Seria o homo sapiens a causa da destruição do planeta? Em novo livro, Antropoceno ou Capitaloceno? Natureza, história e a crise do capitalismo, Donna Haraway, Jason Moore e outros propõem passo adiante: concentrar o foco no sistema que produz a “natureza barata” e a extinção de culturas, linguagens e vidas.
O artigo é de Jason W. Moore, publicado por Outras Palavras, 17-08-2022.
As notícias não são boas para o planeta Terra. A humanidade — e todo o restante da vida que a acompanha — encontra-se agora no limiar do que os cientistas do Sistema Terra chamam de “mudança de estado”. Esse momento está representado na consciência crescente acerca das mudanças climáticas — entre pesquisadores e também entre um amplo público preocupado. Mas o nosso momento envolve muito mais do que apenas um problema climático. Estamos vivendo uma transição na vida planetária com o “potencial de transformar a Terra rápida e irreversivelmente num estado desconhecido até então pela experiência humana” (Barnosky et al., 2012, p. 52) [1].
Capa do livro Antropoceno ou Capitaloceno? Natureza, história e a crise do capitalismo (Foto: Divulgação)
O Zeitgeist do século XXI, portanto, infunde compreensivelmente um senso de urgência em cidadãos, ativistas e pesquisadores — por exemplo, Foster, Clark & York (2010), Hansen (2009), Parenti (2011) e Klein (2014). A realidade é bastante real. E, de acordo com qualquer avaliação razoável, a situação está se deteriorando. Semanalmente, até diariamente, as pesquisas se empilham. “Pressões humanas” estão levando as condições de estabilidade biosférica — sobretudo o clima e a biodiversidade — a um ponto de ruptura (Steffen et al., 2015; Mace et al., 2014; Dirzo et al., 2014). Múltiplos “limites planetários” estão sendo excedidos agora — ou logo serão (Rockström et al., 2009a). As condições da vida no planeta Terra estão mudando de forma rápida e fundamental.
A conscientização sobre essa difícil situação já vem sendo construída há algum tempo. Mas a realidade de uma crise — compreendida aqui como um ponto de inflexão fundamental na vida de um sistema, de qualquer sistema — pode ser muito difícil de compreender e interpretar; também pode ser muito difícil tomar qualquer atitude em relação a ela. Crises não são fáceis de compreender por aqueles que as vivenciam. As filosofias, os conceitos e as histórias que usamos para dar sentido a um presente global cada vez mais explosivo e incerto são — quase sempre — ideias herdadas de outra época e lugar. O tipo de pensamento que criou a turbulência global de hoje provavelmente não nos ajudará a resolvê-la.
Modos de pensamento são persistentes. Não são mais fáceis de transcender do que os “modos de produção” que refletem e ajudam a moldar. Esta coletânea de ensaios é um esforço para ampliar e estimular uma conversa global acerca de um novo modo de pensar. Nosso ponto de partida é o conceito de Antropoceno, o mais influente dos estudos ambientais da década passada. Os ensaios deste livro oferecem críticas distintas do argumento Antropoceno — que é, na verdade, uma família de argumentos com muitas variações. Mas a intenção é ir além dessa crítica. O Antropoceno é um ótimo ponto de partida não apenas por sua popularidade, mas, mais importante, porque faz perguntas fundamentais ao nosso tempo: de que maneira nós, humanos, nos encaixamos dentro da teia da vida? Como várias organizações humanas e processos — Estados e impérios, mercados mundiais, urbanização e muito mais — redefiniram a vida planetária? A perspectiva do Antropoceno é poderosa e influente por trazer essas questões ao mainstream acadêmico — e até mesmo (embora de forma desigual) à consciência popular.
A função deste livro é encorajar um debate — e nutrir uma perspectiva — que vai além da Aritmética Verde (Green Arithmetic): a ideia de que nossas histórias podem ser contempladas e narradas somando a Humanidade (ou a Sociedade) e a Natureza, ou até mesmo o Capitalismo e a Natureza. Tais dualismos são parte do problema: são fundamentais para o raciocínio que levou a biosfera à transição atual em direção a um mundo menos habitável. Quase não se percebe que as categorias de “Sociedade” e “Natureza” — Sociedade sem natureza, Natureza sem humanos — fazem parte do problema, intelectual e politicamente. O par Natureza/Sociedade, não menos do que os binarismos do eurocentrismo, do racismo e do sexismo, está diretamente implicado nas colossais violência, desigualdade e opressão do mundo moderno. Esse argumento contra o dualismo envolve algo abstrato — Natureza/Sociedade —, mas, ainda assim, muito material, pois a abstração Natureza/Sociedade historicamente se conforma a uma série sem fim de exclusões humanas — para não mencionar as disciplinas racionalizantes e as políticas de extermínio impostas sobre naturezas extra-humanas. Essas exclusões correspondem a uma longa história de subordinação de mulheres, populações coloniais e pessoas de cor — humanos que raramente eram membros da “sociedade civilizada” de Adam Smith (1937 [1776]).
Essas são, sem dúvida, questões de opressão. E também são fundamentais para a economia política do capitalismo, que jaz sob uma estratégia audaz de acumulação: a Natureza Barata (Cheap Nature). Para o capitalismo, a Natureza é “barata” em dois sentidos: por um lado, precifica os elementos da Natureza, dando-lhes um valor “barato”; por outro, barateia, degrada ou inferioriza a Natureza num sentido ético-político, para torná-la barata em termos de preço. Esses dois momentos estão entrelaçados a cada instante e em cada grande transformação do capitalismo dos últimos cinco séculos (Moore, 2015a).
Isso é importante para a nossa análise e também para nossa política. Os esforços para transcender o capitalismo de maneira igualitária e amplamente sustentável serão frustrados enquanto a imaginação política radical for refém da organização e/ou da realidade capitalista Natureza/Sociedade. E qualquer esforço para discernir os limites do capitalismo nos dias de hoje — crucial para qualquer estratégia antissistêmica — não pode ir muito longe se inserir a realidade em dualismos que são imanentes ao desenvolvimento capitalista.
O argumento do Antropoceno mostra que o dualismo Natureza/Sociedade está na etapa mais avançada de seu desenvolvimento. E se o Antropoceno — enquanto argumento histórico, em vez de geológico — é inadequado, ainda assim é um argumento que merece nossa consideração. Novos modos de pensar emergem de muitos passos hesitantes. Há muitos estágios conceituais no caminho para uma nova síntese. O conceito de Antropoceno é com certeza o mais influente desses estágios. Nenhum conceito firmado na mudança histórica foi tão influente ao longo do espectro do Pensamento Verde (Green Thought); nenhum outro conceito sociológico atraiu tanta atenção popular.
Formulado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer em 2000, o conceito de Antropoceno tem sua origem em uma posição eminentemente razoável: o tempo geológico e da biosfera foi transformado de modo fundamental pela atividade humana. Uma nova conceitualização do tempo geológico — uma que inclua a “humanidade” como “grande força geológica” — é necessária. Sem dúvida foi uma proposta corajosa. Propor que a humanidade seja um agente geológico é transgredir um dos limites intelectuais fundamentais da modernidade. Pesquisadores chamam isso de duas culturas — uma das ciências “naturais”, outra das ciências “humanas” (Snow, 1964 [2015]). No melhor dos casos, o conceito de Antropoceno mescla história humana e natural — ainda que o “como” e o “por quê” continuem imprecisos e gerem muita discussão. Tal nebulosidade certamente merece crédito pela popularidade do conceito. Assim como a globalização nos anos 1990, o Antropoceno se tornou uma palavra da moda, que pode significar qualquer coisa para as pessoas. Embora reforçado por avanços na história ambiental (Worster, 1988), o argumento do Antropoceno foi se cristalizando gradualmente: “ação humana” mais “Natureza” é igual a “crise planetária” (Chakrabarty, 2009; Steffen, Crutzen & McNeill, 2007). A Aritmética Verde, ao mutilar a história como agregação de relações humanas e naturais, triunfou.
o procedimento básico dos estudos ambientais ao longo das últimas décadas: Sociedade + Natureza = História. Hoje é Humanidade, ou Sociedade, ou Capitalismo + Natureza = Catástrofe. Não quero depreciar esse modelo. Ele foi muito poderoso. Forneceu a base filosófica para estudos que produziram uma gama de conhecimentos a respeito da mudança ambiental. Esses estudos, por sua vez, permitiram uma compreensão aprofundada dessa “mudança de estado” que está acontecendo na biosfera. Mas não facilitaram — pelo contrário — nossa compreensão de como a crise atual vai se desdobrar num sistema-mundo que é uma ecologia-mundo, reunindo poder, natureza e acumulação numa unidade dialética e instável. Este livro busca transcender os limites da Aritmética Verde. Isso nos permite buscar, nas palavras de Donna Haraway, “narrativas maravilhosas e desalinhadas” de história multiespécie, narrativas que apontam as possibilidades “para entrar no agora e, também, na história profunda da Terra” (ver Haraway, “Ficar com o problema”, neste volume, p. 67).
A Aritmética Verde funciona quando acreditamos que Sociedade e Natureza formam uma soma. Mas formam de fato? A meu ver, essa “soma” foi necessária — e, por muito tempo, bastante produtiva. A consolidação das ciências históricas sociais após os anos 1870 avançou como se a natureza não existisse. Houve exceções (por exemplo, Mumford, 1934), mas nenhuma que perturbasse o status quo antes da década de 1970. Então, energizados pelos “novos” movimentos sociais — de raça, gênero e meio ambiente —, vimos uma revolta intelectual importante. As lacunas no mapeamento cognitivo dominante da realidade foram preenchidas; o mapa cognitivo antigo, incapaz de ver a natureza, foi desafiado. Nos estudos ambientais, pesquisadores radicais defendiam uma visão relacional da humanidade-na-natureza (humanity-in-nature) e da natureza-na-humanidade (nature-in-humanity), por exemplo, Harvey (1974) e Naess (1973).
Mas essa crítica relacional se manteve, em grande parte, filosófica. Acima de tudo, nossos conceitos de “grande história” (big history) — imperialismo, capitalismo, industrialização, comercialização, patriarcado, formações raciais — permaneceram processos sociais. Consequências ambientais foram acrescentadas, mas o conceito de história enquanto história social não sofreu mudanças fundamentais.
Hoje sopram novos ventos conceituais. Parece que estamos prontos para fazer e até para começar a responder a uma grande pergunta sobre a grande história: e se esses processos históricos mundiais não apenas produzem, mas também são produtos de mudanças na teia da vida?
A questão vira do avesso uma série de premissas que se tornaram marcas registradas do Pensamento Verde. Duas se destacam. Primeiro, somos levados a fazer perguntas não a respeito da separação entre humanidade e natureza, mas de que maneira humanos — e organizações humanas, como impérios, mercados mundiais — se encaixam dentro da teia da vida e vice-versa. Isso nos permite começar a fazer questionamentos situados, no sentido empregado por Donna Haraway (1988). Começamos a ver a organização humana como algo “mais do que humano” e “menos do que social”, como algo completa e variavelmente poroso dentro da teia da vida. Em segundo lugar, podemos começar a fazer perguntas acerca de algo talvez mais significativo do que a “degradação” da natureza.
Não há dúvidas de que o capitalismo impõe um padrão incansável de violência sobre a natureza, inclusive sobre os humanos. Mas o capitalismo funciona porque a violência é parte de um repertório maior de estratégias que “colocam a natureza para trabalhar”. Portanto, nossa pergunta incorpora a tese da degradação da natureza, mas vai além: como a modernidade põe a natureza para trabalhar? Como combinações específicas de atividade humana e extra-humana trabalham — ou limitam — a acumulação sem fim do capital? Tais perguntas, longe de serem as únicas, indicam um novo modo de pensar a respeito da humanidade na teia da vida.
Os capítulos deste volume não são fáceis de resumir, mas deles emergem dois temas comuns. Primeiramente, todos os ensaios sugerem que o argumento do Antropoceno faz uma pergunta a que ele não pode responder. O Antropoceno faz soar o alarme — e que alarme! Mas é incapaz de explicar como essas mudanças alarmantes ocorreram. Questões acerca do capitalismo, de poder e classe, antropocentrismo, enquadramentos dualistas de “natureza” e “sociedade” e o papel dos Estados e impérios — tudo isso costuma ser limitado pela perspectiva dominante do Antropoceno. Em segundo lugar, os colaboradores deste livro buscam ir além da crítica. Todos argumentam a favor de reconstruções que apontem uma nova maneira de pensar a humanidade-na-natureza e a natureza-na-humanidade.
A primeira coisa que quero dizer é que Capitaloceno é uma palavra feia para um sistema feio. Como aponta Haraway, “Capitaloceno” parece ser uma dessas palavras flutuando no éter, cristalizada por vários pesquisadores ao mesmo tempo — muitos de forma independente.
Como mencionei, ouvi o termo pela primeira vez de Andreas Malm, em 2009. O economista radical David Ruccio parece ter sido o primeiro a divulgar o conceito em seu blog, em 2011 (Ruccio, 2011). Por volta de 2012, Haraway começou a usar o conceito em suas palestras (Haraway, 2015). Nesse mesmo ano, eu e Tony Weis discutíamos o conceito em relação ao que se tornaria sua obra The Ecological Hoofprint [A pegada ecológica] (2013), verdadeira divisora de águas acerca do complexo industrial da produção de carne. Minha concepção do Capitaloceno tomou forma nos primeiros meses de 2013, enquanto aumentava minha infelicidade com o argumento do Antropoceno.
Capitaloceno. Como esclarecem os autores deste livro, o Capitaloceno não significa capitalismo como sistema econômico e social. Não é uma inflexão radical da Aritmética Verde. Em vez disso, entende o capitalismo como uma maneira de organizar a natureza — como uma ecologia-mundo multiespécie, situada e capitalista. Vou tentar usar a palavra com cautela. Já se fizeram outros jogos de linguagem — Antrobsceno (Parikka, 2014), Econoceno (Norgaard, 2013), Tecnoceno (Hornborg, 2015), Misantropoceno (Patel, 2013) e, talvez mais divertido, Mantropoceno [homemtropoceno]. Todos são úteis. Mas nenhum deles captura o padrão moderno histórico básico da história mundial enqunto a “Era do capital” — e a era do capitalismo como uma ecologia-mundo de poder, capital e natureza.
Na Parte I, Eileen Crist e Donna Haraway desmantelam o conceito de Antropoceno e apontam possíveis alternativas. Crist faz um poderoso alerta contra o uso do argumento do Antropoceno — e outros “autorretrato[s] prometeico[s]”, os quais tendem a reinventar e, por vezes, sutilmente recuperar o pensamento neomalthusiano.
Enquanto muitos defensores do conceito indicam de que maneira o Antropoceno introduziu a discussão, Crist vê essa abertura como demasiado seletiva. Para a autora, o conceito “encolhe o espaço discursivo para questionar a dominação [humana] da biosfera, oferecendo, em vez disso, um argumento tecnocientífico em prol de sua racionalização”. Inspirando-se em Thomas Berry, Crist nos direciona para um enquadramento distinto — e mais esperançoso — do presente e de nossos possíveis futuros.
Essa não seria uma “Era do homem”, mas uma “Era ecozoica”: uma visão da humanidade-na-natureza como uma união na diversidade, na qual a humanidade pode abraçar a “comunidade viva integral da Terra”.
O carvão e o motor a vapor não determinaram a história, e, além disso, as datas estão todas erradas, não porque seja preciso retornar à última era do gelo, mas porque é preciso ao menos incluir as grandes remundificações do mercado e da mercadoria dos longos séculos XVIe XVII, mesmo se acharmos (erroneamente) que podemos continuar eurocentrados ao pensar sobre as transformações “globalizantes” que moldam o Capitaloceno.
A geografia histórica do Capitaloceno se desloca para o palco principal na Parte II. Em “O surgimento da Natureza Barata”, eu argumento a favor de um enquadramento interpretativo da história do capitalismo, erigido sobre a crítica que Haraway (2008) faz há muito tempo do “excepcionalismo humano”. O capitalismo é uma maneira de organizar a natureza como um todo, uma natureza na qual organizações humanas (classes, impérios, mercados etc.) não apenas constroem ambientes, mas são simultaneamente criadas pelo fluxo histórico e pelo fluir da teia da vida.
Nessa perspectiva, o capitalismo é uma ecologia-mundo que se junta à acumulação do capital, à busca pelo poder e à coprodução da natureza em configurações históricas sucessivas. Mostro que a ênfase na Revolução Industrial como origem da modernidade decorre de um método histórico que privilegia consequências ambientais e oculta as geografias do capital e do poder. O caso de amor entre Pensamento Verde e Revolução Industrial minou esforços para localizar a origem das crises de hoje nas transformações definidoras de época do capital, do poder e da natureza, que começaram no “longo” século XVI (Braudel, 1953). As origens das crises atuais — inseparáveis, mas distintas — da acumulação de capital e da estabilidade biosférica podem ser localizadas numa série de transformações de paisagem, classes, território e técnica que emergiu nos três séculos após 1450.
Justin McBrien concorda que estamos vivendo no Capitaloceno, destacando o impulso do capitalismo rumo à extinção, num sentido de ecologia-mundo. A extinção, argumenta, é mais do que um processo biológico sofrido por outras espécies. Significa também a “extinção de culturas e linguagens”, o genocídio e o espectro de mudanças biosféricas compreendidas como antropogênicas. McBrien demonstra que a própria concepção dessas mudanças como antropogênicas tem como premissa a exclusão conceitual sistemática do capitalismo. Essas concepções são, na narrativa do autor, um produto da ciência moderna, ao mesmo tempo se opondo e se mesclando dentro das teias de poder imperial e acumulação de capital. Longe de ser apenas um produto do sistema — como na Aritmética Verde —, ele mostra que a “acumulação por extinção” foi fundamental para o capitalismo desde o começo. O Capitaloceno, em sua visão, também é um Necroceno: “A acumulação de capital é a acumulação de extinção potencial — um potencial cada vez mais ativo nas décadas recentes”. Longe de abraçar o catastrofismo planetário e as visões apocalípticas de muitos ambientalistas, McBrien revela como o próprio catastrofismo foi uma forma de conhecimento enquadrada nos sucessivos regimes ecológicos do pós-guerra e do capitalismo neoliberal. O catastrofismo, em sua leitura, transformou ambos os polos do par binário ambientalista — “sustentabilidade ou colapso?” (Costanza, Graumlich & Steffens, 2007) — em imagens espelhadas uma da outra.
Elmar Altvater vai além da economia política para incluir a “racionalidade europeia da dominação mundial” de Max Weber e desafiar as principais bases da racionalidade moderna. Por um lado, Altvater enxerga as origens do capitalismo no longo século XVI e a invenção da Natureza Barata. Por outro, ele vê uma mudança decisiva na transição da subsunção do trabalho pelo capital de um caráter “formal” para “real” no fim do século XVIII e começo do XIX. Altvater chama essas duas periodizações de hipóteses “Braudel” e “Polanyi” — em referência a Fernand Braudel e Karl Polanyi. Longe de competirem entre si, essas periodizações são mais bem contempladas na totalidade do capitalismo histórico: ambas as posições, a de Braudel e a de Polanyi, estão corretas. É importante, para Altvater, que o Capitaloceno não seja apenas uma questão de acumulação do capital, mas de racionalização — imanente ao processo de acumulação. Mapeando as contradições entre o cálculo em âmbito empresarial dos custos e a “racionalidade” microeconômica da externalização, ele ilumina um conjunto mais amplo de problemas da modernidade e sua capacidade de lidar com a mudança climática. Usando a geoengenharia como exemplo, Altvater sinaliza a armadilha da racionalidade burguesa em relação à mudança biosférica de hoje. A tarefa dos geoengenheiros
é muito maior do que construir um carro, uma represa ou um hotel. Os geoengenheiros precisam controlar sistemas terrestres por completo para combater — ou ao menos reduzir — as consequências negativas da externalização capitalista. No entanto, a internalização que se exige das emissões externalizadas é a internalização dos efeitos externos para custos de produção da empresa. Então, de fato — em princípio —, os preços podiam “dizer a verdade”, como nos manuais neoclássicos. Mas ainda não seríamos mais sábios, porque muitas interdependências na sociedade e na natureza não podem ser expressas em preços. Qualquer racionalização eficaz teria de ser holística; precisaria ser qualitativa e levar em conta muito mais coisas do que apenas o preço. E isso é impossível, pois contradiz a racionalidade capitalista, que está comprometida em consertar as partes, e não o todo. Em tal cenário, a modernização capitalista, por meio da externalização, chegaria — inevitavelmente — ao fim. As Quatro Coisas Baratas (Four Cheaps) desapareceriam atrás do “horizonte de eventos”. Seria possível que os geoengenheiros trouxessem a moderação necessária da modernização e das dinâmicas capitalistas? Não, pois os engenheiros não estão qualificados para trabalhar de forma holística.
Na Parte III, os holofotes se voltam a questões de cultura e política no Capitaloceno. No capítulo 6, Daniel Hartley pergunta qual a importância da cultura para pensar a respeito do Antropoceno e do Capitaloceno. Partindo de uma perspectiva de ecologia-mundo, ele sugere que os conceitos de “natureza abstrata social” (Moore, 2014b, 2015a) e “ajuste cultural” (Shapiro, 2014) fornecem guias rudimentares — porém parciais — à história do capitalismo na teia da vida. Alertando sobre os riscos que podem separar “ciência” e “cultura” na criação capitalista do meio ambiente, Hartley aponta as relações entre ciência e cultura, capital e natureza, como fundamentais para as geografias históricas da acumulação infinita. Nessa formulação, desenvolve um argumento robusto a favor da incorporação analítica dessas relações — racismo, sexismo e outras formas “culturais” — que aparentam não ter relação imediata com a ecologia, mas que são, na verdade, fundamentais às diversas relações da humanidade dentro da teia da vida.
Christian Parenti, no capítulo de encerramento, nos conduz da cultura às políticas do Capitaloceno. A inovação de Parenti é dupla. Primeiro, ele reconstrói o Estado moderno, entendendo-o fundamentalmente como um processo de criação de ambiente (environment-making).
O Estado moderno não se limita a produzir mudanças ambientais. Da mesma maneira, o poder estatal, como Parenti mostra em sua exploração do início da história estadunidense, desenvolve-se por meio da transformação ambiental. Em segundo lugar, o Estado moderno opera através de uma valoração peculiar da natureza — o que Marx chama de trabalho social abstrato. A descoberta de Parenti é que o poder, o valor e a natureza só podem ser pensados em relação uns com os outros. Portanto, o Estado moderno “está no cerne da forma valor […], porque os valores de uso da natureza não humana são […] fontes centrais de valor”, e é o Estado quem os fornece. Longe de operar fora ou acima da “natureza”, na visão de Parenti, o Estado se torna o nexo organizativo fulcral da relação entre território moderno, acumulação de capital e percepção da natureza como torneira e pia. As implicações políticas da análise são cruciais. O Estado não é apenas analiticamente central à elaboração da ecologia-mundo capitalista; é a única instituição grande e poderosa o bastante para permitir uma resposta progressiva para os desafios crescentes das mudanças climáticas.
Refletindo as diversas perspectivas acerca de um tema comum — como o mundo moderno organizou as naturezas humanas e extra-humanas —, os ensaios deste livro são alegremente diversos. Indicam uma nova síntese, até mesmo um novo paradigma. Chamei esse paradigma de ecologia-mundo, embora talvez ainda possamos encontrar uma expressão melhor. Esse novo pensamento reflete (e molda?) certo Zeitgeist. A noção de que os humanos fazem parte da natureza, de que toda a natureza nos compõe, é facilmente aceita por uma camada cada vez maior da população mundial.
Estudantes universitários e muitos ativistas parecem especialmente receptivos a ela; mas o Zeitgeist vai além, e é revelado dramaticamente em muitos movimentos emergentes de nossa era — a soberania alimentar, a justiça climática, o “direito à cidade”, o decrescimento etc. Esses movimentos representam “novas políticas ontológicas” (Moore, 2015b). Todos não só organizam uma distribuição mais igualitária da riqueza como também clamam por uma nova concepção de riqueza, segundo a qual a igualdade e a sustentabilidade na reprodução da vida (de toda a vida) são centrais para a nossa visão de futuro. Nesses movimentos, esperamos que a visão simpoiética de Haraway se realize: o Chthuluceno.
Seja qual for o nome escolhido, a visão simpoiética compartilha uma nova ontologia que se mescla (e aprende) com movimentos que giram em torno da soberania alimentar e da justiça climática (ver, por exemplo, Wittman, Desmarais & Wiebe, 2011; McMichael, 2013; Bond, 2012). As novas políticas ontológicas são tão esperançosas — sem ser românticas — porque oferecem não apenas uma visão distribucional, mas ontológica.
Essa visão questiona todo o modelo segundo o qual o capitalismo atribui valor à natureza e aos humanos que fazem parte dela. Para movimentos de justiça alimentar e climática — há variações importantes, é claro —, só é possível pensar em questões de igualdade, sustentabilidade e democracia de modo inter-relacional. Como nunca antes, o alimento, o clima e a teia da vida se tornaram fundamentais para visões radicais mais antigas de igualdade entre humanos.
É importante ressaltar que a visão relacional desses movimentos sobre a humanidade-na-natureza ocorre numa época em que o modelo capitalista demonstra sinais de exaustão. Além de qualquer outra coisa, o capitalismo é um sistema que faz com que a natureza — a natureza humana também! — trabalhe de graça ou por um valor muito barato. A “lei” do valor do capitalismo — como e o que priorizar na teia da vida — sempre foi uma lei da Natureza Barata. (O que é um absurdo, sim, pois a natureza nunca é barata.) O processo estranho e dinâmico de botar a natureza para trabalhar a baixo custo foi a base dos feitos da modernidade — a fome e a capacidade de extrair as Quatro Coisas Baratas: alimento, energia, matéria-prima e vida humana. Essas capacidades agora estão se esgotando. A produtividade agrícola industrial está estagnada desde meados da década de 1980; a produtividade laboral na indústria, desde 1970. As contradições do capitalismo dramatizadas pela instabilidade biosférica revelam o feito da modernidade tendo como premissa um furto ativo e continuado: do nosso tempo, da vida planetária, do nosso futuro e do futuro de nossas crianças (Moore, 2015a).
O colapso do capitalismo hoje é — e ao mesmo tempo não é — a velha história da crise e do fim do capitalismo. O capital progressivamente internaliza os custos da mudança climática, a perda massiva de biodiversidade, a intoxicação, as epidemias e muitos outros prejuízos biofísicos, ao passo que novos movimentos ganham força. Estes desafiam não apenas a distribuição desigual do capitalismo — paguem a “dívida ecológica”! —, mas a própria maneira como pensamos a respeito do que está sendo distribuído. Há um esgotamento dessa valoração da realidade empreendida pelo capitalismo que é, simultaneamente, interno ao capital, e abre espaço para novas políticas ontológicas externas ao sistema de valores — e em resposta direta a seu colapso. Vemos, como nunca antes, o desabrochar de uma imaginação ontológica para além do dualismo cartesiano, que leva adiante a possibilidade de valorações diferentes da alimentação, da natureza e de todo o resto. Estão revelando a lei do valor do capitalismo como o valor do nada — ou, pelo menos, de nada particularmente valioso (Patel, 2009).
E apontam na direção de uma ecologia-mundo na qual poder, riqueza e (re)produção são forjadas em uma conversa com as necessidades da teia da vida e o lugar da humanidade dentro dela.
[1] Esta é a introdução do livro Antropoceno ou Capitaloceno? Natureza, história e a crise do capitalismo, organizado por Jason W. Moore e recém-lançado no Brasil pela Editora Elefante, parceira editorial de Outras Palavras.