23 Novembro 2022
Em julho de 1977, David Maria Turoldo, falando de uma reportagem televisiva sobre o Pe. Milani, que o fizera aparecer “quase como um santinho de primeira comunhão, naturalmente um ‘padre obedientíssimo’, quase pior do que Santo Antônio (...)”, escrevia: “Veja o que fizeram de Santo Antônio: um santo para namoradas, uma espécie de efebo que brinca com aquele menino Jesus nas mãos”. E comentava: “Certamente seria preciso abrir um capítulo sobre a patologia dos hagiógrafos e sobre o destino dos santos (...)” [1].
O comentário é de Antonio Greco, publicado por Manifesto 4 Ottobre, 18-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quase sempre encontrei o adjetivo “canonizados” associado ao substantivo “santos”. Esse adjetivo levanta o tema teológico-ecumênico da “fábrica dos santos”, que divide os cristãos católicos dos irmãos cristãos protestantes. E é uma fábrica de beatos e santos que dificilmente entrará em crise, porque há uma forte demanda de santos (as pessoas precisam de um santo padroeiro e intercessor, assim na terra como no céu, a quem recorrer, e a Igreja lhes dá) e porque paga bem: os santos são o negócio das freguesias e dos santuários conhecidos, dos muitos que trabalham à sua volta (os chamados organizadores), incluindo procissões, iluminações, bancas de produtos, venda de bugigangas diversas. Embora compreendendo alguns aspectos positivos da religiosidade popular, a essência do cristianismo não se baseia nos santos, mas no único mediador entre o ser humano e Deus, Jesus, o Santo.
Em vez disso, encontrei um adjetivo que, associado a “santos”, gera um oxímoro. Jamais teria lido o livro “Catalogo dei santi ribelli” [Catálogo dos santos rebeldes], de Leonardo Tondelli, se não tivesse sido atraído pelo adjetivo “rebeldes” e pelo subtítulo “histórias de imigrantes, ladrões e prostitutas que mudaram a Igreja” [2].
“Catalogo dei santi ribelli”, novo libro de Leonardo Tondelli
Foto: Divulgação
Publicado em junho de 2022 pela editora Utet, não é um catálogo, mas uma seleção de “um infinito corpus de hagiografias” (p. 283), de “todas as épocas e categorias humanas” (p. 7), de 46 histórias de homens e de mulheres “interessantes”: dois papas, um cardeal, dois bispos, dois padres franciscanos, 17 mulheres, três de “sexo ambíguo” e 20 leigos. Histórias não estudadas, mas contadas.
As 46 histórias estão divididas em nove capítulos, cada um com uma página ou algumas linhas temáticas introdutórias sobre a escolha e sobre as problemáticas que as figuras do capítulo levantam:
1. “Cinco evangelistas e uma figueira” (Marcos, o leão; Mateus, o cobrador de impostos; Lucas, o progressista; João, o primeiro e o último; Natanael e a questão da figueira; Tomé, apóstolo duplo);
2. “Na corte de Jesus: três mulheres e um ladrão” (Madalena, que não era uma prostituta; Marta e a “parte pior”; Fotina, a samaritana; Dimas, o bom ladrão);
3. “Pedro Paulo e companhia” (figuras de Pedro; a filha de Pedro, que não o era; Paulo o infiltrado; as profecias de Ágabo; Onésimo, o escravo fugitivo);
4. “Três Padre da Igreja (mais uma Madre)” (Jerônimo, o ciceroniano; Ambrósio no mundo das crianças; Agostinho e as peras do mal; Mônica nunca desiste);
5. “O sexo ambíguo dos santos” (Marina e a inveja do hábito; Sérgio e Baco: soldados e esposas?; Sebastião, o ícone gay; Sebastião contra os gomorreus);
6. “Os santos negros” (Um, mil, cem mil Calogero; Benedito, o mouro lombardo na Sicília; a virgem asteca; Martín de Porres, enfermeiro e milagreiro);
7. “Os pobres de Cristo” (Aleixo, o falso mendigo; Francisco, o espelho; Clara, mais franciscana do que Francisco; “Che farai, Pier da Morrone?”; Chico, eremita da corte da França; Bento Labre, o mendigo de verdade);
8. “Autorreclusas e autolesionistas” (Felicidade de Felicidade e Perpétua; Maria, a prostituta no deserto; Rita dos milagres; Os diabos em ngela; Catarina, a anoréxica de Deus; Joana era belíssima; As cinco vidas de Verônica; Kater, o lírio dos Mohawks; Gemma);
9. “Os santos do século XX” (Maximiliano, um santo em Auschwitz; Wojtyla, santo e súbito; Teresa de Calcutá, Nossa Senhora da Pobreza; Padre Pio, o último taumaturgo).
Dos simples títulos dos nove capítulos e dos 45 escolhidos com um simples atributo (isso falta apenas a Gemma Galagani), é fácil evidenciar que o livro de Tondelli aborda temas de grande atualidade cultural e religiosa, conhece muito bem todas as problemáticas exegéticas que giram em torno dos “santos” selecionados, indica com clareza que a ideia de “santo” é poliédrica, e é fácil de entender, depois de ler todo o livro, por que a “rebelião” é o ponto de vista principal a partir do qual Tondelli olha para o 46 escolhidos.
O atributo “rebelde” aplicado a um santo só pode ser um paradoxo literário. A rebeldia e a desobediência ao magistério eclesiástico não eram consideradas virtudes a serem imitadas. Eram virtudes quando eram exercidas em relação ao poder político, e quem as praticava pagava com a vida. Nesses casos, a santidade coincidia com o martírio. Eram consideradas virtudes quando os sujeitos que as praticavam se rebelavam contra os limites morais da sociedade da época e os costumes correntes do mundo considerados contrários ou desviantes da ética e da doutrina católicas.
Quando, por outro lado, a rebeldia é uma categoria a ser aplicada ao poder eclesiástico, ela não é mais uma virtude. As rebeliões contra o poder eclesiástico, aquelas feitas em nome do Evangelho, mais cedo ou mais tarde, foram reabsorvidas pela Igreja. Na fábrica de santos canônicos, “o rótulo de santo não designa nada mais do que o rebelde derrotado e reabilitado” (p. 9).
Tondelli defende que mesmo algumas derrotas de profetas em vida, contestadores da estrutura hierárquica e humana do poder clerical, enfraquecidos em vida e depois integrados em morte, merecem ser contadas.
O livro é “uma coleção de lendas, que se estende por 20 séculos, mas sem profundidade. É como um mapa, não totalmente autêntico, de um mundo que talvez graças a este livro alguém descobrirá – depois do qual, se o assunto realmente lhe interessar, será melhor desfazer-se dele e procurar mapas mais profissionais e detalhados” (p. 8).
Mas não é assim. Certamente, o autor está interessado no relato e nas histórias que modificaram sua ideia de “santo”, mas nos relatos estão sempre implícitas a filologia, os estudos mais recentes da pesquisa bíblica, da pesquisa histórica e das ciências humanas a serviço da hagiografia. No livro, há pouquíssimas citações e referências bibliográficas: Jovine, Carrère, Luzzato e, sobretudo, Chiara Frugoni, a quem o livro é dedicado: “Gostaria de poder dizer que roubei dela muitas das ideias aqui contidas, mas, mesmo como ladrão, eu era muito inexperiente. Não importa quantos baús ela tenha deixado escancarados para quem quisesse desfrutá-los: de todos os modos, eu não soube sequer encontrar tantas pérolas. Mas elas ainda estão lá: leiam os livros dela” (p.9).
Italo Calvino teorizava nas “Seis propostas para o próximo milênio. Lições americanas” [3] o valor da leveza em sua literatura: “Parecia-me que o mundo inteiro se transformava em pedra: uma lenta petrificação mais ou menos avançada conforme as pessoas e os lugares, mas que não poupava nenhum aspecto da vida (...) tentei remover o peso ora das figuras humanas, ora dos corpos celestes, ora das cidades; acima de tudo, tentei tirar peso da estrutura do relato e da linguagem”.
Tondelli tira peso dos “santos” e narra histórias leves e atraentes, quase sempre desconhecidas, ainda que sujeitas a diversas interpretações e a diversas hipóteses. Ao lado da predominante, ele acrescenta outras, de modo simples, com a fórmula “ou ao contrário”.
Os relatos de Marcos, o mais conservador, e de Lucas, o mais progressista, não têm peso. Todos são lidos de uma só vez. Mas as outras histórias narradas também são pequenas ficções delineadas com uma linguagem cintilante, embora Tondelli especifique que “por sorte não escrevo ficção” (p. 233).
Assinalo algumas delas e remeto à leitura do livro em relação às outras.
Depois da história de Dimas, o bom ladrão, para o qual houve o processo de canonização mais rápido da história, Tondelli aborda as histórias dos dois fundadores da Igreja, Pedro, um gaffeur violento e resoluto, e Paulo de Tarso, que “nunca conheceu Jesus, mas o explica melhor do que todos, vem de uma família hebraica da Síria, mas tem a cidadania romana. Um espião?” (p. 73). Sobre Saulo-Paulo, Tondelli escreve:
“Depois de uma queda, ele fundará uma religião. De Nietzsche em diante, muitos sugeriram isto: a confissão religiosa que Jesus, quando eventualmente voltar na glória, terá um pouco de dificuldade em reconhecer, foi fundada por Saulo, mais tarde chamado de Paulo. Sem ele, não teríamos nem o nome ‘cristianismo’ – os primeiros a se definirem como cristãos seriam os crentes de Antioquia, uma das comunidades onde Paulo pregou. Antes de Saulo, havia uma coisa que se chamava de ‘o Caminho’, pregada principalmente pelos ex-apóstolos de Jesus de Nazaré, ao qual aderiam de diferentes formas alguns judeus dispersos entre Jerusalém e Damasco. O Caminho girava em torno dos ensinamentos de Jesus transmitidos de forma oral: um dos primeiros a pôr algo por escrito seria justamente Saulo. Suas cartas (não todas realmente dele) fixam diversos pontos da teologia cristã que não poderíamos deduzir dos Evangelhos; afinal, até os Evangelhos foram escritos depois, e pelo menos dois são atribuídos a pessoas que em momentos diferentes colaboraram com o próprio Saulo: Marcos e Lucas. Com o primeiro, Saulo brigou, por motivos que não conhecemos. A sensação é de que ele tendia a brigar com todos, no fim das contas. É difícil se afeiçoar a Paulo. Grande parte das críticas que lhe são feitas nos últimos tempos são muito pouco generosas: é verdade, ele era misógino (…). É verdade, ele considerava a homossexualidade contra a natureza. Em suma, tinha as ideias de um pregador dos seus tempos. No Concílio de Jerusalém, porém, Saulo está na extrema esquerda: ninguém mais do que ele quer pôr fim aos projetos da velha Lei. Os outros são mais tradicionalistas (…). Mas é lícito se perguntar: se não fosse ele, haveria cristãos hoje? Talvez a seita dos adoradores de Jesus teria se tornado uma curiosidade dos livros de história da Antiguidade tardia, uma heresia nascida no seio do judaísmo e extinta após a destruição de Jerusalém em 70. Saulo é o típico personagem que chega por último e, de alguma forma, sabe mais do que todos” (pp. 90-91).
De Jerônimo, sabe-se apenas que traduziu a Bíblia para o latim, mas poucos sabem que a dieta vegetariana que ele praticava e pela qual uma jovem seguidora dele ficou seca, forçou-o, devido ao escândalo, a fugir de Roma e a se refugiar em Belém. Devido a esse exílio que durou anos, ele teve tempo de nos dar a Bíblia em latim. Jerônimo continuou sendo “um filólogo. Clássico. Ciceroniano. Se hoje lemos a Bíblia e encontramos os melhores argumentos para nem sempre dar ouvidos aos padres, devemos isso a ele (…). Entre o amor à Igreja e o amor à letra do texto, Jerônimo escolheu o segundo” (p. 133).
Entre as santas rebeldes, surpreendem a história de Mônica, aquela beberrona mãe de Agostinho. A mãe que nunca desiste do filho, convertido ao maniqueísmo, que havia tomado uma concubina e havia tido um filho com ela. Por longos 15 anos, Mônica foi uma ferrenha inimiga dessa concubina: “Podes pecar com quem quiseres, mas não com essa”, diz Mônica ao filho. No fim, venceu ela, que ficou com Agostinho.
Tondelli defende: “A suspeita é de que, mais do que o filho ela, foi ela mesma quem refundou o cristianismo. Uma religião de mães solícitas e sufocantes (…) Podes estudar, fazer carreira, todas as histórias que quiseres, mas elas estão ali te esperando no portão, na primeira queda, com a mamadeira pronta, que nunca deixaram de enchê-la, de oferecê-la” (p. 128).
Além disso, chama a atenção a história de Marina, uma virgem da Bitínia, órfã de mãe, que se escondeu na batina para ficar perto do pai. O disfarce foi tão eficaz que a santa foi acusada de ter engravidado uma camareira. Também é singular a deprimente história de anorexia de Catarina, padroeira da Itália.
Talvez, de todos os santos, os pobres de Cristo sejam os mais derrotados. E os mais admirado. “Desde a fundação da Igreja, cada século teve seus pauperistas que tentaram restaurá-la a seu estado de pobreza original. Não tiveram uma vida fácil (aliás, quase nunca)” (p. 170). De fato, a história de Francisco de Assis foi completamente apagada e reescrita algumas décadas após sua morte. Francisco de Paula, “um santo atualíssimo”, porque “ser eremita de sucesso é complicado”. Aleixo, o falso mendigo, é “o santo lendário mais estúpido que eu conheço” (p. 175), afirma Tondelli.
Dos santos rebeldes do século XX, Tondelli escolhe quatro: Maximiliano Kolbe, Wojtyla, Teresa de Calcutá e Padre Pio. “São figuras mais controversas do que no passado” (p. 261), reconhece Tondelli.
Acho que essa última parte é a mais fraca e a mais problemática de todo o livro.
O resultado geral do livro é que a leveza de seus 46 relatos breves deve ser considerada um valor e não um defeito.
É um professor. Já teve “meio milhar de alunos” (p. 255). Professor, acrescento eu, também ele “rebelde”, pois, ao narrar a história de Ambrósio, o único em Milão que “sabia ler sem falar, sem sequer mexer os lábios!” (p. 114), não batizado, organizador de uma orgia em sua casa com amigos e prostitutas para escapar da vontade popular milanesa de ser nomeado bispo, mas sem sucesso, Tondelli escreve sobre si mesmo: “Por ofício, ensino italiano para as crianças. E acredito nisso, estou convencido de que saber ler e escrever é fundamental. Porém, às vezes sinto nostalgia de quando todos eram crianças no mundo, quando a sociedade era um enorme jardim de infância, e bastava saber soletrar algumas linhas para ser um fenômeno” (p. 114).
Ele se autodefine como “uma pessoa medianamente honesta, que, sem ter feito nada extraordinariamente mau na vida, também não fez nada particularmente bom” (p. 284).
Ele também é jornalista. Há dez anos, publica uma coluna sobre o santo do dia no jornal Post, dirigido por Luca Sofri. Não é um especialista em santos, mas se considera “no direito de falar deles, como bom italiano, porque, assim como o futebol e a massa, os santos sempre fizeram parte da minha paisagem” (p. 7).
Ele se define como um “descrente superficial” (p. 7). Depois de ter lido o livro “Catálogo dos santos rebeldes”, “pode-se entender – escreve Tondelli – que ele fala dos santos, mas é escrito a partir da perspectiva de uma pessoa que não crê na santidade; que a considera um fenômeno humano e não divino. Eu queria escrever uma série de histórias interessantes e divertidas, e, certamente, não zombar de uma religião e de seus fiéis. Sinto um grande afeto pelos santos deste livro: sempre fizeram parte da minha paisagem e há alguns anos também fazem parte de mim. Não posso dizer que acredito neles, mas, ao longo do caminho, acabo os invocando cada vez mais frequentemente” (p. 9).
O destino dos santos canonizados é marcado pela patologia dos hagiógrafos, para citar Turoldo. Tondelli não sofre dessa patologia.
O homem secularizado tende a olhar e a seguir as excelências, a imitar e seguir quem tem poder e sucesso, e não se importa com os santos. O fiel adulto também não pode mais ser alguém para quem Jesus é opcional. As muitas, demasiadas hagiografias que até agora encheram as bibliotecas paroquiais podem se tornar papel de descarte. O fiel tem em Jesus o mediador perfeito, e nenhum batizado pode servir de mediação em relação a seus irmãos, mesmo que todos possam e devam interceder pelos outros.
Mas sejam bem-vindas, sem absolutizá-las, as vidas extraordinárias marcadas por atos heroicos, por uma total abnegação e por uma amorosa dedicação ao próximo. Sejam bem-vindos os verdadeiros reformadores, aqueles que mudam, que transformam, que desenvolvem e ressuscitam o caminho espiritual. Personagens que iluminam. Figuras fascinantes, rebeldes contra o status quo do mundo e da Igreja. Figuras humanas, não sagradas e por isso fortemente amadas.
A Igreja Católica tem muita necessidade hoje de “santos rebeldes”, capazes de uma provocação urgente àquele “gigante adormecido” – precisamente 99,7% dos batizados –, para que comece a despertar. Infelizmente, onde o Espírito os suscita, essa Igreja tem a tentação de reabsorvê-los, englobá-los e normalizá-los.
As histórias narradas no texto de Tondelli tiram do nicho alguns santos canonizados e os devolvem à sua dimensão humana. As 46 narrativas anedóticas idealmente se tornam idealmente uma só e dão origem a uma comunidade ideal de fiéis rebeldes. Não serão essas narrativas que superarão o duro momento em que se encontra o catolicismo. Mas, com a certeza de que o caminho da santidade para o ser humano de hoje passa pela rebeldia, por que não podemos parafrasear o axioma agostiniano, “si isti et illae, cur non nos?” (se estes e estas [conseguiram], por que nós não [conseguiríamos]?).
1. D. M. Turoldo, Il mio amico Don Milani non era come dite voi, in La Domenica del Corriere, 7 jul. 1977.
2. Leonardo Tondelli, Catalogo dei santi ribelli (Milão: Utet, 2022, 285 páginas).
3. “Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas” (São Paulo: Companhia das Letras, 1990). Disponível em italiano original aqui.
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Os santos rebeldes nos salvarão? Histórias fora do nicho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU