Por uma arquitetura e urbanismo de libertação

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

18 Julho 2022

 

"Penso que a Arquitetura e Urbanismo de Libertação é necessariamente constituída a partir de um processo participativo, verdadeiramente coletivo, pois estar no mundo implica estar com o outro, e na relação com o outro, ambos são afetados. Portanto, libertação que não é depositada ou transferida, mas se constrói a partir da práxis, ou seja, ação e reflexão dos oprimidos sobre o mundo que se quer transformar. O povo em movimento deixa de ser oprimido e de ser visto enquanto objeto e passa a ser sujeito”, escreve Claudia de Andrade Silva, para a Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

 

Claudia de Andrade Silva é arquiteta e urbanista, e mestra pela FAU-USP, com pesquisa relacionada ao direito à cidade. Atua junto aos movimentos de luta por moradia em ocupações urbanas de São Paulo e junto à pastoral do povo de rua em Guarulhos.

 

Eis o artigo.

 

Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.
(Rosa Luxemburgo)

 

Uma pesquisa promovida pelo CAU/BR (2015) revelou que 85% da população brasileira que já reformou ou construiu não utilizou serviços de arquitetos e/ou engenheiros. De fato, ao percorrer a cidade com um olhar mais atento, a pergunta que salta aos olhos é: afinal, a quem serve a arquitetura e urbanismo?

 

Nesse sentido, uma questão que se colocou de fundo desde a graduação, e só aumentou após a formação, foi quanto à minha atuação enquanto arquiteta e urbanista na busca de transformação social e de cidades mais inclusivas, emancipadas e emancipatórias. Pensando nisso, e muito inspirada por todas as reflexões decorrentes do percurso de pesquisa no âmbito do mestrado, busco elaborar, mais como devaneio e muito menos com teor conclusivo, o que viria a ser uma Arquitetura e Urbanismo de Libertação. Libertação como contrário de cativeiro, e tão expressivamente cantada pelos moradores da ocupação Jardim da União: “levanta povo, cativeiro acabou”.

 

Penso que essa é uma busca muito mais pessoal de alguém que se considera povo e acessou espaços que, pelo curso natural das coisas, “não pertenceriam” à sua classe de origem. E agora, enquanto arquiteta e urbanista, muito se questiona como ocupar esses espaços e não reproduzir tamanha opressão e desigualdade, e, ainda, como superar o caráter elitista que essa profissão carrega. Trago comigo a inquietação de como os territórios populares, muitas vezes, são tratados de maneira tão exógena na academia, ou pior, a carência de tais temas ao longo da minha formação. E, agora, graduada e mestra, o entendimento de que esse campo profissional não deve ser entendido apenas como voluntariado, mas presente em políticas públicas que visem cidades mais democráticas.

 

A primeira coisa que me vem à mente é que a prática profissional não é exclusivamente técnica, tampouco neutra. É uma prática política e tem lado, cabe saber qual, pois o traço arquitetônico pode tanto reproduzir opressões, como aspirar à transformação social. Inspirada pelo discurso de Che Guevara, no VII Congresso da União Internacional de Arquitetos de Havana (UIA) em Cuba, em (1963), penso na técnica enquanto “arma política”, quando ele disse que:

 

a técnica tem que estar à frente da realidade [...] A técnica é uma arma e cada um a usa como uma arma [...] A técnica pode ser usada para dominar os povos, como também ser usada a serviço dos povos para libertá-los. [...] Para usar a arma da técnica a serviço da sociedade é preciso destruir os fatores de opressão, mudar as condições sociais vigentes em alguns países e entregar aos técnicos de todo tipo, ao povo, a arma da técnica”.

 

Nesse sentido, o primeiro ponto é que a Arquitetura e Urbanismo de Libertação tenha como premissa a técnica a partir e a serviço dos empobrecidos. Isso significa o uso da técnica de maneira situada, bem como dialógica e crítica, e em prol de mudanças sociais. A própria foto aérea realizada no Jardim da União (Figura 2), no momento em que a ocupação ainda estava em processo de execução do Plano Popular, é um exemplo da “arma a serviço dos povos”, pois se tratou de um instrumento que historicamente está nas mãos de quem detém o poder, mas que ali operou em outra lógica, a favor dos resistentes moradores.

 


Figuras 1 e 2 - Jd. da União antes da execução do Plano Urbanístico, em 2014 (à esquerda) e Jd. da União após a execução do Plano Urbanístico, em 2021 (à direita). Fonte: Google Earth.

 

Outro exemplo foi o caso da urbanização da favela Brás de Pina (1964), em que o arquiteto Carlos Nelson (1980) coloca que os moradores queriam um plano por entendê-lo como instrumento reivindicatório, para discutir com governo de “igual para igual”, usando da mesma linguagem e dos seus mesmos fetiches:

 

Manipular um plano na sociedade urbana atual significa ter muito poder. Se os favelados tivessem o seu plano para antepor aos do governo seriam arrebatados por uma espécie de encantamento, que provaria que eles também poderiam programar ações transformadoras, ainda que em condições menos privilegiadas.

 

Mas, inseridos em uma sociedade extremamente opressora, em um sistema econômico injusto e excludente por natureza, como isso ocorreria? Penso que uma possível resposta encontro em Paulo Freire com seu conceito de dialogicidade, pois, segundo ele, a libertação se dá através do diálogo, como também a humanização permanente dos sujeitos. Esse método freireano dialógico problematiza a realidade, de maneira que a libertação requer comunhão, já que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, mas todos se libertam em comunhão”.

 

Uma prática que dialogue com a luta do povo, respeitando as preexistências e as suas histórias de vida. Compartilho do sentimento de Carlos Nelson, de que, pouco a pouco, sentiu que de arquiteto foi se transformando em um antropólogo, em uma coexistência pacífica e produtiva entre essas duas atuações. A parte antropóloga revertia as tendências homogeneizadoras do planejamento e do projeto, ao reforçar as particularidades. De maneira que passou a observar muito mais as as inter-relações sociais e as redes de significados e, através do contato com os moradores, descobriu “novidades velhas”, ou seja, coisas que eram surpreendentes para quem não está inserido naquela realidade, de maneira que, “fui ficando com muita consciência crítica a respeito da minha profissão e do meu grupo profissional. Para agir como arquiteto sobre os meios urbanos brasileiros, era urgente conhecê-los melhor”.

 

Por isso, penso que a Arquitetura e Urbanismo de Libertação é necessariamente constituída a partir de um processo participativo, verdadeiramente coletivo, pois estar no mundo implica estar com o outro, e na relação com o outro, ambos são afetados. Portanto, libertação que não é depositada ou transferida, mas se constrói a partir da práxis, ou seja, ação e reflexão dos oprimidos sobre o mundo que se quer transformar. O povo em movimento deixa de ser oprimido e de ser visto enquanto objeto e passa a ser sujeito. Portanto, uma atuação que é construída com (e não para) os moradores, enraizada no território, já que:

 

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade de libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista de falsa generosidade (FREIRE, 1968).

 

Isso significa que uma arquitetura não se refere ao projeto autoral, à genialidade de prancheta, desprendido da realidade, que tem um olhar solar, de cima para baixo, mas o seu contrário, a partir da perspectiva do chão, com pé na realidade, com a longa permanência e com a escuta ativa, afetada, e empática. Esse sim é um possível caminho para a construção de processos emancipatórios e libertários. E, nesse sentido, compartilho também da indagação de Carlos Nelson: como projetar de baixo para cima? A respeito disso, a fala de uma das moradoras do Jardim da União, sobre processo que se dá em comunhão, é extremamente potente:

 

Cara, imagina se todos os bairros fossem feitos assim, pensado por quem mora lá, sabe? Que top que seria isso? Se todo bairro tivesse alguém que chega, troca ideia com o morador e fala “cara, o que tá bom pra você? Como que a gente pode fazer isso aqui melhorar?” Eu acho que esse é o correto, na verdade, né? Mas na verdade, tudo que é feito na periferia é feito por quem não mora na periferia, não entende o que que acontece aqui dentro, não sabe de nada, a logística ridícula pra gente em relação ao transporte público. Porque assim, foi feito por quem não tem a menor ideia do que acontece aqui”.

 

Penso que é uma prática que requer muito mais processo do que projeto, já que, sabidamente, esse não dá conta das dinâmicas e complexidades. Processo repleto de idas e vindas e do improviso. O projeto poderia cumprir um papel político de negociação com poder público, de instrumento de resistência e de diálogo com todos os envolvidos na elaboração dele. Por isso, é possível dizer que se trata de práticas políticas, como bem define Ferreira:

 

São políticas no sentido em que o indivíduo ou um grupo é dotado de intenção de carácter social, e que pretende transformar a sociedade como ela está colocada. São políticas sem pretenderem ser partidárias, e muitas vezes são políticas sem aspirarem a sê-lo conscientemente. Por serem políticas, transformam o indivíduo dotado de intenção em sujeito”.

 

Mas, para isso, está lançado um grande desafio: a linguagem. É necessário (e urgente) pensar em novas ferramentas, métodos e representações, tanto na formação, quanto na atuação desses profissionais comprometidos com a realidade. Penso que essa discussão tem relação com a crítica que Ferro (2021) faz ao desenho funcionalizado, submetido, burocratizado, separado do contexto da produção e de seus produtores, que nasce com a destruição da autonomia do canteiro. Concordo com Ferro (2021), quando diz que é preciso a reinvenção de um desenho situado, comprometido e imerso à realidade. Um desenho integrado com o momento da produção é o oposto do desenho escravizador a serviço do capital.

 

Hoje, o desenho está fortemente relacionado ao Capital, que traz soluções totalizantes e generalistas à cidade-mercadoria, no qual os saberes não se colocam lado a lado, mas fortemente hierarquizados. Aqui, propõe-se o inverso: que o saber/fazer popular importa tanto quanto o dito científico; “trata-se, portanto, de processo compartilhado, do lugar da prática social, que pretende desfazer qualquer hierarquia existente entre os saberes científicos e não científicos.” Propõe-se, também, a transição de um desenho separado para um emancipatório, o retorno da arquitetura ao canteiro, a partir de processos horizontalizados e autogeridos por todos envolvidos.

 

Assim, enquanto processo acadêmico, faz-se necessário: uma epistemologia indutiva, que parte dos oprimidos e interpela mutuamente o chão da realidade e a técnica; uma abordagem científica histórica, que não separe o conhecimento produzido e aplicado dos espaços reais onde a vida humana e social se realiza (pelo contrário, que os integre); uma construção “ascendente”, que, antes, esteja atenta ao “ver” (que compreenda adequadamente, via mediações sócio-análiticas, as opressões impostas pelo modo capitalista de produção), e que, nessa metodologia dialética, oriente-se ao “julgar” (que interprete/analise, honestamente e a partir de bases humanísticas, a realidade observada) e dirija-se praxiologicamente ao agir (que desenvolva/construa os saberes necessários à transformação enquanto práxis - prática refletida); a dizer, uma arquitetura e urbanismo da libertação.

 

Creio que o trabalho coletivo cria solidariedade, sendo a solidariedade entendida não como gesto esporádico, mas como possibilidade revolucionária, como potência transformadora. Como expressou Paulo Freire em seu último livro publicado em vida, parto de uma fé que se constitui como “impulso deflagrador da rebeldia amorosa, necessária à transformação do mundo”. Nesse sentido, ouso dizer, também, que a temática do afeto passa pela definição do que seria essa arquitetura e urbanismo, nos termos de Silvia Federici:

 

‘Afeto’ não significa um sentimento de ternura ou amor. Significa, antes, nossa capacidade de interação, nossa capacidade de movimento e de sermos movidos em um fluxo interminável de trocas e encontros, que supostamente expandem nossos poderes e demonstram não apenas a infinita produtividade de nosso ser, mas também o caráter transformador – e, portanto, já político – da vida cotidiana” .

 

Para além da prática que resulta na construção de espaços, trata-se da construção de pessoas, sobretudo de nós, num eterno aprender enquanto atuamos. Precisamos aprender a aprender, pois “quando você aprende a se examinar criticamente, vê tudo ao seu redor com um novo olhar”.

 

Reconhecendo os limites e contradições dessa atuação, contudo, a Arquitetura e Urbanismo de Libertação é aqui entendida como uma prática possível, uma vez inserida nas condições estruturais que organizam a sociedade. Até mesmo os Planos Populares, trazidos aqui como um possível exemplo dessa prática, são um resultado das condições objetivas e impostas, pois, como disse uma moradora do Jardim da União, “lá fora tem o capitalismo arregaçando”, impondo limites e bloqueios para a real democratização das cidades. Mas, motivo-me a escrever este texto com entusiasmo, pois ficar apenas na crítica ou na aceitação das imposições desse sistema nos impede de sonhar e de ter fé em outros mundos possíveis, e de acreditar em uma Arquitetura e Urbanismo de Libertação que promova uma sociedade na qual o acesso à cidade um seja direito de todas as pessoas.

 

Nota

 

* Esse texto foi escrito pós banca final da pesquisa de mestrado intitulada “Pé e fé na caminhada: povo em movimento na produção do espaço urbano paulistano” e está presente na Dissertação revisada, que pode ser acessada através do link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16137/tde-11012022-164523/pt-br.php.

 

Ao longo da Dissertação registrei a trajetória da ocupação Jardim da União, que foi atravessada por conflitos e tensões e que evidencia a relação entre a luta social daqueles que reivindicam o direito à cidade e a produção atual do espaço urbano

 

Esse texto contém parte das discussões elaboradas no decorrer da pesquisa, no que se refere ao meu olhar enquanto arquiteta e urbanista para a experiência vivida na ocupação urbana Jardim da União (SP). E, principalmente, nasceu a partir da provocação e incentivo dado pelo teólogo Klaus Raupp, que numa das nossas boas conversas indagou: por que você não desenvolve as bases teóricas e práticas de uma Arquitetura e Urbanismo de Libertação? Tendo como base a Teologia da Libertação (de muitos autores) e a Pedagogia Crítica (principalmente, de Paulo Freire), que propõem a reflexão da fé e a prática educacional desde a realidade concreta em que pisamos, via processos de diálogo e de estímulo à consciência crítica, e a serviço da transformação social.

 

 

Referências

 

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BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Teologia da libertação no debate atual. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

D’OTTAVIANO, Camila. Extensão em Movimento. In: D’OTTAVIANO, C. (org.); ROVATI, J. (org.). Além dos Muros da Universidade: planejamento urbano e regional e extensão universitária. São Paulo: FAUUSP/ANPUR, 2019.

DORFMAN, Cesar. Havana 63. Porto Alegre: Movimento, 2013.

LEITÃO, Karina. “Matrizes de Assessoria”. Aula 3 do curso OCUPATHIS. FAU-USP. 11 mai. 2021.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.

FERREIRA, Lara. Intervenção em Favelas como Prática Política Militante. In: FERREIRA, Lara; OLIVEIRA, Paula; IACOVINI, Victor. (Orgs). Dimensões do Intervir em Favelas: desafios e perspectivas. São Paulo: Peabiru TCA e Coletivo Lablaje, 2019.

FERRO, Sérgio. Construção do desenho clássico. 1. ed. Belo Horizonte: MOM, 2021.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 12 ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 68ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019 [1968].

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

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MORADO NASCIMENTO, Denise. O Que É Extensão? incertezas e provações. In: FERREIRA, L.; OLIVEIRA, P.; IACOVINI, V. (Orgs). Dimensões do Intervir em Favelas: desafios e perspectivas. São Paulo: Peabiru TCA e Coletivo Lablaje, 2019.

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SANTOS, C. N. F. Como projetar de baixo para cima – uma experiência em favela. Revista de Administração Municipal, Rio de Janeiro, ano 27, n.156, p.6-27, 1980.

 

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