10 Outubro 2022
"Depois do nosso Velho Continente, se a escalada não parasse, ainda poderia haver tempo e 'história' para outro abismo, que se abriria no Pacífico. Vamos encarar a realidade. Chega da estupidez das chancelarias imperiais e da dimensão mais diabólica de sua ação: a estupidez. E para descer, na cacofonia do debate público, basta com a agressiva opinião da estupidez beligerante. Que as verdadeiras pessoas sejam ouvidas: aquelas que pensam e que têm coração", escreve Eugenio Mazzarella, filósofo, em artigo publicado por Avvenire, 07-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Onde há perigo, cresce também o que salva.”
São duas frases de Friedrich Hölderlin, que Martin Heidegger meditou ao ler uma "questão da técnica", aquela que havia se tornado nuclear, da qual não estávamos, e infelizmente ainda não estamos, à altura moral. São palavras que podem nos ajudar a entender que somente um olhar franco para o abismo pode nos ajudar a escapar de cair nele. O abismo é o que vimos em Hiroshima e Nagasaki, e hoje está se abrindo diante da Ucrânia. Vamos olhá-lo na cara, nos cenários que nos propõe.
Em primeiro lugar, vamos retirar do campo o cenário mais perigoso, porque é mais ilusório. Que na Ucrânia e através da Ucrânia, se possa chegar a um colapso da Rússia sem que isso culmine em um confronto nuclear, ainda que com armas atômicas 'táticas'. Uma idiotice de propaganda bélica do Império do Bem que seríamos nós ocidentais, da qual Henry Kissinger, que entende um pouco do assunto, nos adverte, convidando o Ocidente a oferecer uma saída para Vladimir Putin, justamente porque ele está 'derrotado' no plano do confronto militar convencional com o fracasso de sua 'operação especial'.
Para a Europa e o Ocidente, no plano militar convencional, a Rússia não é evidentemente uma ameaça. Ir além seria uma aventura. Um estúpido jogo de pôquer, que já estaria perdido na próxima jogada. Entregaria a Rússia à China, ampliando a eficiência militar de sua projeção imperial.
Pior ainda é o cenário do colapso do sistema estatal russo, que o putinismo encarnou (bem ou mal, e mais mal do que bem para a Rússia e para o mundo) após o colapso da URSS, sobre o qual algum idiota útil do abismo alardeia como meta a atingir. A China chegaria diretamente ao polo ártico, e surgiria o problema da ingovernabilidade do arsenal nuclear russo, a menos que se imagine que uma ou duas forças policiais imperiais (aquela ocidental, basicamente EUA, e aquela chinesa) o requisitem das ‘entidades’ que vierem a nascer do colapso do Estado russo, para colocá-lo em segurança, um pouco como foi feito após a queda da URSS, trazendo de volta, com o consenso de todos, nas fronteiras e sob o controle da Rússia todo o arsenal nuclear já presente na própria Ucrânia. Seria um mundo absolutamente mais perigoso do que este já perigosíssimo.
O outro cenário, a liberação do uso tático das armas nucleares, é uma loucura, que é um dever sequer imaginar: na hipótese mais favorável ao Ocidente (ou seja, que não seja o primeiro passo de um confronto nuclear global que seria a pura aniquilação da civilização humana; e depois a favor de 'qual' Ocidente?), segundo a lição de Chernobyl, isso significaria a inabitabilidade da Europa ou de grande parte dela, a começar pela disputada Ucrânia, com base no regime dos ventos, de Moscou a Roma e Londres. Por décadas, se não séculos. Isso é conveniente para quem?
Seria pelo menos o fim da Europa conhecida, recheada de pastilhas de iodo para o seu 'futuro' (qual?).
De tudo isso, resulta apenas uma coisa: não por amor da paz, que, contudo, seria a via mestra do futuro se este planeta quiser ter um futuro, mas por puro interesse "existencial" de seus povos, a Europa e a Rússia devem se 'declarar a paz'. E os EUA e a China, como já foi escrito várias vezes nestas páginas, se realmente se preocupam com o mundo e não com um impossível primado imperial unilateral - hoje mais dos EUA, amanhã talvez mais da China - devem obrigar a Ucrânia e a Rússia a silenciar as suas armas no Donbass, e encontrar uma solução, que poderia passar por uma garantia europeia sobre o status dos territórios em disputa, tornando-os peças no tear do continente num novo bastidor da “Europa do Atlântico aos Urais”.
Depois do nosso Velho Continente, se a escalada não parasse, ainda poderia haver tempo e "história" para outro abismo, que se abriria no Pacífico. Vamos encarar a realidade. Chega da estupidez das chancelarias imperiais e da dimensão mais diabólica de sua ação: a estupidez.
E para descer, na cacofonia do debate público, basta com a agressiva opinião da estupidez beligerante. Que as verdadeiras pessoas sejam ouvidas: aquelas que pensam e que têm coração.
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O grande perigo e o que salva. Artigo de Eugenio Mazzarella - Instituto Humanitas Unisinos - IHU