Por uma teoria econômica além do antropocentrismo

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18 Dezembro 2020

Sociólogo sugere nova interpretação das relações entre capitalismo e natureza. É preciso enxergar o “metabolismo singular” do sistema, diz ele, para vencer a apropriação do trabalho de florestas, oceanos, solos e seres humanos.

 

A entrevista é de Kamil Ahsan, publicada por View Point Magazine [28-09-2015] e reproduzida por Outras Palavras, 16-12-2020. A tradução é de Eleutério Prado.

 

Em o Capitalismo na teia da vida, Jason W. Moore sustenta a necessidade imperativa de fazer uma síntese e uma reformulação teórica completa dos pensamentos marxista, ambiental e feminista. Eis que o que afirma: “Acho que muitos de nós entendemos intuitivamente – mesmo se os nossos quadros analíticos estejam defasados – que o capitalismo é mais do que um sistema ‘econômico’ e mesmo mais do que um sistema social. O capitalismo é uma forma de organizar a natureza.”

 

O jornalista Kamil Ahsan conversou com Moore sobre seu livro Capitalismo na Teia da Vida (Verso), lançado em agosto de 2015, o qual busca enfrentar os novos desafios que se levantam diante das velhas maneiras de compreender o nosso mundo.

 

Eis a entrevista.

 

Qual foi a motivação para escrever Capitalismo na Teia da Vida?

Eu queria apresentar um arcabouço que nos permitisse entender a história dos últimos cinco séculos de uma forma que fosse adequada à crise que enfrentamos hoje. Nas últimas quatro décadas, adotamos uma abordagem para a crise que pode ser denominada de “aritmética verde”. Quando temos uma crise econômica ou social, ela vai para uma caixa. Quando temos uma crise ecológica – relacionada à água, energia ou clima – ela vai para outra caixa.

Assim, nas últimas quatro décadas, ambientalistas e outros radicais têm alertado sobre essas crises, mas nunca descobriram como resolvê-las. Os pensadores ambientais costumam dizer uma coisa e depois fazerem outra – eles alegam que os humanos são parte da natureza e que tudo no mundo moderno relaciona-se com a biosfera; porém, quando começam a analisar e a propor, se esquecem da unidade “sociedade mais natureza”, como se a relação entre ambas não fosse íntima, direta e imediata.

 

 

A premissa de seu livro é que precisamos quebrar o dualismo “natureza/sociedade” que prevaleceu em grande parte dos pensamentos vermelho e verde. De onde veio essa ideia e por que ela é totalmente artificial?

A ideia de que os humanos estão fora da natureza tem uma longa história. Trata-se de uma criação do mundo moderno. Muitas civilizações antes do capitalismo tinham a sensação de que os humanos eram algo distinto. Mas nos séculos XVI, XVII e XVIII, essa poderosa ideia surgiu – ela se incorporou à violência imperialista e à expropriação de camponeses; produziu uma série de reformulações sobre o que significa ser um humano, particularmente no que se refere às divisões em torno de raça e gênero. Passou a existir algo que, nas palavras de Adam Smith, foi chamado “sociedade civilizada”, uma sociedade restrita que incluía apenas alguns humanos.

Mas a maioria dos humanos foi, então, colocada na categoria de “natureza”, a qual era considerada como um mundo que deveria controlado, dominado e posto para trabalhar – em prol do mundo civilizado. Parece muito abstrato, mas o mundo moderno foi realmente baseado nesta ideia de que uma parte dos humanos eram chamados de “sociedade”, mas a maioria do resto é posta noutra caixa chamada “Natureza” – com N maiúsculo! Essa formulação é muito poderosa. Isso não aconteceu apenas porque havia cientistas, cartógrafos ou governantes coloniais que decidiram ser esta uma boa ideia, mas por causa de um processo muito amplo que uniu mercados e indústria, império e novas formas de ver o mundo, assim como uma concepção ampla da Revolução Científica.

Esta ideia de natureza e sociedade está profundamente enraizada em outros dualismos do mundo moderno: o capitalista e o trabalhador, o Ocidente e o resto, homens e mulheres, brancos e negros, civilização e barbárie. Todos esses outros dualismos realmente encontram suas raízes principais no dualismo natureza/sociedade.

 

 

Qual é a importância de quebrar esse dualismo, em especial devido ao fato de que o capitalismo, segundo o seu entendimento, está sendo “coproduzido” por ambas as naturezas, humana e extra-humana?

É importante entender que o capitalismo é coproduzido pelos humanos e pelo resto da natureza; em especial, para entender a crise que se desdobra hoje. A maneira usual de pensar sobre os problemas do nosso mundo é separar: de um lado, tem-se as crises sociais, econômicas e culturais, as quais são postas na rubrica de “crises sociais”, de outro, tem-se as crises ecológicas, do clima, dos oceanos e assim por diante. Hoje, estamos cada vez mais percebendo que não podemos manter essa separação; porém, apesar disso, ela tem sido mantida ainda o tempo todo.

Precisamos superar esse dualismo para construir nosso conhecimento da crise atual, uma crise singular com muitas expressões. Algumas, como a financeirização, parecem ser puramente sociais; outras, como a potencial sexta extinção das espécies neste planeta, parecem ser puramente ecológicas. Mas, na verdade, esses dois momentos estão intimamente ligados de várias maneiras importantes.

Uma vez que entendemos que essas relações são centrais, começamos a ver como Wall Street é uma forma de organizar a natureza. Vemos o desdobramento de problemas atuais – como as turbulências nos mercados de ações da China e dos Estados Unidos – estão também relacionados com problemas maiores do clima e da manutenção da vida neste planeta. Ora, isso tem um impacto na política que nem mesmo os economistas radicais estão dispostos a reconhecer. Estamos vendo hoje movimentos – como os movimentos de justiça alimentar – dizerem que precisamos entender essa transformação e ela tem a ver com o direito à alimentação no sentido ecológico, mas também no sentido cultural e democrático – e eles não podem ser separados.

O problema com a “aritmética verde” inerente ao binômio “sociedade + natureza” está em que faz uma separação indevida entre justiça ambiental e justiça social, sustentabilidade ambiental e sustentabilidade social, imperialismo ecológico e imperialismo regular. Ora, qualquer um que conheça a história do imperialismo sabe que se trata sempre de saber “o que vai se transformar em valor” e “que grupos da sociedade se tornarão agora fonte de valorização de valor”. Assim que paramos com essa promiscuidade adjetiva, vemos claro que o imperialismo sempre considerou que o humano e o resto da natureza eram partes de um todo que cabia explorar o mais possível.

Acho, por isso, que é possível e necessário começar a fazer na prática novas alianças entre as diferentes partes dos movimentos sociais mundiais que, por enquanto, estão ainda desconectados . É preciso ligar os movimentos camponeses com os movimentos de trabalhadores urbanos, os movimentos de mulheres com os movimentos por justiça racial. Eis que existe uma raiz comum a todos eles. A razão para reunir o que chamo de “metabolismo singular” dos humanos na teia da vida é muito crucial – ele nos permite começar a fazer conexões entre momentos sociais e momentos ecológicos.

 

 

Em oposição direta ao binarismo natureza/sociedade, você apresenta uma nova síntese, o “oikos”. O que é isso e como isso nos leva a uma análise mais profunda do capitalismo?

No cerne do pensamento radical dominante há algo que impede que se faça uma conexão entre a história, as relações sociais entre os humanos e a teia da vida. O que predominou até agora foi essa ideia central de que a natureza está fora das relações humanas, que ela seria primitiva, que ela não tem história. Essa concepção produz a ideia de que a natureza está aí e que, no melhor dos casos, precisamos protegê-la, porque se não o fizermos, o apocalipse chegará. Isso, em parte, está acontecendo de fato e é correto; por outro lado, os radicais sempre foram bons em nomear o sistema de maneira errada.

Os radicais falam sobre a interação entre os humanos e o resto da natureza, mas não mencionam a relação de formação da vida que produz o meio ambiente e as espécies. A humanidade evolui por meio de uma série de atividades criadoras de meio ambiente que transformam não apenas as paisagens, mas também a biologia humana. Por exemplo, o controle do fogo permitiu que os ancestrais humanos desenvolvessem sistemas digestivos mais curtos e tratassem o fogo como uma espécie de estômago externo.

Uma das ideias centrais do livro é que a natureza tem, sim, em geral, padrões de reprodução relativamente constantes – a Terra orbita ao redor do Sol de um modo determinado – mas a natureza também evolve historicamente.

Com a ideia de tomar a Terra como um “oikos”, passamos a pensar num processo de formação de vida; nomeamos esse processo assim porque ele dá origem a múltiplos ecossistemas que incluem humanos. Os humanos estão sempre refazendo os ambientes em que vivem e, nesse processo, refazem as suas relações entre si e com a sua própria biologia. As estruturas de poder e produção, principalmente de reprodução, são parte da história sobre como recriamos as paisagens e os ambientes; mas também, como essas paisagens e esses ambientes, ao mesmo tempo, estão nos criando. No entanto, nosso vocabulário e conceitos estão aprisionados nesse dualismo. Precisamos quebrar esse dualismo, oferecendo alguns novos conceitos.

 

 

Bem no início do livro, você cita a observação de Marx de que a industrialização transformava “sangue em capital”. Você fala também sobre essa terrível transformação do trabalho, assim como de todas as formas da natureza, em valor. Que formas de natureza o capitalismo historicamente se apropriou? Qual é a tendência do capitalismo em relação aos espaços até então inexplorados?

O capitalismo é um sistema de estranhamento; eis que ele não é realmente antropocêntrico da maneira que os verdes costumam enxergá-lo. É antropocêntrico de uma forma estreita já que impõe aos humanos trabalharem dentro do sistema de mercadorias, que é baseado na exploração: o trabalhador trabalha quatro horas para cobrir seu próprio salário e outras quatro ou mais horas para o capitalista. Essa é uma dimensão em que Marx se concentrou. Mas ele estava ciente de um conjunto mais amplo de dimensões.

O capitalismo trata uma parte da humanidade como social – aquela parte que está dentro do nexo monetário e é reproduzida dentro do nexo monetário. Mas – e isto é bem contraintuitivo – ele consiste de uma ilha de produção e troca de mercadorias dentro de um oceano muito maior. É aí que se dão as apropriações de trabalho/energia não remuneradas. Cada processo de trabalho, digamos, cada trabalhador em Shenzhen, na China, ou em Detroit, 70 anos atrás, depende da apropriação do trabalho/energia não remunerados do resto da natureza. O capitalismo é, antes de tudo, um magnífico sistema de destruição e de “apropriação das mulheres, da natureza e das colônias”, para usar uma frase importante de Maria Mies.

O problema do capitalismo hoje é que as oportunidades de se apropriar do trabalho gratuitamente – de florestas, oceanos, clima, solos e seres humanos — estão diminuindo dramaticamente. Enquanto isso, a massa de capital circulando pelo mundo em busca de algo em que investir está crescendo cada vez mais. A visão do capitalismo que está no livro fala sobre um dinamismo atual que irá alimentar uma situação cada vez mais instável nas próximas uma ou duas décadas. Temos uma enorme massa de capital procurando ser investida e uma enorme contração de oportunidades para conseguir trabalho de graça. Isso significa que o capitalismo precisa começar a pagar seus próprios custos que incorrem ao fazer negócios, o que significa que as oportunidades de investir capital estão diminuindo. Há montanhas de dinheiro e ninguém tem ideia do que fazer com ele senão aumentá-lo nominalmente.

A crítica radical atual corre segundo duas linhas paralelas. Para uma delas, o mundo está chegando ao fim; essa é a visão do apocalipse planetário de John Bellamy Foster. Para a outra, o capitalismo tem apenas um problema de subconsumo ou de desigualdade. Contudo, cada uma delas é incompleta sem a outra; elas precisam ser colocadas juntas. Quando se introduz o ecológico na teoria da crise econômica ou na análise da desigualdade social, o modo de entender o boom e a crise econômica, assim como a desigualdade, começa a mudar. Parte disso vem do fato de que as questões centrais da desigualdade social, ao longo das linhas de classe, raça e gênero, têm tudo a ver com como o capitalismo funciona na teia da vida.

 

 

Vamos nos voltar para o processo de trabalho, a pedra angular da exploração capitalista no pensamento marxista clássico. Você argumenta que Marx sabia que não apenas o trabalho assalariado, mas também o trabalho não remunerado – isto é, as energias humanas em geral, especialmente das mulheres, assim como o “trabalho” da natureza extra-humana – eram centrais para o capitalismo. E você também nota que vivemos em um mundo onde, cada vez mais, opõem-se salários e empregos ao clima, o que é uma falsa dicotomia. Como podemos nos afastar desse binarismo, dessa dicotomia que você está tentando quebrar?

Procurei ir ao cerne do pensamento marxista para descobrir uma nova interpretação que fosse consistente com a forma como Marx pensava. Valor é uma das coisas mais chatas sobre a qual os marxistas costumam se pronunciar – falar da “lei do valor” deixa certamente meus olhos vidrados. Pois, todas as civilizações têm uma forma de valorizar a vida. Isso não é exclusivo do capitalismo. O que o capitalismo faz é o seguinte: bem, para mim, a produtividade do trabalho dentro do nexo do dinheiro é o que conta; logo é preciso desvalorizar o trabalho das mulheres, da natureza e das colônias. Note-se, agora, que isso vira do avesso o argumento marxista usual. Existe um tipo de lei do valor no capitalismo que consiste em ser também uma lei da “natureza barata” ou mesmo uma lei que desvaloriza o trabalho dos humanos não remunerados em dinheiro junto com o resto da natureza.

Eu cresci num mundo em que esse tipo de política estava se propagando. De um lado, havia os conservacionistas que, com razão, queriam proteger as florestas antigas. E, do outro lado, havia a burguesia, mas também os sindicatos, que diziam: bem, precisamos de empregos.

Isso está mudando. Está ficando claro, mesmo para muitas grandes empresas, que a mudança climática irá alterar fundamentalmente as condições de obtenção de lucro. Podemos ver isso na produção de comida. O mundo moderno funciona com base em alimentos baratos, que podem ser obtidos com um clima muito regular, muito solo, mão de obra barata – é assim que se obtêm calorias de modo relativamente barato. Mas agora aparece o movimento pela soberania alimentar. Ele diz que não se pode obter empregos de qualquer maneira, que não há maneira de fazer a natureza trabalhar de graça como tem sido. Na verdade, estamos vendo agora a conta chegar devido ao tratamento da atmosfera global como depósito de poluição.

Também vemos a situação na Califórnia, por exemplo, onde a seca se tornou tão severa – a pior em 1200 anos, segundo dizem os estudos – que o centro em que prospera a agricultura comercial norte-americana pode simplesmente desaparecer nas próximas décadas. Portanto, de várias maneiras, a aceleração da mudança histórica está tornando o discurso “empregos versus meio ambiente” obsoleto.

 

 

Você fala muito sobre a apropriação do trabalho não remunerado, mas socialmente necessário, como o modus operandi do capitalismo. Entretanto, os pensamentos verde e vermelho tendem geralmente a ignorar esse ponto. Você poderia fornecer alguns exemplos?

A primeira coisa que precisamos saber é que o mito organizador mais poderoso do pensamento verde e do ativismo ambiental nas últimas quatro décadas foi a Revolução Industrial – este é o argumento central atualmente encontrado na tese do “Antropoceno”. Ele diz que todo o mal na mudança ambiental remonta à Inglaterra por volta de 1800, com a máquina a vapor e o carvão. Isso não é verdade, mas essa ideia está arraigada na compreensão do mundo moderno e, especial, no modo de pensar a crise ambiental.

Na verdade, a ascensão do capitalismo pode ser vista muito claramente nos séculos XV, XVI e XVII, ao percebermos as transformações nas paisagens de então e nos seres humanos que aí viviam. Uma revolução na criação do ambiente sem precedentes em velocidade e em escopo ocorreu entre 1450 e 1750.

A expressão mais dramática dessa mudança foi a conquista das Américas. Ela extrapolou em muito o estatuto de uma mera conquista militar e genocídio, embora tenha sido, sim, em grande parte, isso mesmo. O Novo Mundo tornou-se um campo de provas para o capitalismo industrial em todos os sentidos. As origens podem ser vistas nas plantações de açúcar. Um segundo lugar foi a mineração de prata em Potosi, na Bolívia. Havia operações de produção muito grandes, muitas máquinas, dinheiro entrando, trabalhadores que eram arregimentados por tempo e por tarefa – tudo tinha como premissa se apropriar do trabalho da natureza, grátis ou de custo muito baixo, para transformá-lo em algo que poderia ser comprado e vendido.

Isso destruiu os solos e as zonas montanhosas dos Andes, por exemplo, que estavam completamente despojadas de árvores, causando uma terrível erosão do solo. Mas também foi devastador para os humanos incorporados nesse processo. No vice-reinado do Peru, nos séculos XVI e XVII, os castelhanos, os espanhóis, por exemplo, tinham uma palavra especial para designar os povos indígenas: “naturales”. Esses indígenas feitos trabalhadores eram considerados parte da natureza.

O mesmo tipo conceituação ocorreu em torno da escravidão africana. O tráfico de escravos africanos era uma realidade que se juntava às plantações de açúcar; ora, isso diz algo importante – não apenas os solos do Novo Mundo foram apropriados e exauridos, as suas florestas desmatadas, mas também os escravos africanos foram tratados não como humanos ou não fazendo parte da sociedade, mas como parte da natureza. O trabalho dos africanos foi apropriado e o trabalho dos solos e das florestas foram apropriados sem dó nem piedade. Foi a partir daí que começou a surgir uma nova relação com a natureza e ela tinha a ver com a economia.

Cada vez que surgiam novos impérios – o português, o espanhol, o holandês – no Novo Mundo e no Oceano Índico, a primeira coisa que faziam era começar a recolher todas as manifestações da natureza que pudessem encontrar, incluindo os humanos, para codificá-las, para torná-las objeto da razão instrumental. Finalmente, houve processos extraordinários de mobilização de trabalho não remunerado a serviço da produção e troca de mercadorias. A primeira coisa que qualquer capitalista queria, ou qualquer potência colonial queria, era colocar um pouco de dinheiro e obter muita energia útil de volta, na forma de prata, açúcar e, posteriormente, tabaco e algodão com o advento da Revolução Industrial. Era o mesmo processo visto em qualquer avanço tecnológico – seja a máquina a vapor ou antes dela as inovações na construção naval. Isso sempre teve como premissa fazer com que formas da natureza funcionassem de graça ou a baixo custo em escala massiva.

 

 

Em que consiste a sua crítica do Antropoceno? Como você acha que esse conceito encobre a análise histórica real do capitalismo?

Precisamos distinguir entre dois usos do termo. Um é o Antropoceno enquanto noção cultural, que medra nas conversas entre amigos durante o jantar ou no bar. Nesse sentido, o termo antropoceno tem a virtude de colocar uma questão importante: como os humanos se inserem na teia da vida? Mas a noção de Antropoceno não pode responder à sua pergunta, porque ela é inerentemente dualística. Veja-se o título de um famoso artigo “O Antropoceno: os humanos estão agora dominando as grandes forças da natureza?” Essa se transfigura numa boa questão quando se acredita que os humanos fazem parte da natureza.

O argumento do Antropoceno em sua forma dominante, por outro lado, está baseado num modelo histórico absurdo. Diz mais ou menos que tudo começou na Inglaterra, em 1800, com motores a vapor e com o uso do carvão mineral. Há vários problemas históricos nessa formulação. Muito antes da máquina à vapor, houve um aumento de ordem de magnitude na capacidade do capitalismo de transformar o meio ambiente, em termos de escala, velocidade e escopo.

Sou uma pessoa muito preocupada com o fato de que a noção de Antropoceno permite fazer esse velho truque burguês que diz que os problemas criados pelos capitalistas são de responsabilidade de toda a humanidade. Essa é uma visão profundamente racista, eurocêntrica e patriarcal que apresenta uma série de problemas muito reais. Não se pode responsabilizar a humanidade como um todo. Em um nível filosófico profundo, somos todos iguais aos olhos do Antropoceno. Em um sentido histórico, essa é uma das piores violências conceituais que se pode impor. Seria como dizer que a raça não importa na América atual – qualquer pessoa que afirmasse isso seria ridicularizada no ato. A fuga permitida pela ideia de Antropoceno vem do dualismo natureza/sociedade.

 

 

O capitalismo hoje, em última análise, está passando por uma crise evolutiva. Que prognóstico essa nova análise histórica fornece sobre essa crise?

Tudo depende de como se pensa o capitalismo. Se se tem uma definição padrão de capitalismo como um sistema comprometido com o crescimento econômico sem fim e com a maximização da lucratividade, é possível pensar na capacidade do capitalismo de sobreviver. Mas se se julga que o capitalismo depende da apropriação do trabalho não remunerado dos humanos e do resto da natureza… então se começa a ter uma visão diferente dos seus limites.

 

 

A questão central da economia política é: como os grandes booms de investimento e de acumulação capitalistas ocorrem no mundo moderno? Quais são os seus limites?

Mesmo se as mudanças climáticas não estivessem acontecendo, esses limites já seriam formidáveis. Os capitalistas sempre encontraram saídas para as crises e isto é algo com que os radicais e os conservadores concordam. Ambos dizem a mesma coisa porque são cegos à natureza. O capitalismo é, acima de tudo, um sistema de natureza barata, consistindo em quatro elementos: força de trabalho, energia, alimentos e matérias-primas. O capitalismo restaura o baixo custo desses produtos da natureza, encontrando novas partes da natureza que não foram mercantilizadas ou trazidas para o nexo monetário. No século XIX, foram o sul e o leste da Ásia. Nos últimos 30 anos, o neoliberalismo trouxe a China, a Índia, a União Soviética e o Brasil para o seu âmbito.

Ora, em termos de mudanças climáticas, esse processo retroalimenta ainda, de uma forma retardada, a apropriação danatureza barata” que ainda sobrou. A mudança climática é o maior vetor individual de aumento dos custos dos negócios normais. Isso vai minar a base de todo o relacionamento do capitalismo com a natureza, minando radicalmente a estratégia de apropriação da natureza barata em que ele se baseou para se desenvolver.

 

 

Você menciona que os movimentos ambientais e sociais estão lentamente chegando à conclusão de que o binarismo natureza/sociedade é falso, possivelmente por causa das ameaças reais à natureza e à sociedade e mesmo ao próprio capitalismo, particularmente com projetos de perfuração extrativa em grande escala que estão invadindo uma natureza da qual os humanos fazem parte.

Acho que alguns movimentos estão começando a ver a natureza e a sociedade como sendo inextricavelmente ligadas. Acho que o próximo passo é entrar no âmago das questões de raça, gênero e desigualdade para apontar como essas questões são intimamente conectadas à natureza e à sociedade tal como são imaginadas no mundo moderno. Ao se fazer algumas perguntas simples: por exemplo, por que algumas vidas humanas são mais importantes do que outras – pensando na importância de vidas negras? – ou por que alguns genocídios são mais importantes do que outros?, começa-se a ver que existem pressuposições muito poderosas sobre essas noções de natureza e sociedade.

Acho que os movimentos em torno da extração de petróleo por fracking ou do oleoduto Keystone, nos Estados Unidos se apresentam com um tipo de organização social que se encaixa muito bem com os argumentos do livro. Os movimentos por justiça não podem mais ser aplacados por meio de uma nova distribuição de recompensas, em parte porque o capitalismo não tem o excedente que costumava ter. Vê-se isso especialmente nas discussões em torno de projetos de energia, fraturamento hidráulico, petróleo e extrativismo na América Latina. E é claro que para começar, nessa região, muitos grupos indígenas nunca acreditaram nesse dualismo. É por isso que eles estavam à frente nesse ponto até em relação à ciência moderna.

Mas ainda há muitas pessoas na esquerda, especialmente na América do Norte, que veem a natureza como algo externo, como uma variável ou um contexto, que será um beco sem saída político completo. Precisamos trazer a natureza para dentro do capitalismo e entender o capitalismo como parte da natureza.

 

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