Terra, um dom a ser preservado. Diálogo entre Vito Mancuso e Gustavo Zagrebelsky

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08 Outubro 2022

 

O filósofo Vito Mancuso e o jurista Gustavo Zagrebelsky debatem sobre os dilemas levantados pela crise climática e pela emergência planetária. Uma mudança de perspectiva que entrelaça a encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, com Sófocles, Heidegger e Simone Weil.

 

A Terra é um empréstimo a ser pago aos nossos filhos.” Esse é o título do diálogo entre Gustavo Zagrebelsky e Vito Mancuso que, na quinta-feira, 6, moderados por Simonetta Fiori, se encontraram na Igreja de São Francisco, em Lucca, na Itália, por ocasião do Pianeta Terra Festival.

 

Uma síntese do diálogo foi publicada pelo jornal La Stampa, 07-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Gustavo Zagrebelsky – Hoje, o amadurecimento cultural que nos leva a pensar em nós mesmos como indivíduos no cosmos parece pleonástico. Ainda na Constituição italiana, no artigo 9, fala-se de proteção do ambiente, “também no interesse das futuras gerações”. Estamos acostumados ao conceito das normas jurídicas como imperativas, capazes de nos dizer o que fazer e o que não fazer. Essa, por outro lado, é a declaração de uma atitude em relação ao cosmos. Holística, eu diria. No passado, pensávamos que os humanos estavam no centro da criação, enquanto hoje sabemos que eles também podem ser perigosos.

 

A Constituição se refere, justamente, às gerações futuras, àqueles que eu defino como “ainda não viventes”. Esse artigo tem pouco valor jurídico e, ao mesmo tempo, um grande valor do ponto de vista ético-filosófico. Mais do que aos direitos, ele se refere aos nossos deveres em relação às gerações futuras. Assim, assistimos a uma inversão: somos nós que devemos amar sujeitos fictícios.

 

Vito Mancuso – Acima de tudo, gostaria de celebrar este lugar: estamos em uma igreja, mesmo que desconsagrada. Vejo iluminado o Sagrado Coração de Jesus. Por isso, gostaria que as minhas palavras fossem uma liturgia da palavra, capaz também de comunicar as emoções.

 

É verdade que somos antropocêntricos e que o antropocentrismo diz respeito tanto ao judaísmo quanto ao cristianismo. Mas caracteriza também os gregos: penso no mito de Prometeu que doma o fogo. Todo o Ocidente é antropocêntrico. E, então, está certo ou errado?

 

Está errado, se pensarmos nas extinções e na poluição. As imagens terríveis dos plásticos nos mares estão debaixo dos nossos olhos e causam um frio na barriga. Mas o antropocentrismo também está certo, ou melhor, é inevitável. Trata-se de interpretar este princípio. Somos a única espécie capaz de elaborar informações e de fazer isso em relação à nossa vontade de poder: vem à minha mente o termo “greed” [ganância]. Consumimos sem parar.

 

Em vez disso, deveríamos pôr essa capacidade a serviço de nós mesmos e dos povos mais pobres. Qual é a solução, então? Entender que fracassamos. As religiões fracassaram, e as ideologias fracassaram.

 

Penso, então, na encíclica do papa, jamais sonhada por ninguém antes dele, e que Francisco escreveu inspirando-se também em Jonas e Lovelock. Ele nos disse que ou mudamos ou nos afogamos: eu acredito na astúcia da razão, para citar Hegel. Estamos de costas para a parede.

 

Gustavo Zagrebelsky – Estamos diante do risco de uma catástrofe global. Nossa própria civilização fracassou. É um conceito que Heidegger, o filósofo da técnica e do veneno nela contido, já havia antecipado.

 

E, atrás dele, há uma história de dois milênios, começando por Sófocles: “Muitas são as coisas extraordinárias, mas não existe nada de mais extraordinário do que o homem”. Segundo Sófocles, o homem é um ser transformador e violador. O arado fere a terra, assim como a quilha dos navios fere o mar. Não por acaso, Heidegger recorreu à célebre fórmula: “Só um deus poderá nos salvar”.

 

Mas não nos detenhamos nas palavras, senão nos limitaremos aos discursos autoconsoladores, como invocar um deus ou repetir “fizemos o nosso trabalho”. Penso nos programas de proteção do ambiente, nas declarações de Kyoto e de Paris. Mudaram alguma coisa? Na realidade, permaneceram como letra morta.

 

O que me perturba é que somos nós, nos países ricos, que fazemos os discursos sobre o ambiente. E às populações pobres nós dizemos: “Vocês devem renunciar ao seu desenvolvimento industrial e predatório!”. Mas elas rebatem: “Parem vocês! Vocês depredam o planeta há séculos. Nós continuamos assim, em vez de morrer de fome. Pensaremos nas gerações futuras depois”. Conclusão: falar de ecologia diz respeito a todos, mas isso não pode ser feito da mesma forma para todos. Na base, há uma questão de poder e de potência, e, portanto, de justiça global.

 

Vito Mancuso – A encíclica de Francisco fala de “dívida ecológica”: os Estados ricos poluíram muito, exportam resíduos tóxicos para os países menos desenvolvidos, assim como as indústrias mais poluentes. O senso de justiça nos obriga a reconhecer essa dívida ao lado da econômica. Penso no papa como a “voz que clama no deserto...”.

 

Voltando à frase de Heidegger, “só um deus nos salvará”, acredito que ninguém tem uma solução unívoca. Precisamos de um acordo baseado na escuta: escutemos o economista, o jurista, o empresário, o cientista... Assim, vem novamente à tona a liturgia da palavra. Não temos mais um deus, e nenhum deus virá do céu, com o toque das trombetas, para nos salvar.

 

O sentido filosófico daquela frase, que até mesmo um não crente pode compartilhar, é que existe algo de sagrado. Se o desejo se torna serviço, então tem-se um deus. Ao contrário, a morte de deus é o desejo voraz: faz com que, quanto mais ignorantes somos, mais nos colocamos no centro. Em vez disso, é a cultura e a beleza que nos unem.

 

Gustavo Zagrebelsky – Devemos nos transformar em deuses que olham para a beleza e protegem o mundo. Temo que, quando chegar o dia da crise, aquela que vai morder as nossas vidas, chegará também o dia de um deus: mas ele será um ditador. Temo uma virada autoritária.

 

Vito Mancuso – Acho que seria bom ser árvores. Simone Weil escrevia: as plantas são os únicos seres que se alimentam de luz e não de outra vida. É uma utopia, claro, mas nos sugere o conceito de ecossistema: nós somos cultura e devemos conceber a cultura como um conjunto de relações e interconexões.

 

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