09 Dezembro 2022
O papa que talvez não tem um plano ordenado, mas sim uma sensibilidade “política”, está empurrando a Igreja para fora de sua tradicional zona de conforto.
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin da China. O artigo foi publicado por Settimana News, 07-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De muitos lados, chegam críticas às ações do papa, que teria abandonado a tradição e a ortodoxia do catolicismo para abraçar seus inimigos de esquerda ou de outros lugares. No melhor dos casos, ele seria um “trapalhão”, de acordo com a arguta definição de Giuliano Ferrara no jornal Il Foglio.
Pessoalmente, não sou dessa opinião. Os problemas da Igreja em geral são enormes e muito difíceis. O primeiro e essencial é que a Igreja Católica é uma ínfima minoria na Ásia, pátria de 60% da população mundial e também da maior parte do crescimento econômico global.
Aqui, a população católica é mínima se excluirmos as Filipinas, uma espécie de protuberância da América Latina na Ásia.
O país com a maior porcentagem de católicos é o Vietnã, entre 10% e 20%. Esses fiéis se devem à influência do domínio francês.
Quase igual é a Coreia do Sul, onde a influência dos Estados Unidos converteu ao cristianismo quase a maioria da população, e cerca de 10% hoje são católicos.
Na Índia, onde o catolicismo chegou com São Tomás no primeiro século depois de Cristo, e depois com os portugueses, os católicos estão entre 2% e 5%.
Uma porcentagem semelhante existe na Indonésia, onde os chineses, para afirmar sua identidade em relação à maioria indonésia e muçulmana, costumam ser católicos.
Os missionários chegaram à China no fim do século XVI, mas os católicos continuam sendo menos de 1%. Uma porcentagem semelhante se encontra no Japão. Em outros países da Ásia, há uma hostilidade aberta ou latente. Em países muçulmanos como Bangladesh ou Paquistão, as conversões são basicamente proibidas. Em países como a Tailândia, as conversões são oficialmente proibidas. São católicos os chineses que chegaram da China ou do Vietnã, mas os verdadeiros tailandeses são e devem ser budistas.
Na Ásia, então, até a chegada do Papa Bergoglio, os católicos eram substancialmente uma curiosidade intelectual, sob o cerco cultural e político das maiorias muitas vezes anticatólicas militantes. Eles traziam a sombra de terem sido cúmplices do colonialismo ocidental, além de serem diferentes das religiões locais. Bergoglio começou a mudar tudo.
Ele colocou o catolicismo no mapa da cultura religiosa desses países. Ele fez isso de dois modos. Um deles, falando diretamente com as pessoas comuns por meio de suas homilias e tuítes traduzidos para várias línguas. Assim, conseguiu comunicar sentimentos profundos que tocavam os leitores para além de sua fé de origem.
O segundo modo foi falar com os muçulmanos normais, que no passado eram condicionados pelos mulás radicais. Na prática, isso levou ao primeiro acordo com a China para a nomeação de bispos e a um convite pendente ao papa para ir à Índia. Esse convite é extremamente importante, porque vem de um primeiro-ministro, Narendra Modi, empenhado em re-“hinduizar” o país.
Na África, o continente com a demografia mais dinâmica do mundo, os católicos aumentam as conversões a uma taxa dupla em comparação com a demográfica.
Os países muçulmanos, por séculos terra proibida para as conversões, hoje encontram no papa uma margem de moderação que os ajuda a marginalizar o extremismo radical. As conversas cada vez mais próximas, embora ainda distantes, podem levar a imaginar um horizonte de reconciliação com o Islã.
Os ortodoxos, separados de Roma há mais de um milênio, encontraram de fato uma nova forma de integração com o papa. Até mesmo os ortodoxos russos, ligados a uma visão cesaropapista de poder, hoje estão menos distantes de Roma.
A diferença com os luteranos está se dissolvendo, assim como com os anglicanos.
Porém, a Igreja Católica está na defensiva em muitas de suas áreas tradicionais.
Aqui, a resposta não parece ser a afirmação da ortodoxia católica. De fato, os fiéis não correm atrás de uma Igreja tradicional que propõe missas em latim e lufadas de incenso. Os fiéis, tendo saído do abraço de seus velhos párocos, vão a Igrejas modernas, evangélicas, pentecostais, que propõem um acesso a Deus mais imediato e mais simples, até mesmo simplista para os críticos. Ou simplesmente não vão à Igreja, evitam os ritos, as ritualidades. Isso parece nos dizer que não é a falta de tradição que enfraquece a Igreja, mas, pelo contrário, o excesso de tradição em relação à modernidade atual.
De fato, o período de militância ateísta acabou. Toda a retórica filosófica ateísta que havia caracterizado pelo menos os últimos dois séculos da cultura ocidental desapareceu como neblina ao sol. Levará décadas de estudos, talvez, para explicar o motivo desse súbito desaparecimento. Por enquanto, o que importa é que não há mais uma cultura do ateísmo, e voltou um “teísmo”, que, no entanto, é novo.
Além disso, há uma vontade de ser perdoado que ganhou a forma de uma difusão capilar e global das várias escolas de psicoterapia. Trata-se de um perdão em relação a si mesmo, muito importante.
Se isso for visto junto com o novo “teísmo” e com o fato de a Igreja ter um espaço específico para o perdão consigo mesmo e com Deus por meio da confissão, surge um grande espaço de aproximação do catolicismo junto a toda a população global.
O papa que talvez não tem um plano ordenado, mas sim uma sensibilidade “política”, está se aproximando de tudo isso e está empurrando a Igreja para fora de sua tradicional zona de conforto.
De fato, tal como nas estratégias quando se está sitiado, é preciso romper o cerco, conquistar outros territórios e pôr em fuga o inimigo. Isso, depois, consolidará o consenso dentro da cidadela sitiada.
Ou seja, só o novo espaço conquistado fora do catolicismo tradicional, na Ásia, no diálogo com outras religiões, na busca de um espaço entre os ex-ateus, consolida, então, também aqueles que sentem nostalgia da missa latina.
Vice-versa, apegar-se a ritos e tradições que não conseguem mais falar nem ao próprio mundo nem ao mundo ampliado significa transformar a Igreja Católica em uma espécie de fé identitária. É contra a própria natureza do catolicismo, por sua própria definição universalmente salvífica.
Portanto, não há trapalhadas, pelo contrário. A dificuldade certamente é não ter explicado e ilustrado o suficiente o caminho acidentado da Igreja hoje.
No entanto, essas são considerações seculares, políticas, não religiosas. Mas seria ingênuo abstrair-se delas. As religiões viajam sobre a carne das pessoas, e, portanto, talvez haja algumas observações a fazer sobre os aspectos “políticos”.
Assim, várias considerações convergentes levam à ideia de criar uma nova estrutura da Igreja para ser “acrescentada” à tradicional, de serviço ao mundo hoje em um estado de caos crescente.
Há o fracasso da ONU como espaço de mediação internacional. Isso ocorre porque os governos ou os funcionários de muitos países em desenvolvimento vendem seu apoio ao primeiro que passa em troca de pequenos benefícios materiais, sem um pensamento geral.
Esse fracasso deixa vazio um espaço onde vários países podem se falar de forma confidencial e estável, talvez com uma mediação desinteressada. Que deveria ser a ONU.
A Santa Sé tem uma história desse tipo de serviço, e centenas de acordos políticos entre Estados estão preservados nos arquivos do Vaticano, parte da história do próprio Estado pontifício.
Além disso, hoje existe o “papa superstar”, que levou a Igreja a um espaço global sem precedentes. Isso também está ligado à personalidade do Papa Francisco. Mas a Igreja não pode começar e terminar com o papa. Além disso, há um problema: e se o próximo papa não for uma personalidade “borbulhante” como a de Bergoglio?
Seria oportuno, portanto, canalizar essa atenção global para uma estrutura que também servisse a outros propósitos.
A Igreja Católica não sabe se comunicar bem por meio dos modernos meios de comunicação. Ela tropeça, gagueja, erra. Mas os gritos do pregador, a música, o espetáculo moderno não fazem parte do catolicismo. A formação do padre católico não é essa. Há séculos, a Igreja já se comunica por meio do rito, das instituições, usando os padres que tocam a alma dos fiéis e dos infiéis.
A “comunicação” e a “narrativa” são mais típicas das Igrejas protestantes, com menos estruturas e ritos, com lideranças mais “administradores”, “anunciadores”, que, portanto, devem se apoiar nas proclamações do pastor.
A Igreja, portanto, necessitaria de outra estrutura, de outra instituição política, para ajudar na sua comunicação e sustentar também sua independência política, dada a justa falta do Estado pontifício, que durante séculos garantiu a autonomia do papa.
Esse talvez seja o novo desafio de verdade da Santa Sé.
“Se por trapalhão se entende alguém que tenta levar em conta a complexidade do real, eu gosto da definição. Mas quem, diante da complexidade do real, não seria um trapalhão? Quanto ao restante, um artigo interessante, embora eu não compartilhe a parte final. Não é uma questão de comunicação... é outra coisa: é Evangelho!”
“A única parte interessante, na minha opinião, são as últimas quatro linhas. Mas é um desejo irrealizável, porque a estrutura está centralizada de maneira estrutural, teológica, devendo ser hoje revista, senão julgada como bastante inútil. Além disso, já existe um Dicastério para a Comunicação. Talvez seria preciso torná-la mais eficiente, integrá-lo com as comunicações externas dos outros dicastérios e das Pontifícias Academias, fazer verificações do trabalho realizado, confiar os escritórios de comunicação a profissionais, mentalmente independentes da centralização autoritária imperante (e pagar-lhes…). Tradução para a língua atual: é necessária uma mentalidade nova; parafraseando o papa: não adianta mudar de mentalidade, é preciso uma mudança total de mentalidade. Hoje, isso me parece impossível. Portanto, artigos como este, embora de algum interesse, não captam o cerne da questão.”
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A estratégia do papa “trapalhão”. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU