07 Novembro 2022
"Os fanáticos estão organizados em círculos de zap com poder de convocatória. Se no momento da derrota eles foram capazes de fazer este auê, o futuro nos reserva dificuldades, pois desarmar o monstro vai demorar. Muitas das mentiras que mobilizaram este povo serão desmentidas pelo quotidiano", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971, fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983, membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
Segundo ele, "mais difícil vai ser desarmar a oposição das classes A e B, cujo anticomunismo se confunde com o racismo, misoginia, o ódio aos LGBTQIA+, o desprezo pelos pobres e pelos nordestinos, o moralismo de fachada".
O que estamos assistindo, compas? É uma tentativa de golpe de Estado? Um rito de passagem de um governo que já acabou? Um chororô dos fanáticos do mito? Um ensaio geral para a oposição ao Lula?
Há algo muito confuso ainda nestes eventos após a gloriosa vitória do bem contra o mal, da democracia contra a ditadura, da humanidade contra a barbárie.
O script do golpe planejado por Bolsonaro estava escrito há tempos. Derrotado, ele clamaria contra a “fraude eleitoral”, denunciando o TSE e pedindo a anulação das eleições, o Estado de Sítio ou qualquer outra decisão que lhe desse plenos poderes. Os estrategistas do Planalto, general Heleno à frente, sabiam que qualquer medida de excepcionalidade teria que passar pelo Congresso e que este dificilmente votaria a favor sem uma forte pressão de um país conflagrado e uma ainda mais forte pressão das FFAA. Portanto, a derrota teria que ser seguida por movimentos de massa gigantes, cobrando as ditas medidas. A paralisação das rodovias federais era outra ação importante, até porque não precisava de muita gente para ser executada em cada local, sobretudo com a colaboração da PRF e a inércia das polícias estaduais. A mobilização dos CACs e seus clubes de tiro para atacarem alvos da esquerda era outra possibilidade a ser acionada. Todos estes atos terroristas foram amplamente convocados nas redes sociais, para o caso de uma “injustiça eleitoral”. Líderes caminhoneiros convocaram seus pares a se prepararem para fechar as estradas e a militância, armada ou não, foi chamada a ocupar os locais de votação “até o fim das apurações”.
Mas em tudo isso havia uma premissa fundamental: as FFAA estariam de acordo com este esquema e prontas para dar apoio ao mito, quando convocadas. Bolsonaro contava com a simpatia militante da oficialidade jovem, os comandos de tropa, os coronéis, capitães e tenentes que há anos gritam “mito, mito” nas cerimônias de formatura na Academia Militar das Agulhas Negras. Era e é um apoio real à disposição do energúmeno, mas até que ponto? Estariam dispostos a romper a hierarquia e agir sem o comando de seus superiores, em particular os generais do Alto Comando do exército? Bolsonaro sabia que contava com o suporte dos comandantes da Marinha e da Aeronáutica, mas os 16 generais de três estrelas que dirigem o exército eram mais reticentes, quando não avessos aos desmandos do mito. Para contaminar a alta oficialidade, o presidente precisava de um bom pretexto, uma clara evidência de fraude eleitoral. Daí a pressão no seu aliado à frente do Ministério da Defesa, buscando cavar dúvidas no processo eleitoral com um “monitoramento paralelo”.
Não deu certo, e o máximo que Bolsonaro conseguiu foi que, o tal monitoramento não fosse divulgado antes do segundo turno, um absurdo ao qual se prestou o Ministro. Mas na bucha do segundo turno, Bolsonaro já sabia que não podia contar com a generalada. A ideia de apelar para os oficiais de nível médio era de alto risco, pois chamar a insubordinação levaria Bolsonaro diretamente para uma cadeia militar, a não ser que o levante ocorresse. Sobrou a fórmula de promover manifestações na porta dos quartéis para insuflar a oficialidade. Mas sem uma articulação concreta com estes oficiais seria preciso realmente uma grande conflagração nacional para que tomassem a iniciativa de se rebelarem ou pressionarem seus superiores para que dessem a voz de comando para a ação.
As coisas foram ficando cada dia mais difíceis para Bolsonaro e ele passou a apostar apenas na estratégia do Centrão, ou seja, derramar mais e mais dinheiro para comprar votos, usar a pressão dos governadores aliados para enquadrarem prefeitos, levando-os a chantagear os beneficiários do Auxílio Brasil, ameaçando-os de perder o recurso. Apelaram também para seus apoiadores entre os empresários e estes corresponderam com força, ameaçando seus funcionários de demissão se Lula fosse eleito. A máfia dos “pastores de negócio” jogou pesado e ameaçou seus fiéis com o fogo do inferno e na exclusão de suas igrejas.
Bolsonaro passou a acreditar que ia ganhar. Eram apenas 6 milhões de votos no caminho até o paraíso. Quase deu certo. Afinal de contas, o Centrão é bom neste jogo e os recursos eram inigualados em qualquer eleição, aqui ou no resto do mundo. A máquina empresarial e pastoral era gigantesca. Mas não foi suficiente.
Já que a bola não caiu na búlica (urnas), ela tinha que tecar outra bola (FFAA) para ganhar. A alternativa sempre presente de provocar as condições de um golpe tinha que ser acionada. Mas nada deu certo desde o momento em que o TSE proclamou a vitória de Lula. O script do golpe exigia que o líder assumisse a iniciativa, denunciando a “fraude” e chamando os seus apoiadores para a ação. Bolsonaro não fez isso. Foi chorar no banheiro e tomou um calmante para dormir cedo, enquanto o país explodia de alegria nas ruas e nas praças. Que aconteceu? O mito se escondeu e se calou, mesmo depois que sua base mais alucinada tomou a iniciativa (por conta própria?) de começar a paralisar as rodovias. Este movimento, contando com a colaboração passiva (e até ativa) da PRF, se espraiou Brasil a fora e, em menos de dois dias, chegou a interditar quase mil pontos das rodovias, sendo que quase 200 deles eram bloqueios totais de circulação. O TSE roncou forte e cobrou ação da PRF e, para o caso de não ser atendido, liberou as polícias estaduais para intervirem nas estradas federais. Manobra arriscada, já que o bolsonarismo é forte entre estes “agentes da lei”. As forças de segurança do estado, federais e estaduais, agiram devagar e de forma muitas vezes leniente, mas a medida em que o mito se mantinha em silêncio e a reação da sociedade foi se mostrando, começaram a desarmar os bloqueios.
Algumas coisas têm que ser ainda clareadas. O que levou à paralisia do energúmeno? Segundo alguns analistas, Bolsonaro se sentiu traído e abandonado por seus pares políticos, a começar pelo Centrão. Artur Lira aceitou os resultados em tempo recorde, seguido por Tarcísio, Damares, Zambelli, Mourão, Ricardo Salles e até pelo seu próprio filho Flávio, todos aceitando que o “jogo estava jogado”. Algumas das maiores lideranças entre os “pastores de negócio”, como Edir Macedo e Malafaia, tomaram o mesmo caminho. Por outro lado, Bolsonaro já sabia que não teria guarida entre os generais e que não tinha elementos para questionar os resultados das urnas. Desarmado, não teve coragem para dar o passo mais arriscado, convocar seus apoiadores para o confronto.
Se isto for verdade, fica uma outra pergunta. Quem liderou as mobilizações do script golpista? A base bolsonarista se moveu sem apoio, nem conclamação do seu mito. Depois dos bloqueios dos caminhoneiros, que alguns dizem que estavam mais para locaute (ações dos donos das empresas de transporte) as massas ululantes do bolsonarismo partiram para provocar o levante das tropas, com uma impressionante mobilização de massas se instalando na porta de quartéis, em todos os Estados do país, mais o Distrito Federal, com exceção apenas do Amapá. Foram quase 50 atos, em todas as capitais e em várias cidades menores. Alguns deles tiveram dezenas de milhares de fanáticos, urrando para os soldados aderirem às manifestações. Outros foram de menor porte, mas ainda assim significativos.
As manifestações pediam “intervenção federal” e, entre os mais radicalizados, “intervenção militar”. Em uma faixa se podia ler uma síntese do radicalismo: “queremos os três poderes, exército, marinha e aeronáutica”.
Havia uma confusão entre o previsto e a realidade na hora da ação. A intervenção federal, tinha que ser pedida por Bolsonaro e votada pelo Congresso e o líder estava calado, desautorizou os bloqueios e deu um apoio chocho às manifestações, dizendo-as justificadas pela “revolta contra a injustiça eleitoral”. Mas ele não insuflou os atos nem denunciou as eleições, tirando o pretexto dos manifestantes. A convocação mais radical, a de intervenção militar, era mais consistente com a ausência da liderança do mito. No entanto, o fato mais importante neste dia 2/11, nenhum soldado saiu de seu posto para confraternizar com as massas ululantes que pediam a sua intervenção. E vários generais disseram, em “offs” quase escancarados, que as FFAA não pretendiam “estar nesta foto”.
Hoje, dia 4 de novembro, o mundo girou e Bolsonaro ficou para trás. Nem ganhou as eleições, nem deu o seu golpe. Os governos de todas as partes reconheceram a eleição de Lula com júbilo evidente e em tempo recorde. As forças políticas se puseram em movimento para encontrar um lugar no novo quadro do poder nascente. Os procedimentos usuais de uma transição começaram a ser adotados, apesar da má vontade e má educação do energúmeno. O eixo da política transferiu-se para onde está a antiga oposição e para onde está o Lula e Bolsonaro está para acordar um dia destes com os servidores do Palácio se esquecendo de preparar o seu café da manhã.
Alguns analistas acham que a cúpula bolsonarista se dividiu e que as manifestações foram a aplicação do script golpista previamente definido, mobilizadas pelos inconformados com a derrota e com as traições. Eduardo “bananinha” estaria entre estes tristes quixotes, assim como o general de maus bofes, Heleno. Com a capitulação do mito, será que as manifestações de inconformismo vão continuar? Aqui no Rio de Janeiro circulam mensagens no Whatsapp, convocando um comício para a mesma hora e local de um evento de celebração da vitória do Lula. Duvido muito que o bolsonarismo se apresente em massa, mas bastam alguns provocadores armados para fazer uma baita confusão. Se houver enfrentamentos, feridos e mortos eles terão o que querem, manter a tensão política em estado de fervura. Por outro lado, os democratas não podem se intimidar com estas ameaças, pois teria o perigoso efeito de encorajar novas provocações.
Antes de encerrar este artigo, quero comentar a informação proporcionada por um democrata que se misturou aos manifestantes na porta do quartel do comando militar do Leste. Segundo ele, havia uma mistura de classes, com dondocas e populares se misturando no fervor golpista. Muitos populares, sobretudo evangélicos. Muitas cabeças brancas, mas também muitos jovens e até crianças. O observador comparou com manifestações bolsonaristas em Copacabana, onde predominavam as classes A e B e gente mais velha. O peso da adesão das igrejas pentecostais mudou o perfil da manifestação de anteontem. Cenas de delírio foram observadas com assombro. Rezas, cânticos religiosos, apelos piedosos por fiéis ajoelhados na chuva, pedindo a salvação contra a “ameaça comunista”. Apelos para uma intervenção militar e o fechamento do STF. Boatos ensandecidos circulando e provocando reações de exaltação: Bolsonaro vai decretar a “intervenção federal”, “Alexandre de Moraes está preso”, as FFAA deixaram os quartéis em Brasília (ou em Belo Horizonte, ou São Paulo). Muitos conclamavam a multidão para ficar ali até que se esgotassem umas míticas 72 horas, depois das quais Bolsonaro poderia conclamar ... o que mesmo? Mas a chuva, o frio, o silêncio do mito e a firme disposição dos soldados em não deixar ninguém se aproximar, desanimaram a multidão. No dia seguinte, nem uma centena estava por ali pegando um resfriado.
Para concluir: os fanáticos estão organizados em círculos de zap com poder de convocatória. Se no momento da derrota eles foram capazes de fazer este auê, o futuro nos reserva dificuldades, pois desarmar o monstro vai demorar. Muitas das mentiras que mobilizaram este povo serão desmentidas pelo quotidiano. Lula não vai acabar com o Auxílio Brasil, vai só trocar o nome. Lula não vai fechar as igrejas. Lula não vai soltar os presidiários. Etc. Mas o maior impacto para desarmar os espíritos dependerá das políticas sociais, do combate à fome, do aumento e da melhoria da qualidade do emprego, do aumento do salário-mínimo, do funcionamento das escolas com uma boa merenda escolar para começar, da recuperação do SUS e do acesso aos medicamentos.
Mais difícil vai ser desarmar a oposição das classes A e B, cujo anticomunismo se confunde com o racismo, misoginia, o ódio aos LGBTQIA+, o desprezo pelos pobres e pelos nordestinos, o moralismo de fachada. Para muitos desses, o melhor seria seguir o caminho de Zambelli e ir para Miami, onde a deputada assegurou que tinha uma agenda de contatos com autoridades. Devem ser o Pateta e o Mickey.
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O que é isso, companheiros? Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU