24 Setembro 2007
"Madre Teresa lembra com a sua vida que a verdadeira realização da pessoa inclui a transcendência para o próximo e para Deus Vai além do individual e subjetivo. Vai além do tempo e do espaço", afirma Pe. Quirino Weber, na entrevista que segue sobre Madre Teresa De Calcutá. Nesta entrevista, o Padre Quirino fala das crises de fé de Teresa, do seu vigor apostólico, sobre a Teologia da Libertação e outros assuntos. Para ele, Madre Teresa é "um exemplo a ser admirado e seguido".
Padre Quirino Weber, jesuíta, trabalha, atualmente, no Centro de Espiritualidade Cristo Rei - CECREI onde orienta Exercícios Espirituais e presta acompanhamento espiritual. A entrevista foi realizada por e-mail.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A imagem pública de Madre Teresa que mais ganhou força até recentemente é a de uma mulher de fé, um modelo de entrega de si, de doação até o extremo, mas não se conheciam suas crises de fé. O que traz de novo para a sua imagem esta revelação de suas crises de fé?
João Quirino Weber - As crises de fé de Madre Teresa de Calcutá são, certamente, uma surpresa, para muitos desconcertante ou até mesmo decepcionante e escandalosa; para outros, porém, são sinal inequívoco de confirmação de sua fé. A maior novidade está em que Teresa de Calcutá abra o seu coração para revelar o segredo mais profundo de sua vida de fé quando fala dos seus sofrimentos, saudades e escuridão interiores. O segredo desta mulher extraordinária está na união mística com o Deus da Vida. Deus se tornou nela a fonte inexaurível de energias para realizar com fidelidade inquestionável suas múltiplas e diversificadas atividades, a plataforma de lançamento de seu amor apaixonante pelos mais pobres entre os pobres. O que Madre Teresa vive e mostra em sua dedicação aos pobres ultrapassa tudo o que é puramente humano. Só o amor de Deus que ela acolheu com fé em si mesma até as últimas conseqüências, amor que ela transformou em caridade heróica, explica sua vida de doação irresistível aos marginalizados da sociedade. Nela não sobra “nada” de humano, para deixar agir somente o divino. E, desta forma, ela se torna “tudo” para os seres humanos. Mais “humana do que o simplesmente humano”. “Tão humano que não pode ser meramente humano”, afirmam autores quando falam de Jesus. Assim foi Jesus Cristo que amou até o extremo, até a loucura da Cruz. S. Paulo qualifica o amor de Jesus com duas apalavras que nos chocam: loucura e sabedoria (Cf. 1 Cor 1,22-31). Jesus define o grande objetivo de sua encarnação: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10). Madre Teresa deu “espaço” ao divino e assim vivia e praticava o “excesso divino” que, de formas diferenciadas, está presente em cada pessoa. As crises de fé de Madre Teresa revelam o “vaso de barro” que é o ser humano, “para que transpareça claramente que este poder (no original se usa a palavra dinâmica) extraordinário provém de Deus e não de nós” (Cf. 2 Cor 4,7).
A fidelidade e a perseverança de Madre Teresa no serviço difícil, duro e, por vezes, questionado, aos pobres só se compreendem porque o mesmo amor de Deus nela atuante nunca cansa, nem desiste. Teresa era nada. Deus era tudo. Esta novidade, na qual muitos hoje não acreditam, faz com que Teresa tenha hoje tantos e tantas seguidoras, que estão continuando com entusiasmo o mesmo serviço aos pobres com gratuidade e enormes sacrifícios. Mas estes sacrifícios são “pequenos” diante da alegria de poder fazer o bem. Dar a vida para ganhar muitas vidas. Isto não é teoria. Isto é realização que supera qualquer forma de egoísmo. É o sacrifício da mãe junto ao filho enfermo, durante noites, porque o amor de mãe é maior do que o sacrifício da noite não dormida. Por isso, devemos aprender a fazer uma nova leitura da personalidade de Madre Teresa, uma leitura que penetra muito além do meramente visível para alcançar o transcendente.
IHU On-Line - Como entender o vigor de Madre Teresa no seu testemunho de bondade no agir apostólico, em meio à tal crise de fé e experiência de solidão? De onde tirava sua força em meio a uma experiência tão profunda de vazio interior?
João Quirino Weber - A fonte de todo este vigor apostólico é Deus. O vazio interior é apenas o espaço para que Deus possa agir. Quem acompanha pessoas em sua caminhada espiritual e apostólica sabe que quanto mais a “semente da pessoa morre para si mesma”, tanto mais se realiza, maior felicidade alcança, mais eficaz e perseverante benefício se torna para o bem comum. Teresa de Calcutá, antes de lançar-se totalmente ao serviço de dessedentar os pobres em sua sede de vida, se dizia a Irmã mais feliz do mundo. “Se a semente não morre, fica só. Mas se morre, produz muito fruto”. A “primeira felicidade” de Madre Teresa passou para a “segunda felicidade” depois que a sua experiência pessoal de doação e de fé se tornou totalmente de Deus e do próximo, ficando nela apenas a “saudade” ou a “ausência”, como experiência totalizante (Pedro Arrupe) real, integradora e realizadora. Este paradoxo causa para muitos resistência como um absurdo. Mas, de fato, o caminho da vida humana, para ser um caminho de felicidade, passa pela mais radical alteridade da transcendência de Deus e do próximo. Só assim vem o “retorno” mais inefável, que só os verdadeiros míticos, tanto no cristianismo como em outras religiões, experienciaram. Poderíamos citar várias palavras de Madre Teresa, afirmando a sua “segunda felicidade. “Deus quer tirar de mim até a última gota do eu ... Mas a resolução do meu retiro foi o mesmo cordial SIM a Deus e um grande SORRISO para tudo. Parece-me que estas duas palavras são a única coisa que me faz continuar caminhando” (P. Albert Huart, sj, Mother Teresa: Joy in the night, em Review for Religious, 2001, p.498). “A única coisa que fica é a profunda e forte convicção de que a minha obra é DELE” (Ibid. p.499). No dia 17 de outubro de 1958, por ocasião da missa de Réquiem pelo falecido papa PioXII, Madre Teresa escreve: ”Lá e então desapareceu a longa escuridão, o sofrimento de perda, de solidão, do estranho sofrimento de 10 anos. Hoje a minha alma está cheia de amor, de alegria inefável, de um inquebrantável vínculo de amor” (P. J. Neuner, sj, Mother Teresa´s Charism. Review for Religious, 2001, p.483).
Será que o profeta Jeremias não viveu o mesmo paradoxo quando fala: “Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir! ...A palavra de Javé se tornou para mim opróbrio ... Já não falarei em seu nome ...Então isto era em meu coração como fogo devorador, encerrado na medula dos meus ossos...!” (Jer 20,7 ss)?
De fato, o Espírito de Amor de Deus desperta e leva a pessoa a um “êxodo, uma saída de si mesma”. O Espírito do Senhor rasga qualquer limite e sopra onde quer; altera o espaço interior para viver no espaço do outro; não se restringe mais a um espaço fixo; altera o tempo cronológico para o tempo de Deus (kayrós); altera a norma para viver a imensidão inefável de Deus. Finalmente, o Espírito altera toda a forma humana em divina. (Conforme Maria Clara Bingemer, Um rosto para Deus?,p. 147-154).
Silêncio de Deus? Sim, enquanto não é a realização da mulher Teresa em seu mundo pessoal. Mas não silêncio de Deus enquanto Teresa se torna mãe de milhares e milhares de pessoas que falam e gritam alto ao seu coração possuído pelo Espírito de Deus. As palavras existenciais dos pobres gritam a palavra de Deus. E, como resposta, Teresa gera vida quase ao infinito. Vale a pena recordar o fato de sua conversão radical para ajudar os pobres. Ainda servindo no Colégio de Calcutá, das Irmãs de Na. Sra. de Loreto, certo dia, Teresa tomou o ônibus para fazer uma volta pelos bairros pobres de Calcutá. Olhando para aquelas pessoas emagrecidas, sofridas e esquálidas, quase morrendo de fome, ela escuta fortemente o grito de Jesus Crucificado: “Tenho sede”! Os pobres das periferias de Calcutá eram os pobres crucificados gritando: Tenho sede! Homens. Mulheres. Jovens. Crianças. É este o silêncio de Deus? A partir daquelas vozes e daquele momento a voz de Deus nunca mais calou no coração de Madre Teresa. Então, a paixão de Jesus Cristo pela humanidade se tornou a paixão de Teresa pelos pobres. Teresa escreve: “Tu me pediste para imprimir em meu coração a tua Paixão. E a resposta? Vazio. Escuridão. Solidão. Saudade. Se isto Te traz glória, se isto te leva uma gota de alegria, se isto leva almas para junto de Ti, - se o meu sofrimento sacia a Tua sede – eis me aqui, Senhor. Com alegria aceito tudo até o fim da minha vida. Eu quero sorrir diante de Tua face escondida, sempre” (sem data. Cit. em Albert Huart, id., p. 496). Teresa deixou a Congregação e fundou outra. Sozinha não poderia “dar de comer a tantos esfomeados”. Não é aqui o lugar para reunir as estatísticas que confirmam abundantemente a abrangência da vida e da missão de Madre Teresa. São milhares e milhares que “aprenderam a amar como Jesus e como Madre Teresa”, porque impulsionados e motivados pelo mesmo Espírito de amor. Só em Calcutá existem hoje 19 Casas de Acolhida; em toda a Índia são mais de 600 “Refúgios para os pobres”. Hoje, as Irmãs Missionárias da Caridade vivem e trabalhem em mais de 133 países. Mais de um milhão de voluntários leigos e leigas se dedicam aos pobres nas instituições de Madre Teresa. De onde lhes vem a força? É o Espírito que rompe todos os limites.
IHU On-Line - Que aspectos humanos e religiosos precisam ser levados em conta para se compreender uma experiência espiritual caracterizada pelo silêncio de Deus por tanto tempo?
João Quirino Weber - Não é possível entrar profundamente nesta pergunta por ser muito abrangente. Basta elencar alguns aspectos, sem maiores explicações nem priorizações. Nunca vamos captar e compreender o que é uma tal experiência, porque é muito mais do que qualquer conceituação. Tais experiências revelam uma personalidade “forte”, integrada, livre e disponível, capaz de enfrentar dificuldades com sacrifício, bem alicerçada em seus valores assimilados e inegociáveis, paciente no cultivo diário de sua identidade, generosa para além de qualquer calculismo de resultados. A ação de Deus em tais pessoas escapa a qualquer previsão ou expectativa humanas. A pessoa deve deixar-se configurar com a pessoa e a vida de Jesus Cristo. Só pelos frutos se conhece a força de Deus que age, conduz, ilumina, fortalece a pessoa para além do que é compreensível de forma meramente humana. Aliás, o meramente humana não existe. Existe o diferenciado humano de pessoa para pessoa. Existe também o diferenciado divino segundo o projeto da Providência de Deus. Por isso, pessoas não se comparam, porque não todos têm a missão de um Santo Inácio, de uma Teresa de Calcutá, de um João XXIII.
IHU On-Line - Seria possível confrontar-se tão de perto com a realidade da miséria e do sofrimento injusto sem levantar a questão (?) sobre Deus? Que aproximações e distanciamentos existem entre a experiência de Teresa de Calcutá e a questão de Deus na Teologia da Libertação?
João Quirino Weber - Sem entrar em pormenores, a prática existencial de Teresa e a Teologia da Libertação se complementam. Deveriam complementar-se. Pois a Teologia da Libertação procura fazer da reflexão teológica uma prática e não uma mera ciência, uma mera conceituação reflexiva. Mais: a Teologia da Libertação valoriza a realidade do povo em sua conjuntura concreta como um “lugar teológico” para conhecer os caminhos e a vontade de Deus, além da Bíblia, da Tradição e do Magistério da Igreja De fato, amar a Deus e ao próximo são valores e atitudes inseparáveis. Toda Teologia deve partir da experiência da fé e levar para a prática da fé em obras. Fides quaerens intellectum, dizia Santo Agostinho. Esta palavra não deve ser apenas um chavão. É afirmação desafiadora para todos os que querem ser peritos em Teologia.
Aproximações e distanciamentos? Sem querer julgar ninguém, podemos afirmar que Madre Teresa viveu intensa e autenticamente, com todas as conseqüências, o lugar teológico do povo em necessidades vitais. Pergunto: a Teologia da Libertação pensa e faz o mesmo que Madre Teresa, sem revoltas além da “santa indignação”, sem condenações de pessoas além dos “erros e males causados”, sem omissões de fáceis e superficiais justificativas?
IHU On-Line - A experiência de vazio interior e de silêncio de Deus numa pessoa tão próxima do sofrimento e da miséria nos remete à grande questão da teodicéia: “Se Deus existe, por que o mal e o sofrimento”? Que paralelos se podem fazer com outras situações da história judaico-cristã da experiência de Deus e da história do sofrimento?
João Quirino Weber - Questão complexa que nunca terá uma resposta teórica satisfatória, na minha opinião. Vale a pena estudar o livro do Pe. Andrés Terra Queiruga, Esperança, apesar do mal, A ressurreição como horizonte (Paulinas, 2007). Outro livro é de Fr. Luiz Carlos Susin, A criação de Deus, vol. V da Coleção Teologia Sistemática, SIQUEM, 2003 (cf. capítulo V, "O sofrimento da criação", p. 119-151). O sofrimento tem a sua primeira raiz na própria “finitude humana”. O sofrimento e o mal nunca deveriam ser objetivo intencional do ser humano. De fato, o são, e muitas vezes. É o mal planejado, longamente planejado para ter um alcance maior e mais desastroso. É a-normalidade do outro extremo. Não é a “a-normalidade” do Amor heróico “até o extremo”.. .
Que paralelos? A própria experiência de Jesus no Getsêmani e na Cruz nos ensina a força da fidelidade à missão salvífica recebida do Pai, mesmo no contexto de condenação e morte por parte das autoridades legítimas. A vontade do Pai não era a morte na cruz, mas que mesmo tendo que morrer na cruz, Jesus fosse salvador. Lembremos de Padre Maximiliano Kolbe que se oferece para morrer de fome em lugar do “sorteado”, no campo de concentração nazista. De Santa Edith Stein, filósofa e carmelita, nas mãos de criminosos nazistas no caminho da morte na câmera de gás. Do pastor Albert Schweitzer, que deixa a cátedra universitária na Alemanha para dedicar sua ciência, vida e amor aos leprosos na África. De Charles de Foucauld, que se fez peregrino entre os beduínos dos desertos.
IHU On-Line - O caminho de crescimento espiritual de pessoas como João da Cruz, Thomas Merton, Teresa de Ávila, Teresinha de Lisieux, e Inácio de Loyola também é marcado por crises de fé. O que há de comum entre estas experiências? Que relação há entre a “noite escura” dos grandes místicos e o tema da “desolação” de Inácio de Loyola?
João Quirino Weber - Só acontece a crise de fé nas pessoas que têm fé. A pessoa que não tem fé não pode ter crise de fé. A crise não é uma negação da fé. Antes uma afirmação da fé. A crise é necessária para o crescimento espiritual, pois é um modo e um tempo para “julgar” e avaliar as motivações da fé e a sua prática. As motivações devem ser submetidas a constantes avaliações porque as exigências e as circunstâncias da vida humana mudam ao longo da história e da idade de cada pessoa.
O que há de comum nestas crises? Todas as experiências de fé têm em comum uma “descentralização da pessoa que culmina numa mais profunda personalização” e conseqüente libertação. Este processo passa pela superação de todo tipo de egoísmo, individualismo e subjetivismo. Deste processo fazem parte “a noite escura” dos sentidos e do espírito (na linguagem de S. João da Cruz), o “silêncio de Deus”, as desolações, e encontra a sua expressão máxima na assim chamada “teopatia”, que é, precisamente, a experiência do sofrimento da “ausência de Deus como uma forte presença do desejo”.
Existe uma vasta bibliografia sobre estes temas a partir de S. João da Cruz. Recomendo Sandra M. Schneiders, I.H.M., Finding the Treasure (Paulist Press, 2000), parte dois, que trata com competência da transformação ativa e passiva da vida no Espírito.
Trata-se da experiência da “morte” para afirmar a vida do verdadeiro amor, que sempre é com-vida, de alteridade, de gratuidade. Todas as experiências verdadeiramente humanas passam “necessariamente” pela descentralização e pelo conseqüente sofrimento. Citemos a maternidade, a paternidade, a fraternidade, a amizade e até a vida conjugal. Quantas mães passam noites a fio junto ao leito do filho enfermo. E sem se queixar. Este sofrimento como que as torna mais mães. Não propriamente o sofrimento como tal, mas a consciência de responsabilidade que se cria no contexto da dor. Há mães que passam uma vida inteira heróica para cuidar de um filho paraplégico, mongolóide. A dor que acomete a mãe quando tal filho morre é maior do que de outro filho que nunca inspirou tantos cuidados.
A desolação em S. Inácio significa “aversão a Deus” em contraposição à consolação que é atração para Deus. São experiências rigorosamente contrárias entre si. A desolação, porém, pode ser conseqüência de negligência ou de pecado, ao passo que a noite escura é sempre graça de Deus. A desolação também pode ser graça de Deus. Então significa o mesmo que noite escura, mas abreviada.
IHU On-Line - Que paralelo se pode fazer entre a experiência destas pessoas e o que se passou com Madre Teresa? Sua experiência de “vazio interior” e “aridez espiritual” seria uma expressão moderna ou pós-moderna dos temas clássicos da “noite escura” ou da desolação na mística cristã?
João Quirino Weber - As expressões variam e podem mudar. Mas a realidade experiencial é a mesma. Teresa não é exceção no caminho da mais profunda santidade e caridade cristãs. Não há pessoas que tenham tanta paixão pela humanidade do que os grandes místicos. Esta afirmação e constatação vale igualmente para os místicos fora do cristianismo. Porque são pessoas “mais divinas, por isso têm um amor mais universal e produzem frutos mais universais”. Isto pode ser uma boa paráfrase do que S. Inácio escreve nas Constituições da Companhia de Jesus: “sendo o bem tanto mais divino quanto mais universal” (n.622). Naturalmente, S. Inácio avalia o divino pela fruto mais universal. Aqui entendemos também a mesma verdade quando afirmamos que a comunhão com Deus quanto mais profunda maiores frutos universais produz. Todo “divino” - ou como quer que se chame - é universal concreto para todos e para todos os tempos. Por isso, o divino nunca exclui nem marginaliza. Sempre acolhe, inclui, promove, consola para construir o Reino da “inclusão”.
Naturalmente, a experiência do “divino”, tanto como “sofrimento” quanto como “amor universal concreto”, cobre uma gama quase infinita de intensidade, de abrangência, de repercussão e de irradiação. Permanece, porém, sempre a qualidade da experiência, seja em S. João da Cruz, em S. Teresinha de Lisieux, a padroeira das Missões, em S. Inácio e em Francisco de Assis, seja na pessoa mais simples e anônima que vive na cotidianidade a alegria do serviço gratuito ao próximo, na família e/ou no trabalho profissional. A qualidade sempre é: “Sofrer a ação de Deus em benefício do próximo”. Este é o caminho que mais profundamente realiza qualquer ser humano criado à imagem e semelhança de Deus.
IHU On-Line - Qual é a importância do legado espiritual de Madre Teresa para nossos dias? Que lições podemos aprender de sua experiência?
João Quirino Weber - A maior lição e legado que Madre Teresa nos deixou é a sua solidariedade com o ser humano, procurando resgatar a sua dignidade como pessoa nas situações mais miseráveis. Ela viveu a solidariedade a partir da força divina. Com esta atitude coerente até o fim da vida, Madre Teresa atraiu e continua atraindo pessoas para o serviço da solidariedade. Madre Teresa defendeu pela prática da vida, muito mais do que pelas palavras, os direitos e os deveres de cada pessoa. Lembrou à humanidade que os bens da terra e da ciência devem ser distribuídos para todos, para atender às necessidades básicas do ser humano: saúde, educação etc. Madre Teresa lembra com a sua vida que a verdadeira realização da pessoa inclui a transcendência para o próximo e para Deus vai além do individual e subjetivo. Vai além do tempo e do espaço.
Madre Teresa aponta o caminho para a mística que exige um comportamento ascético. A razão de ser é ser pessoa. Mas a pessoa só é ela mesma quando e na medida em que sai de si mesma ao encontro do outro, criando e cultivando relacionamentos de gratuidade. Esta é a dimensão mística da pessoa, interagindo com o próximo e com o próprio Deus, como fontes e metas da verdadeira vida. A dimensão mística dita o grau, a medida, a intensidade, a qualidade e a quantidade da ascese, isto é, do sacrifício, da doação, do serviço até atos heróicos, do morrer para viver.
Tudo isto é importante para nós hoje, nós que vivemos e somos marcados por uma realidade que nos convida e contagia na direção de uma vida sem mística nem ascese. Predomina o individualismo, a “lei de gerson”, a pedagogia do “ataque-defesa”, a lei do mais forte. As conseqüências são a marginalização, as massas sobrantes, as guerras, as 24.000 mortes diárias de fome. Periódicos e TV fazem da miséria humana o seu conteúdo principal, como sensação para conquistar leitores e espectadores. Direta e indiretamente apóiam as causas da “miséria humana”, enquanto pensam e falam segundo os critérios da opressão, da exploração e da marginalização. De fato, só reclamam medidas urgentes para sanar as conseqüências da conjuntura. Reclamam e exigem mais “panos” (armas, recursos humanos e materiais, grades, cadeias, etc.) para “secar o charco do mal”, sem se dar conta de que é preciso fechar “as torneiras das águas malignas”. As armas da desumanização se multiplicam. Madre Teresa nos mostra outro caminho, que não basta ser admirado, mas deve ser seguido: o caminho da solidariedade. Movidos pelo exemplo da Madre Teresa, milhares e milhões de seres humanos do sub-mundo são hoje assistidos, promovidos, resgatados, por outros milhares que encontraram no serviço aos mais pobres o caminho de sua mística realizadora. Muitos dos mais abandonados, no fim de sua vida marginalizada, pela primeira vez encontram ou re-encontram “corações, colos e braços de mães” segundo o exemplo de Madre Teresa de Calcutá, que procuram resgatar, pelo menos em parte, a dignidade do ser humano. Os Evangelhos nos relatam que Jesus tocava os enfermos, os pecadores, as crianças, e se deixava tocar por eles. Madre Teresa também tocava os mais excluídos dos nossos irmãos e irmãs, e se deixava tocar por eles. Tanto em Jesus como em Madre Teresa trata-se de um toque físico, concreto, real e, ao mesmo tempo, espiritual, cordial e buscado. Um exemplo a ser admirado e seguido.
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As cartas de Madre Teresa de Calcutá. Entrevista especial com João Quirino Weber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU