11 Janeiro 2023
"Se o isolamento dos golpistas foi o principal resultado da intentona, não podemos esquecer as cenas de impotência explícita do governo federal", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71), fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASPTA).
Há várias leituras dos episódios de domingo passado. A primeira é a constatação de que a tentativa de golpe foi um fiasco total, apesar do tremendo impacto visual da depredação dos palácios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. O propósito dos manifestantes, escancarado em inúmeras mensagens nas redes sociais, era ocupar estes espaços com dois a três milhões de pessoas e lá ficar até que as Forças Armadas assumissem o poder. Apareceram menos de 20 mil fanáticos que, apesar dos estragos, estavam fora da Esplanada antes do anoitecer, sendo que 1500 deles na cadeia.
A tese dos terroristas era bem conhecida: provocar o caos na capital e em todo o país e com isso criar as condições para uma intervenção militar. Os terroristas deram orientações para atos em toda parte, com ênfase nas interrupções das rodovias, fechamento das empresas de produção de combustíveis e assédio às sedes dos legislativos e executivos estaduais e municipais. Esta parte também foi um fiasco. Contaram-se nove interrupções nas rodovias federais e elas foram rapidamente dissolvidas.
Manifestações em outras cidades foram poucas, a maior em São Paulo, e muito longe dos atos maciços de outros momentos. Outro dado interessante foi a prudente recusa dos manifestantes de portarem armas, conforme também constou das convocações que apelaram especificamente para os CACs. Foram poucas as armas notadas entre os depredadores de Brasília, o que mostra que os manifestantes são enlouquecidos, mas “não correm na frente do trem fazendo piuí”.
As convocações para os manifestantes virem para o “tudo ou nada”, “para matar ou morrer”, “com o sangue nos olhos”, esbarraram no sentido de sobrevivência. É interessante notar que não houve propriamente um enfrentamento entre a gentil PM de Brasília e os manifestantes. Os valentes insurrectos só entraram em choque com indivíduos isolados e, a partir do momento em que começou uma ação para limpar a Esplanada eles foram tirando o time sem lutar.
O que aconteceu em Brasília foi apenas a fixação em um momento preciso de um conjunto de fatores que já estavam inscritos na realidade, desde a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas. Era algo previsível e anunciado abertamente. Também era previsível a postura da PM de Brasília, que já tinha mostrado as suas inclinações em vários episódios, o último apenas três semanas atrás, no badernaço da titulação de Lula. O que não era previsível era a posição do novo governo, que se mostrou totalmente refém de outras forças no episódio.
A manifestação desmanchou-se pelo mero fato de não ter tido nem um por cento do que prediziam os convocadores. E na amplitude da Esplanada, os baderneiros se diluíram. Apesar da atitude de contemplação divertida e solidária dos PMs, quando a Força Nacional mostrou, tardiamente, a cara, a maré começou a refluir. Mais para o final da tarde, o governador Ibaneis Rocha deu ordens para os batalhões de choque se mexerem e eles o fizeram, preguiçosamente e sempre à boa distância, usando mais gás do que outra coisa. Diria que a manifestação refluiu mais por esgotamento e sensação de fracasso e risco crescente do que por qualquer ação intimidatória.
Não é possível que o governo, Flávio Dino à frente, não fosse capaz de prever o que aconteceu. Ele declara ter confiado nos acordos com o governador do DF, mas isto é uma tamanha ingenuidade que não pode ser crível. E onde estavam os responsáveis por guardar os edifícios, os próprios federais, os militares das FFAA? Onde estava a Guarda Presidencial? Por outro lado, onde estava a inteligência militar que não percebeu o que se passava em frente aos seus narizes na porta dos quartéis? A mais que ambígua atitude dos comandantes destes quartéis, abrigando e protegendo ostensivamente os manifestantes era um indicativo de que o governo não podia confiar nos militares. E este é o drama do governo atualmente: ele não tem controle sobre qualquer força armada para garantir a democracia. As polícias são fortemente bolsonaristas ou simplesmente de extrema direita e as FFAA idem.
Lula pode levantar as mãos para o céu e agradecer esta tentativa golpista de araque. Se, por um lado, ela põe a nu a impotência do governo federal, por outro ela aponta para a impotência do golpismo. E ela isolou politicamente a extrema direita, o mais importante resultado dos atos de domingo. Se a justiça fizer o que está prometendo e punir com rigor os golpistas e, sobretudo, suas lideranças políticas, os seus financiadores e seus colaboradores na PM e nas FFAA, o freio a novas ameaças vai ser importante.
Se o isolamento dos golpistas foi o principal resultado da intentona, não podemos esquecer as cenas de impotência explícita do governo federal. O ministro da Justiça vinha clamando pela dissolução dos acampamentos na porta dos quartéis desde a posse, mas Lula preferiu dar corda para José Múcio Monteiro convencer as FFAA a fazer o trabalho. A verdade é que o imbróglio não era pequeno.
A PM de Brasília é quem tinha o mandato para tirar as barracas e barraqueiros, mas pedia licença para os comandantes dos quartéis. Estes não davam licença nem tomavam a iniciativa de limpar o perímetro de segurança. Segundo vários articulistas entre os acampados havia militares da reserva e até parentes de militares da ativa. A cumplicidade era total, mas há uma diferença entre apoio e solidariedade e um engajamento armado do lado dos golpistas.
Não se trata de apreço pela democracia por parte da oficialidade, mas de insegurança em relação ao momento e a falta de uma liderança ou um comando centralizado. O desastre da manifestação golpista deve esfriar os ânimos dos oficiais mais belicosos no seu antipetismo ou antilulismo, mas não foram eles os derrotados nestes acontecimentos recentes e, se não mudar a relação com o governo, a ameaça vai ficar pesando o tempo todo.
O que Lula poderia ter feito? Não existem muitas alternativas: há o princípio da obediência devida ao presidente, enquanto comandante em chefe das FFAA, e ele terá que ser posto à prova. Isto não se faz com ministros da Defesa do tipo José Múcio, mais moço de recados dos generais do que membro do governo. Neste momento em que a direita golpista sofreu um baque com sua intentona fracassada, talvez seja a hora de impor a disciplina nas FFAA. Se o governo tremer agora ele vai tremer até o fim e ficar refém dos militares que poderão tranquilamente escolher o momento e a forma do seu golpe.
O governo vai ter que cobrar as responsabilidades das FFAA no quebra-quebra de domingo. O comando da Guarda Presidencial tem que ser investigado, assim como o comandante do quartel general que colocou blindados na proteção dos manifestantes que se refugiaram no acampamento depois dos atos. O próximo desafio vai ser o processo contra Eduardo Pazuello e sobre a produção de cloroquina pelo Exército. E não nos esqueçamos que o general Augusto Heleno foi um aberto articulador das jornadas golpistas em todo o governo Bolsonaro. Os inquéritos vão chegar até ele? Ou o governo vai segurar a Polícia Federal?
Minha sensação em relação à ameaça militar é que estamos fingindo de surdos e cegos para poder desconhecer os perigos e negá-los. É como a avestruz, que mete a cabeça na areia para “fugir” de uma ameaça. Mas o rabo fica de fora.
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A síndrome da avestruz? Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU