares do Exército, Marinha e Aeronáutica? O que garante que esta força se empenhe de fato no combate ao crime organizado? Podemos confiar que as FFAA, com toda a má vontade com o governo que já mostraram, vai se empenhar em erradicar estas atividades ilegais? Vai ser muito duro operar a repressão naquele espaço tão favorável à evasão e tão cheio de cumplicidades e que pode degenerar em enfrentamentos armados sérios. Se Lula der conta de controlar este abcesso ele conseguirá o desmatamento zero no país, já que perto deste problema, o resto é fichinha.
Lula tem sido enfático e reafirmativo em relação à esta proposta do desmatamento zero. Mas houve um momento que deixou todos os ambientalistas com a pulga atrás da orelha. Entre as glórias do palanque internacional da terra dos faraós e a realidade das negociações da composição do ministério houve um hiato. De repente Marina não devia ser ministra do meio ambiente, mas chefe de uma ainda inexistente super-organização voltada para a questão do aquecimento global. Havendo uma óbvia disputa de competências entre esta futura entidade e o Ministério do Meio Ambiente, Marina recusou e cobrou que a dita organização fosse subordinada ao MMA. Jogou-se Marina contra Izabela Teixeira e, mais adiante, contra Tebet. Circularam matérias dizendo que Marina era “radical” e que atrapalharia a ação ampla do governo. Também se disse que ela não poderia ser nomeada por não poder ser demitida, dado o peso do seu prestígio. É um péssimo sinal em relação às intenções do governo para o meio ambiente. Marina não pode ser mais radical do que o próprio Lula o foi, ao prometer o desmatamento zero e não só na Amazônia.
A má vontade com Marina Silva pode ter outra raiz, aquilo que os petistas consideram uma traição: o apoio à Aécio Neves no segundo turno de 2014. Esquecem do sórdido processo de desconstrução que foi jogado sobre Marina quando ela esteve, por momentos, à frente de Dilma nas pesquisas naquele pleito. Seja qual for a razão, esta lógica fica longe de contemplar a necessidade da frente ampla para governar nesta maré difícil.
Marina ganhou a queda de braço e, em princípio, o seu MMA vai ter um papel transversal e discutir todas as políticas públicas do governo, introduzindo os critérios ambientais nas decisões. O princípio é excelente, mas lembro que ele já tinha sido postulado em 2003 e rapidamente esquecido, com Marina sendo levada a engolir sapos cada vez mais gordos até o peteleco final que a levou a deixar o governo. Vamos torcer para que Lula e o PT (e os outros partidos da esquerda e centro esquerda) tenham adquirido novas noções sobre a crucial importância das questões ambientais na promoção de um desenvolvimento sustentável.
Se o Desmatamento Zero vai colocar Lula em enfrentamento com o agronegócio, o Fome Zero arrisca de ter o mesmo efeito. Já escrevi em outro artigo que não se pode pedir aos agricultores familiares a solução da oferta de alimentos para os milhões que passam fome, não a curto prazo. Eles poderão ter um papel importante, mas quem pode responder rapidamente ao aumento de demanda de alimentos é o agronegócio.
Desde logo, o Brasil produz muito na agropecuária, mas o grosso está voltado para a exportação. Metade da nossa área de cultivos anuais é composta de monoculturas de soja e de milho para ração animal, sobretudo para alimentar porcos, frangos e bois pelo mundo afora. E quem é que produz os alimentos consumidos no Brasil? Por muitos anos, os movimentos dos agricultores familiares e a maioria dos analistas da esquerda afirmaram que 70% da produção de alimentos era originada nos roçados dos pequenos e médios produtores familiares. Isto vem do censo de 1985 e foi ficando no discurso até recentemente, na posse do ministro do desenvolvimento agrário, Paulo Teixeira.
Não é mais assim. Os dados do censo agropecuário de 2017 desmentem esta afirmação. Em quase todos os produtos da alimentação popular, com exceção da mandioca e do leite, predomina o agronegócio. Avaliada pelo valor da produção, a agricultura familiar responde por 25% da produção agropecuária brasileira e nem tudo são alimentos, pois parte da agricultura familiar participa da produção de commodities para a exportação. Apesar de menos importante do que no passado, a participação da agricutura familiar na produção de alimentos é significativa e mais ainda considerando-se que o agronegócio controla uma proporção muitas vezes maior da área cultivada ou de pasto.
A maior parte da produção alimentar oriunda da agricultura familiar e que chega ao mercado vem de uma parcela conhecida como o agronegocinho, agricultores mais capitalizados e que adotaram as técnicas da grande produção.
Aumentar a oferta de alimentos básicos demandará políticas voltadas para quatro categorias de agricultores: o agronegócio, a agricultura familiar tradicional, o agronegocinho e a agricultura familiar que está em conversão para a agroecologia.
A maioria dos agricultores no Brasil é de tipo familiar, pouco menos de 90% do total. Destes, pouco mais de 10% são classificados como agronegocinho, e pouco menos de 80% são produtores tradicionais ou (4,5%) engajados na transição agroecológica. Pouco mais de 10% são os grandes e médios produtores do agronegócio.
Cerca de 2 milhões dos agricultores familiares tradicionais estão na categoria de minifundistas, com áreas médias inferiores a 5 hectares. Estes produtores estão, via de regra, em situação de maiores dificuldades naturais: no semiárido, nas áreas não alagadas da Amazônia, em áreas marginais no sudeste, sul e centro oeste. Este é um público muito afetado por problemas de insegurança alimentar e deveria ser formulada uma política para garantir a sua autossuficiência nutricional. Isto tiraria perto de 10 milhões de brasileiros e brasileiras do mapa da fome e ainda permitiria a oferta de algum excedente nas feiras locais. Para estes produtores não é muito difícil reproduzir as experiências exitosas de produção agroecológica em pequenos espaços, conduzidas sobretudo por mulheres.
A produção do agronegocinho dificilmente poderá ser aumentada de maneira significativa pela expansão da área produtiva, já que não dispõe de muito espaço ainda não utilizado. A produtividade pode crescer, segundo o caso, com medidas de racionalização da produção pela substituição de insumos químicos por insumos orgânicos. Tecnicamente isto não é complicado. O mais demorado é conseguir ampliar em grande escala a oferta de adubos orgânicos e produtos de controle biológico de pragas, fungos e doenças. Serão necessárias políticas de estímulo à compostagem de lixo e lodo de esgoto ou de reciclagem de rejeitos das agroindústrias. Isto não será possível em curto prazo e vai cobrar a colaboração de municípios e da agroindústria privada (serrarias, usinas de açúcar, outras). O estímulo do governo via créditos e subsídios vai ser fundamental. De toda forma, não se pode esperar uma reposta rápida deste setor no volume necessário para substituir as importações de alimentos que o programa Bolsa Família turbinado vai cobrar. E mesmo quando isto acontecer, o aumento da oferta de alimentos por este setor não vai ser suficiente.
Os 1,25 milhão de agricultores familiares tradicionais que dispõem de mais terra do que os minifundistas são quem pode trazer mais produção alimentar para o mercado. Neste caso, o esforço de levar crédito, garantir a compra dos produtos com preços atrativos e oferecer a necessária assistência técnica vai ser essencial. O ideal seria que eles ampliassem a sua produção já orientados para a agroecologia, mas não temos acúmulo de experiências em escala nacional para oferecer exemplos a todos eles. Nem temos técnicos formados em agroecologia e em metodologias participativas de promoção do desenvolvimento para responder a uma demanda nesta escala. É algo para ser preparado em um esforço de longo prazo.
Mesmo sem a difusão da agroecologia para toda esta ampla categoria, é possível estimular o uso de uma forma mais simplificada desta abordagem, usando insumos químicos combinados com os orgânicos, e facilitando o emprego de maquinário de pequeno e médio porte. Mais uma vez, as políticas necessárias são: as compras governamentais com preços atraentes, seguro da produção, crédito facilitado e assistência técnica. Uma parcela importante deste público se encontra nos assentamentos da Reforma Agrária e estes costumam dispor de uma base mais organizada que facilita os processos de promoção do desenvolvimento. Entretanto, nada na agricultura, sobretudo a familiar, funciona de um dia para o outro e não podemos esperar que esta categoria de produtores dê a resposta imediata ao aumento da demanda de alimentos.
O pequeno setor de produção agroecológica da agricultura familiar se encontra, em sua maioria, em processo de transição. Eles podem contribuir pouco para a produção incrementada de alimentos, mas tem um papel fundamental estratégico de servir de exemplo e modelo para uma futura expansão da produção sustentável mais avançada. Para esses, o mais interessante é criar um programa de produção agroecológica financiado através de um fundo especial. Grupos de produtores agroecológicos ou em transição para a agroecologia poderão formular projetos coletivos de desenvolvimento que incluam fomento à experimentação, crédito flexível na forma de fundos rotativos controlados pelas entidades executoras, assistência técnica, compras públicas ou preços garantidos pelo governo e infraestruturas de beneficiamento.
Resta ao governo conseguir ampliar a produção alimentar do agronegócio. Em princípio, este é o setor com a capacidade de resposta mais rápida ao aumento da demanda. No entanto, é pouco provável que estes produtores tenham muita área disponível para a expansão de seus cultivos e criações. O governo pode estimular este incremento e cobrar a adoção de métodos de manejo integrado de pragas para diminuir a contaminação dos alimentos por agrotóxicos, que é enorme no Brasil. Não vejo este setor empregando de forma significativa os métodos e técnicas da agroecologia, muito embora sejam bastante numerosos os produtores do agronegócio orgânico. Este setor pode trazer uma contribuição importante para responder à demanda incrementada de alimentos, mas também não vai dar conta de todo o recado, por suas limitações na disponibilidade de terras.
Finalmente, a possibilidade de uma rápida expansão da produção de alimentos está na mão do agronegócio exportador. Este é o setor com mais terras e que pode, se decidir abandonar a soja de exportação pelo cultivo de feijão, por exemplo, rapidamente suprir uma boa parte da demanda. O problema é convencer este tipo de produtor a fazer isso e não vai ser fácil. Estes produtores não vão trocar uma produção que está bem remunerada pelos preços internacionais das commodities sem ter uma muito forte compensação. E é aqui que a porca torce o rabo. Por mais que o governo ofereça bons preços para o feijão, o arroz, e outros produtos alimentares, nenhum produtor vai deixar a cadeia produtiva de exportação onde está muito bem, obrigado, para entrar em outra que depende do governo ou de um mercado de pobres. Vai ser preciso que o governo retire as vantagens dos exportadores, que recebem imensos subsídios na forma de redução ou anulação de impostos e facilitação de créditos. Sem estes cortes, que podem ser redirecionados para favorecer a produção alimentar, não vai haver oferta rápida de alimentos no mercado nacional.
A questão com o agronegócio não é só uma disputa sobre políticas públicas. Nos seus primeiros governos, Lula entregou tudo que o agronegócio pediu, e de mão beijada. Entretanto, este setor continuou sendo um inimigo permanente do governo Lula e de sua sucessora, Dilma Roussef, tendo tido um papel importante no golpe que a derrubou. O agronegócio foi o setor onde Bolsonaro encontrou o seu maior apoio entre os “donos do PIB”. Foram eles os financiadores de manifestações, de acampamentos nas portas dos quartéis e pressões sobre o eleitorado. Tirar os subsídios do agronegócio para induzi-los a produzir alimentos, mesmo com fortes compensações, vai ser como tirar osso da boca de pitbull. E este pitbull tem amplo apoio parlamentar, coisa que falta a Lula.
Lula tem uma arma à sua disposição para pressionar o agronegócio exportador para se voltar para a produção de alimentos: as dívidas deste setor para com o governo. Segundo pesquisa da OXFAM, apenas 4013 agricultores e pecuaristas, aqueles com dívidas superiores a 50 milhões de reais, devem um total de 906 bilhões de reais. E destes, apenas 729, têm uma dívida da ordem de 200 bilhões. No Congresso pululam projetos buscando desde a anistia total até uma generosíssima renegociação das dívidas. O agronegócio posa de “tec, pop e tudo”, mas é totalmente dependente das benesses do Estado para sobreviver. É hora de negociar e não de ceder às ameaças e chantagens do agronegócio. A consigna poderia ser: menos dívidas x mais alimentos?
Uma última proposta merece ser discutida; a promessa de Lula de recuperar as terras abandonadas pelo agronegócio devido à degradação dos solos. No Egito, Lula falou em 100 milhões de hectares e no seu discurso de posse este número caiu para 30 milhões. Não fica claro a causa da redução. De fato, a quantidade de terra degradada no Brasil é estimada entre 180 e 200 milhões de hectares, em todos os biomas, mas sobretudo no Cerrado e na Amazônia. Talvez o cálculo de Lula seja baseado em um dos biomas apenas. Ou talvez seja o que ele ache possível realizar. Esta proposta também não deixa claro qual vai ser o propósito desta recuperação. No Egito, ele parecia indicar que elas seriam destinadas ao reflorestamento, enquanto no seu discurso de posse ele pareceu indicar um uso para a Reforma Agrária e para a produção de alimentos. Tanto para o reflorestamento quanto para a produção de alimentos serão necessários agricultores que se ocuparão ou do replantio com espécies nativas e sua manutenção até se estabilizarem ou do plantio de alimentos. Pode-se ainda pensar em um duplo propósito, reflorestar e produzir alimentos. É uma proposta com grande atração para o financiamento internacional, sobretudo a parte que concerne o reflorestamento, já que isto permitiria uma absorção importante de gases de efeito estufa. De qualquer forma, são processos de longo prazo e que cobrarão um apoio público continuado para remunerar os agricultores assentados. Tendo a achar que a proposta de duplo propósito é a mais viável pois uma família de agricultores poderá se viabilizar como fornecedor de alimentos muito antes da estabilização de novas florestas.
Entretanto, tudo isto está sujeito à desapropriação pelo Estado das terras degradadas. Elas são parte de grandes latifúndios, na maior parte dos casos. Estão abandonadas para o uso agrícola ou pecuário, mas tem dono. E estes donos não vão entregar estas terras sem lutar muito por compensações que podem tornar o programa proibitivo. Mais uma vez encontramos a contradição entre os interesses sociais, econômicos e ambientais do país e os interesses do agronegócio.
Não pretendi aqui fazer uma exaustiva exploração de todas as possíveis propostas urgentes que Lula vai ter que escolher para definir suas prioridades. Existem outras e são tantas que o Lula deve estar sem dormir com tanta preocupação. A meu ver, estas três estariam entre quaisquer prioridades deste governo e no topo delas. Entendo perfeitamente os limites deste governo e gostaria de argumentar em favor de não pretendermos adentrar o paraíso nestes quatro anos. Se o presidente der início à execução bem orientada e significativa destes três programas ele já terá ampliado o crédito que tem para com a história do Brasil. Digo ampliar porque ele já tem lugar cativo só com o fato de ter barrado o caminho do fascismo. Tentemos ajudá-lo a consolidar o rumo da retomada da democracia.