Comissão Temporária Externa do Senado, criada para investigar o ciclo de violências na Amazônia, produz relatório que aponta omissão das autoridades federais para evitar as mortes do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
A reportagem é de Cícero Pedrosa, publicada por Amazônia Real, 17-08-2022.
“Tragédia anunciada.” Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips podiam ter sido evitados, se a Funai e outros órgãos de fiscalização e segurança tivessem levado a sério as inúmeras denúncias feitas pelos indígenas e pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Essa é a conclusão do relatório final da Comissão Temporária Externa (CTE) do Senado Federal, apresentado na terça-feira (16). A comissão foi criada para investigar as causas do aumento da criminalidade e de atentados contra povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos na região Norte. Era impossível não falar de Bruno e Dom.
Em um capítulo especial sobre a situação de insegurança, ameaças e crimes socioambientais na Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas, o relatório final da CTE menciona denúncias feitas pela Univaja em abril e no final de maio deste ano, meses anteriores aos assassinatos. As denúncias, confirmadas pelo delegado federal Ramon Santos – mencionado pelo relator da comissão – foram encaminhadas à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal. Elas delatavam as ameaças que Bruno Pereira sofria por parte de pescadores ilegais da região.
“No trabalho de investigação local desta Comissão, foi obtida a informação de que organizações criminosas transfronteiriças usam o pirarucu e o piracatinga para lavar dinheiro do narcotráfico, criando uma demanda por esses peixes, que eram visados pelos pescadores ilegais suspeitos da morte de Dom e Bruno”, denuncia o relatório, fato amplamente já reportado pela Amazônia Real ao longo de sua cobertura sobre o caso.
O relatório menciona que algumas denúncias sequer foram consideradas pelos órgãos, sob a alegação de que elas não continham “informações qualificadas”. Foi quando então, segundo os senadores, “a Univaja passou a qualificar as denúncias, elaborando relatórios que incluíam imagens de câmeras termossensíveis e de drones, georreferenciadas, produzidas pelas equipes de vigilância que Bruno Pereira ajudou a treinar”, em referência à Equipe de Vigilância da Univaja (EVU).
A comissão menciona a denúncia feita no “Ofício nº 27 da Univaja”, de 22 de abril de 2022, encaminhada para a Força Nacional e a Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. No documento, a organização indígena expõe fotos de “seis pescadores ilegais em canoas, armados com espingardas calibre 16 e equipamentos de pesca, próximos a uma aldeia do [povo] Korubo”, e informa que os pescadores em questão eram liderados por Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, preso e já denunciado pelos assassinatos.
“Dois meses mais tarde, sem que nenhum órgão competente tenha tomado qualquer providência conhecida a respeito da denúncia, o mesmo ‘Pelado’, na mesma embarcação e, provavelmente, usando uma das armas ali mencionadas, viria a assassinar Dom e Bruno”, assinala o relatório.
As denúncias feitas pela Univaja aos órgãos de fiscalização e de segurança estão registrados em 11 ofícios encaminhados à PF e Força Nacional, MPF e Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari (Funai). Todas elas expunham: o acirramento das práticas criminosas na TI do Vale do Javari; a vinculação do narcotráfico com a pesca ilegal; e a participação central de “Pelado” nos crimes combatidos pela Univaja, Bruno Pereira e a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) – por ele coordenada e treinada.
O documento apresentado pelos senadores também faz menção ao cenário de riscos aos indígenas que permanece existindo no Vale do Javari, sobretudo para aqueles que atuam diretamente na proteção da TI. O relatório solicita à Comissão de Direitos Humanos do Senado, que acompanhe o andamento das inclusões de pessoas ameaçadas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH).
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que preside a comissão temporária, solicitou a inclusão no relatório, do pedido de reabertura da base do Ibama, em Atalaia do Norte, no Estado do Amazonas. A base do Ibama no município está fechada.
No tópico denominado “Críticas à Funai”, o relatório descreve as impressões da comissão – com base nas apurações, reuniões, entrevistas e diligências no município de Atalaia do Norte, ao longo dos 60 dias de trabalho empenhados na produção do documento.
“Durante as audiências e a diligência externa realizadas por esta Comissão Temporária, foram recorrentes as críticas à direção da Funai, considerada, por muitos depoentes, omissa e avessa ao cumprimento de seu dever de proteção aos indígenas e a seus próprios funcionários”, afirmou o senador Nelsinho Trad (PSD-MS), relator do relatório.
O documento final da comissão chega a mencionar que a Fundação Nacional do Índio (Funai) teria se convertido em uma “organização anti-indígena”, contrariando os preceitos de sua criação, em 1967, com o intuito de proteger os povos indígenas e seus territórios originários. A mesma denúncia tem sido feita por indigenistas, que chegaram a mobilizar uma greve em protesto.
A reportagem procurou a Funai para comentar as denúncias do relatório e ainda aguarda posicionamento.
Manifestação em frente a sede da Funai em Manaus após a notícia da confirmação dos homicídios de Bruno Pereira e Dom Phillips (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Três projetos de lei com o objetivo de incrementar a segurança em áreas de conflitos e violações de direitos tradicionais e originários foram apresentados como resultado dos trabalhos da CTE. O primeiro deles propõe a posse de arma de fogo aos servidores da Funai em atividades de fiscalização, questão que é discutida desde a criação do órgão, 54 anos atrás. A medida esbarra em obstáculos legais e burocráticos do governo federal. A falta do poder de polícia da Funai é apontada pelos servidores ouvidos nas diligências da comissão como um entrave nas ações de fiscalização. Eles também alegam que a falta de armamento os deixam vulneráveis diante de demandas contra garimpeiros, pescadores ilegais, madeireiros, grileiros e outros criminosos.
O segundo projeto de lei sugere uma abrangência maior do emprego das Forças Armadas para a “prevenção e repressão de delitos que atentem contra direitos transindividuais de coletividades indígenas, em acréscimo aos delitos transfronteiriços e ambientais, já previstos”. O terceiro PL é o de que seja agravada a pena de infrações cometidas em terras indígenas.
Randolfe Rodrigues fez questão de frisar que os projetos de lei são uma recomendação expressa da Comissão Externa Temporária, e ressaltou a importância dos indígenas do Vale do Javari nas buscas pelos corpos de Bruno e Dom.
Os senadores do CTE pedem ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-RO), “a iniciativa de solicitar ao presidente da República o emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem [GLO]”, nas Terras Indígenas Yanomami – considerando a situação de calamidade causada pelo avanço do garimpo e pela contaminação ambiental e dos corpos indígenas –, e na TI do Vale do Javari.
“Sem a adequada repressão, a Amazônia tem sido palco de uma verdadeira invasão por organizações criminosas que aproveitam o vácuo de poder deixado pelo Estado […] entendemos que o resgate da efetiva soberania brasileira sobre essas áreas requer, além de segurança, uma presença robusta do Estado”, assinalou o relator da comissão.
De acordo com Trad, os indígenas ouvidos no relatório relatam ameaças constantes de pescadores e caçadores, garimpeiros e madeireiros, “além do ingresso de missionários fundamentalistas em regiões onde há grupos isolados”. “Entre todos os que se manifestaram foi unânime o clamor por maior presença do Estado, particularmente dos órgãos de segurança pública, das Forças Armadas, dos órgãos ambientais e da Funai [atuando] em parceria com os indígenas”, comentou o senador.
O senador Fabiano Contarato (PT-ES), vice-presidente da comissão, leu, durante a entrega do relatório, um voto de repúdio contra as declarações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), pelo vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) e pelo atual presidente da Funai, Marcelo Xavier, ao longo das buscas pelos corpos de Bruno e Dom no Vale do Javari.
“A mais alta cúpula do Poder Executivo tratou o duplo homicídio e a ocultação de cadáver como se fosse algo natural, corriqueiro no país que pretendem governar, quando o que vemos é que o domínio do crime vem se estendendo sobre o vácuo deixado pelo desmantelamento do poder estatal”, pontuou Contarato. O voto de repúdio foi aprovado ao longo da sessão que também marcou o fim dos trabalhos da comissão, mas não consta no texto final do relatório, sob protestos do senador capixaba.