03 Outubro 2022
Matthieu Ricard, Aix-les-Bains [França], 1946. Doutor em Biologia Molecular, monge budista desde 1978 e considerado o homem mais feliz do mundo. Em Memorias de un monje budista (Arpa), narra sua extraordinária jornada vital em busca da espiritualidade.
A entrevista é de Irene H. Velasco, publicada por El Mundo, 24-09-2022. A tradução é do Cepat.
Parabéns pelo seu novo livro.
Obrigado. Acredito que será o último. Não se trata de lançar livros por lançá-los, sempre deve haver uma razão para isso. Em meus livros anteriores, sempre havia um motivo. Com este último, quis dar testemunho mais do que tem sido a minha vida. E então, acabou.
Por que diz que será o último? Tenho certeza de que ainda restam coisas para você contar...
Já dediquei livros, entre outras coisas, à felicidade, à causa em favor de outras espécies animais e ao altruísmo, sendo este último assunto o que mais me toca o coração. Meu livro sobre o altruísmo demorou cinco anos de sólidas pesquisas, tanto que quase acabei com a síndrome pós-altruísta.
Agora, tenho 76 anos e minha aspiração primeira era traduzir alguns textos. No momento, estou trabalhando em uma tradução de 800 páginas do tibetano para o inglês e o francês, e isso me mantém bastante ocupado.
Você vive bastante afastado do mundo, passa muito tempo na cidade tibetana de Namobuddha. Como se enxerga o mundo de longe?
Bem, nem sempre estou distante, há momentos em que estou completamente envolvido no mundo. Há 21 anos, por exemplo, iniciei um projeto humanitário com os royalties dos meus livros que agora, evidentemente, não depende só de mim, pois, caso contrário, teria que escrever um livro por semana.
Com este projeto, ajudamos 400.000 pessoas na Índia e no Nepal todos os anos, especialmente pessoas em situação de pobreza extrema, muitas delas mulheres, e estou totalmente envolvido neste projeto. Então, às vezes, eu me vejo envolvido em um turbilhão, indo daqui para lá, participando de reuniões.
Essa não é realmente a minha vida, mas em todo caso estou bastante conectado com o mundo. Contudo, quando estou no meu povoado no Nepal ou aqui na floresta de Dordogne com minha mãe de 100 anos, quando estou em contato com a natureza, todo esse turbilhão para. O natural para mim é estar em um lugar tranquilo fazendo meus exercícios espirituais e minhas traduções. Mas quando tenho que me comprometer e entrar no turbilhão, também assumo.
Tem 76 anos, mas em suas memórias afirma que nasceu quando tinha 21...
Sim. Você nasce quando encontra um sentido para a sua vida. Um dos principais dilemas de muitos adolescentes é decidir o que podem fazer nesta vida que realmente faça sentido e que os apaixonem, algo que se enxerguem fazendo nos próximos 20 anos.
Quando eu olho para trás, digo a mim mesmo: “Bem feito”. Encontrar um sentido à vida, uma direção, é crucial para os jovens, e é por isso que com frequência estão desorientados e experimentam várias coisas. Eu não sabia o que realmente queria. Mas quando tive clareza, fui por aí. Este foi o início da viagem.
Qual é a maior lição que você aprendeu em seus 76 anos de vida?
Uma das coisas que aprendi é que subestimamos a enorme capacidade da mente de mudar, de nos tornar pessoas melhores. Não nascemos sabendo ler, escrever, jogar xadrez ou andar de bicicleta, aprendemos tudo. Mas não sei por que estranha razão pensamos que não podemos mudar a nós mesmos, que somos por natureza como somos, que nossa personalidade é o que é e não pode ser mudada.
Mas não é assim, podemos mudar, podemos potencializar algumas capacidades. Então, por que não promover o altruísmo, a compaixão, a paz e a liberdade? Todas essas capacidades podem ser potencializadas. De fato, não agir assim seria contrário à natureza, e por isso certamente as subestimamos.
Pode me explicar?
Muitas vezes, cometemos o erro de pensar que é mais fácil ser feliz em um cantinho, em nossa própria bolhinha, que mesmo quando não se tem nada contra os outros, não é tarefa nossa se ocupar dos outros. No entanto, agora sabemos muito bem que estamos profundamente interconectados. Portanto, perseguir a própria felicidade não funciona, é uma situação fracassada em que tornamos nossa vida e a dos outros desaventurada.
Mas se somos agradáveis, compassivos, afáveis, de bom coração, preocupados com os problemas globais, se realmente estamos dispostos a fazer tudo o que é possível para participar juntos em um mundo melhor, cooperar, é muito gratificante para si mesmo e, claro, é bom para os outros. Então, é uma situação totalmente exitosa.
Penso que a grande lição e a mais útil que aprendi em minha vida é saber que o altruísmo, a compaixão e a afabilidade são a melhor maneira de satisfazer o bem-estar próprio e o dos outros.
Você estudou genética, e sabe bem que temos limitações biológicas...
Sim, há limites, mas dentro desses limites há muita margem de manobra. Se a questão é nadar 100 metros livres em 5 segundos, certamente nunca conseguiremos, a não ser que seja através de uma grande mutação genética. Mas por que não é possível ser mais amável, mais altruísta?
Esse estado mental qualitativo, não quantitativo, é um estado mental que pode se tornar cada vez mais profundo, é possível chegar a um ponto em que você não exclua ninguém de seu coração. Isto não significa que você irá mudar o mundo quando acordar pela manhã, mas ao menos não excluirá ninguém. Para essas aptidões, não existem limitações físicas como existem no salto e na corrida.
Essas aptidões deveriam ser ensinadas nos colégios?
Sim, é claro, mas de uma forma muito secular, sem que tenha algo a ver com a espiritualidade ou com a religião. Certa vez, ouvi que havia sido realizada uma pesquisa de opinião com jovens de 15 a 25 anos de todo o mundo, que tinham sido questionados: “Vocês acreditam que existem alguns valores universais?”. Fiquei muito surpreso que cerca de 65% disseram que não, e pensei que talvez seja porque os jovens paquistaneses pensaram que estavam sendo questionados pelos valores ocidentais; os chineses, pelos valores democráticos...
Contudo, penso que se tivesse sido perguntado a todos esses jovens se consideram que a honestidade, a amizade, a afabilidade, a generosidade e a solidariedade são valores universais, majoritariamente teriam dito que sim. Penso que seria bom uma educação que, sem ser moralista, ajude a ver como é importante desenvolver esses valores humanos.
Trata-se de desenvolver a inteligência emocional?
Sim. Sabemos há muito tempo que a inteligência emocional é um indicador melhor do tipo de vida que uma pessoa terá do que seu quociente intelectual. E a inteligência emocional se baseia na relação com os outros, em ser boa pessoa. Para as crianças de hoje, ensina-se disciplina, a importância de trabalhar duro, de resolver problemas matemáticos e outros, e a assimilar o máximo possível de informações.
Tudo isso é bom e necessário. Mas pouco se faz para ajudá-las a se tornarem pessoas melhores, a desenvolverem esses valores e um senso de responsabilidade global. Sem esses valores humanos básicos, a pessoa terá uma vida difícil e também dificultará a vida daqueles que a rodeiam.
O segredo da felicidade talvez seja pensar nos outros e não em si mesmo?
Bem, não se trata de se sacrificar. Mas penso que a felicidade não pode ser alcançada à custa de ignorar os outros ou, o que é ainda pior, de fazer os outros sofrerem. Trata-se de entender que se alguém quer ser feliz, todas as outras pessoas também querem, e que a felicidade de alguém pode ser alcançada através e com a felicidade dos outros.
É aí que entra em jogo o sentido de uma humanidade comum, de uma sensibilidade comum, inclusive com outras espécies, e de que pertencemos à grande família da Terra. Penso que essa ideia também é a melhor forma de encontrar a felicidade e não, não é um sacrifício.
Você nunca sente ódio?
Não, parece-me que não. Às vezes, sim, sinto indignação, eu a sinto por exemplo diante da opressão de algumas minorias, diante das coisas terríveis que acontecem em diferentes partes do mundo contra alguns grupos étnicos. Eu a sinto diante do que acontece agora na Ucrânia...
Contudo, nenhuma dessas situações se resolve com ódio. Resolve-se com compaixão e remediando a causa do sofrimento, não matando aqueles que se supõe que são os maus. Caso contrário, seria como aquele ditador latino-americano que dizia que amava a paz e que precisava eliminar todos aqueles que eram contra ela.
Você diz em seu livro que durante sua vida viu coisas que não têm explicação científica: mestres espirituais que conseguiram ler sua mente; pessoas cujos corpos, após a morte, permaneceram intactos e em posição sentada por um longo período. Como você explica isto?
Eu tenho conhecimentos científicos e converso muito com meus amigos cientistas. Sei quais são os critérios para o conhecimento científico e as coisas a que você se refere não podem ser estudadas sendo reproduzidas em um laboratório.
Não estou fazendo nenhum tipo de propaganda sobre essas coisas que presenciei e para as quais estou consciente de que não existe uma explicação científica, mas ao escrever este livro decidi que não importava o que as pessoas possam pensar e me limitei a contar o que tinha visto.
São coisas para as quais não tenho explicação. Mas deixe-me dizer que quando eu vi o que vi, eu não estava usando LSD, nem sequer fumei um cigarro na minha vida. Não estou tentando convencer ninguém, apenas conto o que presenciei.
Diversas vezes, você foi tradutor do Dalai Lama. O que mais te impressiona nele?
O Dalai Lama é alguém que presta a mesma atenção a qualquer ser humano, seja ele quem for. É um chefe de Estado, mas quando está em um hotel, por exemplo, detém-se para conversar com a pessoa que limpa seu quarto.
Como ele mesmo disse, nessas ocasiões é apenas um ser humano conversando com outro ser humano. Sua humildade é impressionante, é alguém que se preocupa genuinamente com todos os seres humanos, sem discriminação de qualquer tipo.
E qual é a sua opinião a respeito do Papa Francisco?
Todo mundo diz que ele é uma pessoa muito simples, e isso me deixa muito feliz. Meu amigo, o neurocientista Wolf Singer, com quem escrevi o livro Cérebro e Meditação, foi convidado ao Vaticano para uma conferência científica. Contou-me que pela manhã, quando foi tomar o café, encontrou o Papa na fila, assim como todos.
Contudo, o mais importante para mim é a sua genuína preocupação com os pobres, os imigrantes e os que são deixados para trás por causa das desigualdades do mundo. Penso que o Papa Francisco é revigorante. Pelo que tenho entendido, está com graves problemas para resolver as finanças do Vaticano e outros problemas que estão há muito tempo no sistema e está encontrando resistências, mas está trabalhando com afinco.
Se não tivesse descoberto o budismo, como seria sua vida?
Já sabe que eu estudei Biologia Molecular, e teria pesquisado nesse campo. Em primeiro lugar, eu queria ser médico, mas meu pai me disse que a biologia era mais interessante e, pela primeira vez, eu o escutei. Mas me arrependo de não ter estudado medicina porque quando você faz projetos, é mais útil ser médico do que geneticista.
Tenho amigos que estudaram comigo e que agora têm seu próprio laboratório. Não sei qual teria sido o meu êxito, mas teria seguido com a biologia.
Sei que não gosta que digam que você é o homem mais feliz do mundo, mas...
Não é que eu não goste, é que é uma bobagem. Pense nisto por um segundo: existem 8 bilhões de seres humanos no mundo, como é possível saber a medida da felicidade de todos eles? É impossível.
Mas seu grau de felicidade foi objeto de um estudo científico, correto?
O que esse estudo descobriu é que eu e outras pessoas que praticam meditação há muito tempo ativamos certas áreas do cérebro, conectadas a frequências, como a frequência gama, em um grau muito maior do que a neurociência pensava. Mas esse estudo comparava cerca de 40 pessoas que praticam a meditação com algumas centenas de pessoas que não a praticam.
Além disso, no cérebro não existe uma área da felicidade. A afirmação de que eu sou o homem mais feliz do mundo foi feita por um jornalista britânico e a história viralizou.
Mas você é profundamente feliz ou não?
Sim, sou muito feliz, mas há muitas outras pessoas que também são e, além disso, não sei como é possível medir a felicidade. Mas, sim, sou feliz. Tive a imensa sorte de viver a vida que vivi, de conhecer as pessoas que conheci, de me beneficiar da sabedoria de várias pessoas, de não ter gastado mal em excesso meu tempo.
Se eu morresse hoje, estaria absolutamente satisfeito. Claro que poderia ter feito melhor, mas não fiz mal.
Como gostaria de ser lembrado no futuro?
Não faz diferença ser lembrado ou não. Mas se eu tivesse que apontar alguma coisa, gostaria que as pessoas lembrassem que a melhor coisa que podemos fazer é nos transformar e, desse modo, transformar o mundo em um lugar melhor. Ser pessoas melhores e ajudar o mundo e os outros. Para mim, esse é o resumo de uma boa vida.