16 Janeiro 2023
Depois de 13 anos, está de volta às telas o fascínio de Pandora, a lua de um gigante gasoso onde a humanidade se encontra (e também se confronta...) com a população indígena, semelhante a humanoides, de alta estatura e de cor azul dos Na’vi.
O comentário é do teólogo italiano Marco Staffolani, padre passionista italiano e professor assistente da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. O artigo foi publicado em Settimana News, 10-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Avatar 2”, escrito e dirigido por James Cameron, recomeça exatamente a partir da “reencarnação” do protagonista, Jake Sully (Sam Worthington), um ex-fuzileiro naval que ficou paralisado da cintura para baixo devido a um ferimento de guerra. Ao longo de todo o primeiro episódio da saga, o militar com deficiência guiou seu avatar por meio da tecnologia humana, permanecendo confinado dentro de um laboratório. Estendido e adormecido em uma maca, apoderava-se do corpo alienígena como em uma realidade virtual, livre para correr pelos espaços verdes de Pandora, pelo menos até cada (traumático) despertar.
Tudo muda com a ajuda de Eywa, a Grande Mãe, a força biológica senciente e única divindade de Pandora, que guia a vida dos Na’vi. No epílogo do primeiro filme, Jake deixa que o coloquem na base da árvore das almas junto com seu avatar e se entrega à oração de intercessão do clã Omatikaya para que possa ocorrer a transmigração de seu “espírito” e ele se torne permanentemente um indígena Na’vi, deixando na terra seu corpo humano.
Os Na’vi acreditam que Eywa age para manter o ecossistema de Pandora em perfeito equilíbrio e que todas as coisas voltem para ela após sua morte. Eywa também conecta as formas de vida, tanto vegetais quanto animais, como uma grande rede biológica.
A ameaça para Pandora, também nesta sequência, é a técnica desrespeitosa do ser humano, que já destruiu quase completamente a terra. O “povo do céu”, como os humanos são chamados pelos Na’vi, retorna depois de vários anos aparecendo no céu noturno como uma sinistra “nova estrela”, certamente não como a da Epifania que guia os Magos para encontrar o Salvador.
Com maiores meios, os humanos querem cimentar e metalizar, sem muitos escrúpulos, a próspera exolua. O projeto é convertê-la no próximo lar da humanidade, mas tudo às custas da flora e da fauna locais.
Jake Sully, enquanto isso, formou uma família com Neytiri (Zoe Saldana) e passou anos de tranquilidade, nos quais viu seus filhos Neteyam, Lo’ak, Kiri (Sigourney Weaver) e Tuk crescerem.
Porém, reaparece em cena Miles Quaritch, interpretado por Stephen Lang, que no primeiro filme era o feroz coronel, principal antagonista de Sully, que trava uma guerra contra os Omaticaya, sendo morto pelas flechas de Neytiri.
Embora o personagem original esteja morto, Lang retorna nas vestes do avatar de Quaritch. Trata-se de um clone que tem o caráter e as memórias do velho coronel, que também nesta versão se confirma como o principal antagonista que tem a intenção de perseguir Jake, sua família e seus amigos, para eliminá-los.
Para proteger sua família das garras de Miles, Jack é forçado a fugir da floresta e a buscar refúgio junto ao povo do mar, os Metkayina. Aqui, junto com a mulher e os filhos, repetindo frequentemente uns aos outros o lema: “Os Sullys permanecem unidos”, ele terá de aprender os usos e os costumes do mundo aquático para poder ser admitido no novo clã Na’vi.
Deixamos ao espectador julgar se a nova trama e os efeitos especiais são dignos da obra-prima anterior, para nos determos em algumas considerações de caráter teológico fundamenta e investigar como o cinema pode ser portador de uma religiosidade natural clássica, reproposta na inédita forma de ficção científica.
O leitmotiv que parece ressoar nesse esforço de Cameron é a relação sagrada entre os seres sencientes e a natureza que os cerca. Os Na’vi são “corporalmente equipados” com um apêndice nervoso externo em forma de trança, escondido em seus cabelos, para se conectarem entre si e com as várias criaturas mais evoluídas. Eles entram em empatia direta com animais, que são dotados de um apêndice semelhante, para poder montá-los na terra, no ar e na água, e literalmente sentir seu estado de espírito.
E se até mesmo os Na’vi têm que se alimentar de algumas espécies inferiores (como peixes e quadrúpedes), toda caça, com as respectivas mortes de animais, é acompanhada pela ação de graças e pelas orações a Eywa.
“Eu te vejo, Irmão, e te agradeço. Teu espírito vai com Eywa. Teu corpo fica aqui, para fazer parte do Povo.”
Em alguns casos, chega-se ao “Tsaheylu”, um vínculo permanente que os Na’vi estabelecem com os animais mais nobres de Pandora, a ponto de os considerar como seus irmãos e irmãs em espírito, e lutar com a própria vida pela sua proteção contra a técnica do “povo do céu”.
Também é interessante a explicação da sabedoria que dá título a este segundo episódio. A esse respeito, gosto de comentar o texto daquilo que poderíamos definir como a “oração da água”:
“O curso de água não tem princípio nem fim, o mar está à tua volta e dentro de ti, o mar é a tua casa antes de teu nascimento e depois da tua morte. Nossos corações batem no ventre do mundo, nosso coração arde nas sombras dos abismos. O mar dá e o mar leva, a água conecta todas as coisas, a vida à morte, a escuridão à luz.”
Ela é usada duas vezes no filme: primeiro quando Tsireya (filha do chefe Metkayina) ensina a Lo’ak a respirar antes de mergulhar em apneia até o fundo do mar. A oração ajuda o segundo filho de Sully a considerar o mar como seu novo lar e a se integrar ao novo clã.
Depois, será o próprio Lo’ak que “entregará”, como tradição viva, a oração ao pai, convidando-o a respirar fundo e a acalmar seu coração no momento do maior perigo, em que pai e filho devem voltar dos abismos para a superfície do mar aberto, depois de ficarem presos com muito pouco ar entre os destroços do navio inimigo.
Essa oração e a fortíssima relação com o envolvente remetem-me à “ladainha contra o medo” presente em “Duna”, em que as iniciadas no “Bene Gesserit” submetem seu corpo à calma e à reflexão, contra toda emotividade que poderia fazê-las sucumbir perante o inimigo:
“Não devo ter medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à destruição total. Enfrentarei meu medo, permitirei que ele passe por mim e me atravesse e, quando tiver passado, seguirei seu caminho com meu olho interior. Aonde o medo for, não haverá nada, permanecerei apenas eu.”
Uma reflexão final para concluir: a ficção científica, ao transportar os seres humanos para novos corpos e novos ambientes, faz com que se tornem mais evidentes as necessidades humanas apareçam que, na nossa realidade cotidiana, custamos a compreender. A ficção científica pode criar aquela predisposição lúdica para romper esquemas “nocivos” consolidados, ativando um benéfico distanciamento devido à metáfora existencial.
Primeiro ponto: o ser humano faz parte da natureza, de forma paradoxal. É seu ápice, sem ser seu dono. Depende dela para seu sustento, mas a natureza depende dele como seu guardião. Avatar tenta explicar isso por meio dos sentimentos de admiração e de respeito que sentimos ao ver a beleza das criaturas de Pandora, que só podem remeter às criaturas terrestres reais.
Segundo ponto: o ser humano é uma criatura espiritual. Ela precisa se referir a uma transcendência e dialogar com ela por meio de um dos fenômenos mais interessantes que o distinguem dos outros animais: a palavra. Com ela, ele se eleva acima deles, porque encontra razões que o levam além da vida terrena que compartilha com eles. Ele pode pensar e falar sobre uma vida após a morte. Avatar nos faz pensar em uma divindade pan-cósmica e no retorno de tudo a Eywa, com a sugestão do canto e da oração.
O cristão deveria saber que há muito mais, e que Aquele que ele conhece (o Além ou, melhor, o Outro, com O maiúsculo) não é ficção científica, mas a ficção científica, de certa forma, também pode nos predispor a Ele.
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Avatar 2: da água para o além. Artigo de Marco Staffolani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU